Capítulo III – DIREITOS FUNDAMENTAIS
Se considerarmos que o feto é um ser vivo, dotado de direitos, verificaremos a vinculação existente entre a autorização do aborto e a teoria geral dos direitos fundamentais. A partir de então, pode-se defender a sobreposição dos interesses da gestante em detrimento do direito à vida do feto ou, em sentido oposto, a inviolabilidade do anencéfalo em face das pretensões de ordem não existencial da mãe.
Nessa senda, embora estejamos diante de teses conflitantes – direito à vida intra-uterina do feto anencéfalo em contraposição aos direitos relacionados ao bem estar físico e psíquico da gestante –, os defensores de ambos os segmentos pugnam pela incidência dos direitos fundamentais, no intuito de que seus posicionamentos prevaleçam. Logo, percebemos a ocorrência de embate entre direitos igualmente tutelados pelo ordenamento jurídico.
Fala-se, então, em eficácia horizontal dos direitos fundamentais, pois a colisão de interesses dessa ordem se dá nas relações entre particulares, ou seja, entre partes que se encontram no mesmo plano. No aborto anencefálico, diversos direitos fundamentais, tanto do feto como da gestante, colidem, gerando uma tensão que deve ser solucionada pela autoridade judiciária através do método da ponderação.
Estando as partes opostas em situação de igualdade, percebemos que a resolução do problema é bastante complexa. Contrariamente, é o que acontece em relação à eficácia vertical dos direitos fundamentais, pois estes são capazes de se sobreporem mais facilmente ao Estado, transpondo da posição de sujeição na qual o particular se encontra e que o obriga a suportar a atividade estatal ligada a direitos de relevo para a sociedade. A respeito dessa temática, assinala Jorge Novais:
Quando um indivíduo opõe um direito fundamental ao Estado está a opor-lhe uma garantia forte, um trunfo, que o Estado só pode bater com uma justificação suficientemente poderosa, de realização quase compulsiva. Aí reside, precisamente, a força da garantia fundamental. O direito fundamental só cede se o Estado for capaz de encontrar uma justificação de peso intrínseco indiscutível; a simples vontade da maioria democrática não é suficiente para justificar a restrição. Mas quando se pretende opor o mesmo direito a outro particular o que é que encontramos da outra parte? Encontramos, invariavelmente, outro direito fundamental. Ao nosso trunfo responde a outra parte com outro ou até o mesmo trunfo. Por que razão deve ser o meu a prevalecer? [37]
Dentre os direitos que entraram em choque quando está em pauta a legalização do aborto do feto anencéfalo, três merecem maior aprofundamento, quais sejam, os direitos à vida, à dignidade da pessoa humana, e à saúde da gestante.
3.1 DIREITO À VIDA E SUA INVIOLABILIDADE
O direito à vida, conceituado por Dirley da Cunha Júnior com sendo "o direito legítimo de defender a própria existência e de existir com dignidade, a salvo de qualquer violação, tortura ou tratamento desumano e degradante" [38] está constitucionalmente amparado pelo art. 5º, que resguarda sua inviolabilidade. Embora se apresente como essencial para a fruição de todos os demais direitos, o direito à vida não é absoluto, vez que não pode ser analisado em si mesmo, comportando mitigações que se legitimam em razão das circunstâncias.
A Constituição e a legislação infraconstitucional brasileira tutelam a vida humana tanto em sua fase intra como extra-uterina. Por isso, o Código Penal tipifica como crime o aborto (arts. 124 a 127), quando a interrupção da vida ocorre no lapso temporal que vai da concepção até o período anterior ao início do parto; considera crime também o homicídio (art. 121) e o infanticídio (art. 123), quando a existência do indivíduo é ceifada a partir do início do parto, sendo caracterizado um ou outro delito a depender do contexto. A respeito da proteção da vida humana, dispõe Maria Celeste Cordeiro dos Santos
A Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu artigo 5º, consagrou, entre outros direitos básicos, o direito à vida. Tal direito é inviolável (sagrado). Embora o texto constitucional não se refira expressamente ao nascituro, tudo está a indicar que sua vida é um bem que a Constituição se obriga a proteger de forma a que não sofra qualquer violação. Protege-se, assim, também, a vida humana intra-uterina. [...] Em qualquer dos estágios, zigoto, mórula, blástula, concepto, embrião, feto, recém-nascido há apenas um "continuum" do mesmo ser. [39]
Ainda mais, no âmbito da legislação supranacional, o Brasil é signatário de vários tratados internacionais que buscam tutelar a vida, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
Por se tratar de um princípio, a inviolabilidade da vida é considerada relativa. Exemplo dessa afirmativa se verifica diante da colisão entre o direito à vida titularizado por dois indivíduos, estando um deles em situação de legítima defesa. Não havendo como preservar o direito os ambos, o ordenamento jurídico admite que um deles seja sacrificado. O mesmo ocorre no caso do já mencionado aborto terapêutico, no qual se busca salvar da morte a gestante, que se encontra em estado de necessidade, em detrimento da existência do feto.
A própria Constituição, em seu art. 5º, LXVII, "a", relativiza a vida ao estabelecer a possibilidade de aplicação de pena de morte em caso de guerra declarada contra países estrangeiros. Regulando este dispositivo constitucional, o Código Penal Militar, no art. 56, estabelece que tal sanção será executada por fuzilamento. São punidos com a pena capital os delitos previstos no referido estatuto repressivo, dentre outros, traição (art. 355), favorecimentos de inimigos (art. 356), cobardia (art. 363) fuga em presença de inimigo (art. 365), espionagem (art. 366), motim, revolta ou conspiração (art. 368), rendição ou capitulação (art. 372).
