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Domínio público fortalecido: acesso ao conhecimento e fonte de criações

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Trata-se do instituto do domínio público e de sua importância como fonte para novas criações. Abordam-se elementos que podem enfraquecer o acesso aos bens que compõem esse acervo comum, representando barreiras a um domínio público plenamente eficaz.

Resumo

O presente artigo trata do instituto do domínio público e sua importância como fonte para novas criações. O texto aborda elementos que podem enfraquecer o acesso aos bens que compõem esse acervo comum, representando barreiras a um domínio público plenamente eficaz. Também são apresentados fatores que podem fortalecer esse repositório, ampliando o acesso aos bens intelectuais que o compõem.

Abstract

This article deals with the institute of public domain and its importance as a source for new creations. The paper discusses factors that may undermine access to goods that make up this common corpus, representing a barrier to fully effective public domain. Also presented are factors that can strengthen this repository, expanding access to intellectual assets that comprise it.

Palavras-chave:

Direito Autoral. Direito Moral de Autor. Direito Patrimonial de Autor. Domínio Público. Domínio Público fortalecido.

"O Domínio Público não é um resíduo deixado para trás quando todas as coisas boas já foram tomadas pelo direito de propriedade. O Domínio Público compõe a estrutura que suporta a construção da nossa cultura. Ele é, na verdade, a maior parte da nossa cultura." James Boyle,em: O Domínio Público.


1. Introdução

Domínio público é a regra, direito de exploração exclusivo é a exceção. Essa afirmação poderia ser a diretriz para o tratamento da proteção das obras artísticas e científicas protegidas pelo direito autoral. Afinal, após esse período de exploração da criação exclusivamente pelo autor, a obra passará ao acervo comum, terá acesso e utilização livre e servirá também para inspirar a criação de novas obras.

A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) tem reservado um importante espaço para a discussão do aprimoramento do tratamento dado ao domínio público, em face de entendimento da importância desse acervo cultural. Nesse sentido, importante mencionar as recomendações 16 e 20 aos países membros dessa organização, que apontam a necessidade de medidas que fortaleçam o domínio público. A recomendação 16 propõe que se "considere a preservação do domínio público no âmbito dos processos normativos da OMPI e aprofunde a análise das implicações e benefícios de um domínio público rico e acessível" [01], enquanto a recomendação 20 aponta pela necessidade de se "promover atividades normativas relacionadas com a propriedade intelectual que deem suporte a um domínio público robusto nos Estados-Membros da OMPI, incluindo a possibilidade de preparar diretrizes que possam ajudar os Estados membros interessados ??em identificar o que está em domínio público dentro de suas respectivas jurisdições" [02].

Ainda acerca da importância de um tratamento adequado ao domínio público é importante destacar a obra "Estudo exploratório sobre direitos de autor e direitos conexos e do domínio público" [03], de autoria de Séverine Dusollier, professor da Universidade de Namur, na Bélgica. Esse estudo apresenta diversas considerações a respeito da importância do domínio público dentro do sistema de direito autoral e aborda elementos que afetam a eficácia desse acervo comum.

Nesse tempo em que o acesso à informação e ao conhecimento está ao alcance de todos, por meio de computadores e da Internet, se questiona o modelo de proteção autoral vigente, justamente pela imposição de uma restritividade exacerbada no acesso aos conteúdos protegidos, que acaba cerceando a criatividade ampliada propiciada pelas ferramentas tecnológicas. Nesse contexto, o tema domínio público recebe grande destaque. O fortalecimento desse instituto representa uma resposta que vai ao encontro das expectativas trazidas com a tecnologia.

As próprias transformações tecnológicas podem estabelecer novos patamares de efetividade ao domínio público. Muito do que se cria tem ou teve como fonte obras pertencentes ao domínio público, direta ou indiretamente. Portanto, falar em um domínio público mais efetivo é falar de uma fonte de cultura mais acessível à sociedade e de um repositório de inspiração criativa de fato disponível aos artistas.

O presente artigo tem por finalidade abordar tópicos relacionados ao desenvolvimento desse domínio público mais efetivo, por meio de políticas, soluções tecnológicas, alterações normativas, que explorem as condições que possam fazer desse repositório de conteúdos não apenas uma grande base de acesso a bens intelectuais, mas também fonte para novas criações.


2. Domínio Público: definição e função

Enquanto o direito autoral garante, além dos direitos morais do autor, o direito patrimonial sobre a utilização da obra, o domínio público permite que o uso seja feito sem qualquer autorização, uma vez que, em uma interpretação restrita e simples, as obras em domínio público são aquelas nas quais o direito patrimonial do autor decaiu.

As obras que fazem parte do domínio público formam um conjunto de bens intelectuais comuns ao uso todos, os quais envolvem questões muito mais amplas e relevantes, referentes ao acesso ao conhecimento e à cultura, bem como a importância das obras ao patrimônio histórico-cultural do país – questão a ser desenvolvida ao longo do trabalho.

2.1 O que é domínio público?

Domínio público é o conjunto de obras nas quais não mais incide a proteção patrimonial do direito de autor, e que, em virtude disto, seu uso é livre, independente de autorização ou pagamento.

Os direitos autorais patrimoniais não são eternos e nem mesmo protegem todos os elementos intelectuais. Quando as obras são protegidas, este prazo é determinado, limitado a um período considerado suficiente para assegurar ao autor as benesses econômicas de sua criação.

A garantia legal desses direitos perdura durante setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao falecimento do autor. Cessa-se a proteção dos direitos patrimoniais, pois os direitos morais, por sua natureza, não perecem no tempo, são imprescritíveis.

Quando do decurso desse prazo, os direitos patrimoniais do autor decaem, a obra passa a compor o domínio público. Incluem-se também neste rol, aquelas de autor desconhecido, bem como as de autores falecidos sem herdeiros, conforme mencionado no artigo 45 [04] da Lei de Direitos Autorais.

Conforme leciona Ascensão, "domínio público em relação à obra não representa nenhum domínio ou propriedade, mas simplesmente uma liberdade do público" [05], ou seja, a partir do momento que se finda a proteção patrimonial da obra mediante o direito autoral, seu uso é livre, não carecendo de autorização ou pagamento, pois não há mais um titular exclusivo - o titular da obra caída em domínio público é a própria coletividade.

2.2 Qual a função do domínio público?

"O domínio público é uma forma de ‘devolução’ ao seio da sociedade de algo que ela mesma propiciou ao criador da obra, um resgate ou pagamento, seja como for." João Henrique Fragoso, em: Direito autoral – da antiguidade a internet"

Domínio público efetivo é aquele que garante que as obras que o compõem possam ser amplamente acessadas, utilizadas por todos, quer reproduzindo-as, explorando-as, estudando-as, ou modificando-as para criar novas obras. A partir da possibilidade de múltiplos usos, o domínio público deve ser um referencial cada vez mais fortalecido e eficaz.

O acervo em domínio público deve consistir, acima de tudo, em matéria prima disponível para novas criações. Não se trata aqui de plágio dos trabalhos caídos em domínio público - uma vez que esses continuam protegidos pelos direitos morais do autor - mas de inspiração. Por exemplo, a obra de Shakespeare, Romeu e Julieta, certamente serviu de referência para que outros romancistas também escrevessem histórias sobre um amor impossível com final trágico, incluindo nelas seus traços criativos característicos.

O acesso às obras em domínio público cria a possiblidade de inovações contínuas, ou seja, inovações ou modificações em uma obra já iniciada por outrem. Toma-se como exemplo uma obra literária, em que o autor faleceu no ano de 1940 - a obra, por sua vez, encontra-se em domínio público. A obra pode ser utilizada como fonte para a criação de outras obras, dela derivadas, o que só poderia ser feito antes com a autorização do detentor dos direitos patrimoniais sobre a obra. A obra em domínio público possibilita que a cultura seja enriquecida com novas obras.

A regra geral é que o uso comercial das obras tenha período relativamente curto. As obras de grande sucesso, no entanto, extrapolam tal limite, continuando a ser economicamente rentáveis após o período em que os direitos patrimoniais decaem, uma vez que permanecem sendo reeditadas e relançadas. A respeito disto, Lessig leciona:

O verdadeiro dano [produzido pelos longos prazos protetivos, bem como pela inexistência de um domínio público efetivo] é gerado aos trabalhos que não são famosos, nem explorados comercialmente, e que, como resultado, não estão mais disponíveis. [06]

Tendo isto em mente, surge o interesse econômico do domínio público, qual seja, criar novos modelos de negócios a partir dessas obras. Uma vez que não incidem sobre elas os direitos patrimoniais, pressupõe-se que seu custo de reprodução e reinserção no mercado sejam menores. Essa prática é necessária, a fim de manter exemplares – inclusive das obras pouco conhecidas - disponíveis e acessíveis, com a finalidade de que a obra não venha a ser esquecida com o passar dos anos.

Está na essência do domínio público a garantia de liberdade de acesso e uso às obras que o compõe. A partir desta característica, deve-se entender esse acervo como um instrumento capaz de promover a eficácia de alguns direitos fundamentais, como o direito à educação, à cultura e à informação. Quando fortalecido e efetivo, as condições de acesso e informação são cada vez melhores, permitindo que o contato com o patrimônio cultural seja mais amplo, contribuindo de maneira primordial para o desenvolvimento intelectual.

2.3 Identificação do domínio público

A proteção autoral incide sobre uma obra intelectual a partir do momento em que ela é expressa, não carecendo qualquer formalidade.

Com isto, a maneira de identificar as características de uma obras - quando foi lançada, por qual autor, se há coautoria, se há direitos conexos - é eminentemente artesanal. Este método também dificulta a determinação de quando a criação passou a fazer parte do domínio público.

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O elemento central para saber quando o direito patrimonial da obra decaiu é, em geral, temporal: conhecer a data do falecimento do autor (o último deles que vier a falecer, no caso de coautoria) e a partir deste marco, contar o prazo previsto no art. 41 [07], da Lei 9.610/98.

O registro, ainda que não exigido para que a proteção passe a se exercer, é um instrumento que facilita o conhecimento das características da obra. Sobre isso, Lessig menciona: "Se formalidades como o registro fossem instauradas [...], um dos aspectos mais difíceis de contar com o domínio público seria removido. Ficaria fácil identificar qual conteúdo é presumivelmente livre" [08].

O objetivo deste "formalismo" não é prejudicar o processo criativo, nem mesmo impor barreiras que dificultem o amparo da obra pelo direito autoral ou desestimular a criatividade, mas sim, dar mais segurança aos autores e aos usuários. Tal registro deve ser simples, de fácil acesso, passível de buscas e com disponibilidade online, a fim de dar visibilidade ao acervo disponível e garantir maior eficiência ao sistema.

Um exemplo fático de como o registro pode auxiliar na identificação de obras em domínio público é o "depósito legal" do Escritório de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional, onde todas as obras ali registradas compõe um arsenal confiável e disponível à pesquisa, permitindo dar publicidade da data do falecimento do autor, e consequentemente, quando sua obra entrará em domínio público.

No entanto, os métodos disponíveis são pouco eficientes e requerem grande esforço por parte do usuário para que este identifique a real situação da obra. Para facilitar tal processo, novas alternativas estão surgindo. Uma delas é a criação de uma marca que identifica as obras livres de proteção patrimonial – a marca do Domínio Público, promovida pela organização Creative Commons [09], que desenvolve e atualiza as licenças gerais públicas do mesmo nome – consistindo em uma maneira de reunir todos estes tipos de obras e universalizar a sua identificação. Assim como se pensou em identificar o copyright [10] pela marca ©, o objetivo é que obras em domínio público passem a ser reconhecidas pela marca abaixo:

A ideia do símbolo é comunicar a situação das obras a todos. A marca indica, portanto, que a obra é de livre utilização, reprodução e modificação, e ao tornar clara essa condição, aumenta a efetividade do acesso aos amplos e ricos acervos em domínio público.


3. Domínio Público Eficaz

Como indicado anteriormente, o domínio público tem por essência o fornecimento de um repositório de uso comum e público de obras que podem ser livremente reproduzidas, exploradas ou modificadas. Portanto, falar em domínio público eficaz significa que esse acervo comum está exercendo suas razões de existir, ou seja, que está disponível aos interessados em acessar as obras que dele fazem parte, e que o uso desses bens intelectuais está assegurado de forma que não traga prejuízos aos usuários. A seguir, são apresentadas tanto condições que podem limitar a eficácia do domínio público – fatores limitadores –, quanto reforçar suas características, ampliando o alcance benéfico das obras que o compõem – fatores fortalecedores.

3.1 Fatores Limitadores

Algumas situações podem influenciar restritivamente a disponibilidade e o acesso às obras em domínio público. Representam barreiras à efetividade desse acervo, haja vista limitarem, e por vezes até impedirem o pleno acesso e uso dos bens intelectuais que deveriam estar de fato disponíveis ao uso de todos. Desse modo, é importante que tais restrições sejam aplicadas de modo a ferir minimamente as funções do domínio público.

3.1.1 Direitos Morais Perpétuos

A Lei 9.610/98, em seu capítulo II, ao abordar os direitos morais do autor, não menciona expressamente a existência de prazo de vigência desses direitos. Além disso, menciona, no parágrafo primeiro do artigo 24 [11], que alguns dos direitos mencionados nos incisos do caput desse mesmo dispositivo se transmitem aos sucessores. Neles estão incluídos os direitos morais de reivindicar a autoria da obra (nesse caso, o direito do herdeiro é o de defender a autoria do criador da obra, não dando ao herdeiro, claro, o direito de assumi-la), o de ter o nome do autor vinculado à obra, o de conservar a obra inédita e o de assegurar a integridade da obra.

O exercício desses direitos morais pelos sucessores do criador, indefinidamente, mesmo quando já se esgotou o prazo de proteção patrimonial e a obra passou a constituir o domínio público, pode reduzir a possibilidade de livre uso desse acervo. É o caso de uma adaptação de obra que seja questionada por parentes já distantes do autor, que poderiam alegar prejuízos à integridade da obra original, ou de obras inéditas do autor, já há muito guardadas, e que poderiam enriquecer o acervo público, caso em que o interesse público se sobreporia ao interesse particular do autor já falecido.

Os direitos morais são parte importante do sistema de proteção autoral e representam o vínculo efetivo do autor com a obra criada. Entretanto, há que se identificar quais dos elementos desses direitos devem se perpetuar no tempo – como o direito de ter o nome vinculado à obra – e quais devem ceder para que não haja desequilíbrio entre a observância desse instituto e o livre acesso às obras em domínio público.

3.1.2 Prazos de Proteção Excessivos

Os longos prazos de proteção aos quais estão submetidas as obras podem representar a perda definitiva de muitas delas. Durante esse período a obra pode deixar de existir, já que o tempo em que é explorada economicamente é, muitas vezes, menor do que o prazo de proteção.

Lessig aponta que esses prazos extensos limitam o acesso às obras e dificultam a possibilidade de mantê-las disponíveis quando caídas em domínio público:

Os recursos para preservação dessas obras [principalmente as antigas, cujo valor comercial é baixo] já são naturalmente escassos e a necessidade de enfrentar o labirinto de autorizações autorais simplesmente mata a possibilidade de sua preservação. O resultado são centenas de milhares de obras que cairiam em domínio público, podendo ser preservadas, publicadas e digitalizadas por qualquer um, que acabam se deteriorando juntamente com seu suporte físico porque ninguém consegue autorização para lidar com elas. [12]

Ou seja, a proteção autoral não garante que a obra será preservada por seu titular e inclusive impede que outros assegurem sua existência. Essas restrições muitas vezes impedem que a obra venha a fazer parte do acervo em domínio público, uma vez que podem se perder antes que o prazo protetivo tenha cessado.

3.1.3 Acesso às cópias físicas da obra

Outra questão que pode limitar a efetividade do domínio público reside diretamente no exercício – legítimo – do direito de propriedade, mais precisamente no direito de impedir o acesso a uma cópia física de uma obra. Se essa cópia for a última, ou mesmo rara, de alguma obra que já esteja em domínio público, não se conseguirá reproduzi-la para que possa ser acessada de forma ampla.

É o caso, por exemplo, de uma pintura de Debret, guardada por um colecionador em sua casa, e que a mantém inacessível. Debret faleceu em 1848, portanto, suas obras já estariam em domínio público. Porém, no caso hipotético apresentado, a obra inacessível, mesmo que juridicamente faça parte do domínio público, pois já decorreu o prazo de proteção determinado em lei, não está, de fato, disponível.

Nessa situação, poderia haver dispositivos legais que encorajassem os proprietários de obras em domínio público a permitirem o acesso para reproduções dessa obra, ou mesmo colocassem reproduções da obra à disposição, por exemplo, em catálogos digitais. Ademais, quando esse acesso fosse impedido, se poderia pensar na atuação estatal, levando-se em conta o interesse público que permeia a questão. Nesse sentido, Denis Barbosa:

Entendo similarmente que haja uma obrigação estatal, à luz do art. 215 da Carta, de garantir os instrumentos de acesso ao domínio público autoral. Cópias de filmes que caem, em teoria, em domínio público, mas permanecem em poder dos titulares anteriores, obras plásticas inacessíveis à reprodução, mecanismos de derivação de obras com propósitos exclusivamente de frustrar a extinção do termo autoral – todos são mecanismos em relação aos quais haverá dever estatal de atuação. [13]

3.1.4 Medidas Técnicas de Proteção

As medidas técnicas de proteção (MTP ou TPM, do inglês Technical Protection Measure) são implementações tecnológicas que vêm sendo utilizadas em obras digitais de modo restringir usos não autorizados. O problema ocorre porque muitas vezes esses mecanismos acabam se excedendo na proteção e impedindo mesmo aquelas utilizações que a própria lei permite, como as limitações aos direito autorais. O mesmo ocorre quando a obra está em domínio público.

Assim, se um mecanismo tecnológico impede que se copie um CD ou de um DVD que contenha, por exemplo, uma música ou um filme, esse mecanismo estará impedindo que se reproduza um pequeno trecho para uso individual e sem fins comerciais, como previsto no inciso II do artigo 46 [14] da Lei 9.610/98. Mas a situação agrava-se quando as obras passam a pertencer ao domínio público.

Obras em domínio público deveriam poder ser reproduzidas, executadas ou utilizadas sem nenhum tipo de restrição, salvo os direitos morais do autor (ver item 3.1.1). Uma medida técnica de proteção que impeça essas utilizações está criando barreiras à efetividade do domínio público; por essa razão, mecanismos tecnológicos que tenham a finalidade de proteger usos não autorizados devem ser implementados de modo que permitam as utilizações autorizadas, não apenas aquelas decorrentes da utilização natural daquele bem, mas também todos aqueles usos permitidos pela lei.

3.2 Fatores Fortalecedores

A seguir são listadas algumas condições/ações que podem reforçar o acesso e a disponibilidade do acervo representado pelo domínio público. Esses fatores vão ao encontro das já citadas recomendações 16 e 20 da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, que indicam a necessidade de preservação e promoção de um domínio público robusto. Reforçar o acesso a esse acervo significa ampliar a matéria prima para novas criações. Também concorre para a observância dos ditames constitucionais de oferta de amplo acesso à cultura [15] e preservação do patrimônio cultural [16].

Um domínio público fortalecido representa a possibilidade de um ciclo virtuoso de bens intelectuais desse acervo gerando a criação de novas obras que um dia pertencerão ao próprio domínio público, que constantemente se ampliará.

3.2.1 Tratamento Legal/Normativo do Domínio Público

A existência de uma definição na lei para o domínio público seria um elemento favorável ao fortalecimento desse instituto. A legislação brasileira sobre direitos autorais não traz essa definição e apenas de modo esparso aborda esse instituto: enumera, no rol taxativo do artigo 45 [17] da Lei 9.610/98, as obras que fazem parte deste acervo de uso comum e confere ao Estado o dever de defender a obra caída em domínio público, no parágrafo 2º [18] do artigo 24 da mesma lei. Vale mencionar que a proteção estatal se dá em face do interesse eminentemente público desse repositório, se relacionando aos direitos fundamentais à cultura, à informação e à educação.

Para encontrar uma definição técnica do domínio público acaba sendo necessário recorrer à doutrina, o que traz certo grau de imprecisão em face das diversas conceituações elaboradas pelos diferentes autores que tratam do tema.

A inclusão do instituto do domínio público de modo objetivo e pela lei poderia trazer maior segurança e, consequentemente, tranquilidade na utilização desse acervo, tornando-o mais efetivo. Assim, não se trataria apenas de inserir a definição legal de domínio público, mas também da determinação clara da sua amplitude, das formalidades e dos mecanismos de proteção e preservação desse acervo.

Um ponto indicado no estudo mencionado na introdução desse texto [19], que também poderia ser tratado dentro do espaço normativo reservado ao instituto do domínio público, visando sua preservação e a utilização com segurança das obras, diz respeito a dispositivo que impedisse a "recaptura" de obras, ou seja, que o ingresso de uma obra no domínio público fosse ato definitivo, sem que houvesse possibilidade de apropriação particular exclusiva desses conteúdos, qualquer que fosse o pretexto. Nesse sentido, aponta Denis Barbosa [20]:

O ingresso no domínio público em cada sistema jurídico é incondicional, universal e definitivo; a criação passa a ser comum de todos, e todos têm o direito de mantê-la em cri comunhão, impedindo a apropriação singular. Não se trata de abandono da obra, res nullius ou res derelicta, suscetível de apropriação singular por simples ocupação. (grifou-se)

3.2.2 Registro de Obras em Domínio Público

Abordou-se que um dos fatores que influenciam na efetividade do domínio público diz respeito à obtenção de informações sobre as obras. Por exemplo, identificar o nome do autor para que sejam concedidos os devidos créditos, ou mesmo confirmar que a obra está de fato incluída nesse acervo comum. E uma das maiores dificuldades reside exatamente na busca por essas informações.

Por essa razão é importante que haja iniciativas para incentivar o cadastro de informações sobre obras intelectuais protegidas pelo direito autoral. Não apenas quando uma obra passar a ser parte do domínio público, mas antes, especialmente em data próxima a da produção, quando é mais fácil a obtenção de informações completas acerca da criação. É importante também o reforço dos órgãos responsáveis pelo registro dessas informações, que devem contar com o suporte tecnológico adequado para que essas informações possam de fato ser levadas à sociedade de modo simples e econômico.

A criação de um sistema de registro centralizado, ou ao menos padronizado, que permita o intercâmbio de informações entre entidades que armazenam dados sobre obras protegidas pelo Direito Autoral, proporcionaria a integração entre esses repositórios, permitindo conhecer mais precisamente a situação das obras e, consequentemente, oferecendo maior segurança para utilizá-las.

3.2.3 Soluções Tecnológicas de Apoio ao Domínio Público

Do mesmo modo que a tecnologia pode prejudicar o domínio público – com o abuso nas medidas técnicas de proteção, como apontado anteriormente, por exemplo –, ela tem sido uma importante aliada para o fortalecimento desse acervo comum.

Se, como já mencionado, o domínio público tem com elemento essencial a disponibilidade das obras, o ambiente digital, ao facilitar o acesso aos conteúdos, quer por meio da possibilidade da reprodução digital das obras, quer por meio da interconectividade propiciada pelas redes de computadores, especialmente a Internet, representa um novo grau de efetividade ao domínio público.

Porém, a tecnologia deve ser também ferramenta que permita que se vá além de permitir o acesso mais amplo às obras em domínio público. Ela deve prover meios para identificação ágil das informações necessárias para utilização das obras com segurança, a fim de, além de garantir a livre utilização das obras, salvaguardar os direitos morais do autor.

A digitalização das obras também reforça o domínio público sob a ótica da preservação do conteúdo. Obras atreladas a suportes físicos, como papel, discos, fitas, têm sua deterioração associada à do próprio meio que a contém. A dificuldade de migrar esses conteúdos cujo suporte está se deteriorando leva à perda em definitivo de muitas obras, cujo período de exploração comercial já se findou, deixando poucos interessados na preservação desses conteúdos.

A facilidade de cópia para o meio digital, associado ao custo mais baixo desse processo, aumenta sensivelmente a possibilidade de que obras consigam ultrapassar longos prazos de proteção sem que se percam pela destruição dos meios em que foram originalmente registradas. Porém, para que essa possibilidade se transforme em realidade, também devem ser observados alguns cuidados relacionados à própria tecnologia, como políticas de preservação dos conteúdos digitais, com processos de migração periódicos e utilização de formatos abertos.

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Sobre os autores
Gabriela Arenhart

Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), membro do Grupo de Estudos em Direito Autoral e Informação da Universidade Federal de Santa Catarina (GEDAI/UFSC).

Christiano Lacorte

Advogado e analista de informática. Analista legislativo no Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bacharel em Ciências Jurídicas pelo Instituto de Educação Superior de Brasília e bacharel em Ciências da Computação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Especialista em Tecnologias da Informação pela Uneb/ITEI. Cursos de extensão em Direito da Tecnologia da Informação (FGV) e Direitos Autorais (FGV). Autor de artigos sobre Direito da Informática, Direito Administrativo e Direitos Autorais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARENHART, Gabriela ; LACORTE, Christiano. Domínio público fortalecido: acesso ao conhecimento e fonte de criações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2973, 22 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19815. Acesso em: 24 abr. 2024.

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