Em todos os casos acima mencionados, foram feitas ponderações abstratas pelo legislador a respeito dos valores que, ao entrarem em rota de colisão, deveriam prevalecer. Isso se deve ao fato de que o princípio da inviolabilidade do direito à vida, assim como os demais, é apenas uma diretriz a ser seguida, jamais algo cristalizado e intocável. Nesse sentido, preleciona George Marmelstein
Esse fenômeno – a colisão dos direitos fundamentais – decorre da natureza principiológica dos direitos fundamentais, que são enunciados quase sempre através de princípios. Como se sabe, os princípios ao contrário das regras, em vez não emitirem comandos definitivos, na base do "tudo ou nada", estabelecem diversas obrigações (dever de respeito, proteção e promoção) que são cumpridas em diferentes graus. Logo, não são absolutos, pois o seu grau de aplicabilidade dependerá das possibilidades fáticas e jurídicas que se oferecem concretamente, conforme assinalou o jurista alemão Robert Alexy. [40]
Assim, é facilmente refutada a tese de cunho eminentemente religioso defendida pelos opositores da interrupção da gestação nos casos de anencefalia. Eles sustentam, de modo equivocado, que o direito à vida é absoluto. Todavia, conforme foi acima demonstrado, a própria Constituição, seguida pela legislação infraconstitucional, relativiza tal direito em várias hipóteses.
3.2 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A dignidade da pessoa humana se mostra como a fonte primária da qual os demais direitos e garantias fundamentais extraem sua razão de ser. Nesse sentido, são as precisas palavras de Ingo Sarlet, ao afirmar que "além do seu enquadramento na condição de princípio (valor) fundamental, é alicerce de mandamento definidor de direito e garantia, mas também de deveres fundamentais". [41]
O princípio em comento está intrinsecamente ligado à integridade moral de que é dotado todo ser humano, apresentando-se de modo ambivalente em relação a atuação estatal. De um lado, figura em um aspecto negativo, exigindo uma abstenção dos poderes públicos e dos particulares para que não realizem condutas violadoras do feixe de princípios acobertados pela dignidade da pessoa humana; por outro, apresenta-se através de uma face positiva, exigindo a atuação do Estado para proteger a existência minimamente digna do indivíduo.
A dignidade da pessoa humana é, em síntese, um princípio de alta densidade valorativa que norteia a atuação de todos, seja em uma relação vertical – com o Estado – seja horizontal – com outros particulares – de modo a assegurar que cada um dos indivíduos componentes do tecido social possa se desenvolver física, psicológica e socialmente.
No caso do anencéfalo, tendo em vista a certeza da morte, a gravidez deixa de ser a celebração da vida e se torna um processo odioso para a gestante por ter que carregar em seu ventre uma criança que não poderá sobreviver. Em virtude do abalo psíquico que representa a gestação, a impossibilidade da antecipação terapêutica do parto ofende gravemente à dignidade da mulher e, por consequência, a de seus familiares.
Durante meses, a partir do momento em que é diagnosticada a anecefalia, a mulher terá que conviver constantemente com intenso sofrimento mental. É inquestionável a ocorrência de danos à integridade moral e psicológica da gestante, pois as expectativas e os planos gerados em uma gravidez saudável são transformados em dor, angústia, frustração, rejeição, levando, muitas vezes, a um quadro profundo de depressão.
O relato de Gabriela Oliveira, jovem de 18 anos que descobriu estar grávida de um feto acometido de anencefalia, exemplifica claramente esta situação
(...) Um dia não aguentei. Eu chorava muito, não conseguia parar de chorar. O meu marido me pedia para parar, mas eu não conseguia. Eu saí na rua correndo, chorando, e ele atrás de mim. Estava chovendo, era meia-noite. Eu estava pensando no bebê. Foi na semana anterior ao parto. Eu comecei a sonhar. O meu marido também. Eu sonhava com ela no caixão. Eu acordava gritando, soluçando. O meu marido tinha outro sonho. Ele sonhava que o bebê ia nascer com cabeça de monstro. Ele sonhava que ela tinha cabeça de dinossauro. Quando chegou perto do nascimento, os sonhos pioraram. Eu queria ter tirado uma foto dela ao nascer, mas os médicos não deixaram. Eu não quis velório. Deixei o bebê na funerária a noite inteira e no outro dia enterramos. Como não fizeram o teste do pezinho na maternidade, foi difícil conseguir o atestado de óbito para enterrar. [42]
Desse modo, no caso do aborto do feto do anencéfalo, poderíamos vislumbrar duas espécies de dignidade em conflito: a dignidade da pessoa da gestante, consistente em não ser obrigada a manter uma gravidez que represente tortura psicológica, diante da certeza da morte prematura de seu filho; e a dignidade do feto, que, por se tratar de um nascituro, deve ser resguardada enquanto vida tiver, mesmo que de curta duração.
3.3 DIREITO À SAÚDE
A Organização Mundial da Saúde, ao divulgar a carta de princípios de 7 de abril de 1948, documento contendo elementos norteadores do reconhecimento do direito à saúde e da forma como as nações deveriam promovê-lo, conceituou saúde como sendo "o estado do mais completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de enfermidade". [43] Por isso, para que um indivíduo seja diagnosticado como saudável, é indispensável observar-se sua qualidade de vida como um todo.
De acordo com essa análise ampliativa do conceito de saúde, não se pode afirmar que a gestante de um feto anencéfalo é considerada saudável. Conforme afirmado linhas acima, é bastante frequente a ocorrência de distúrbios emocionais gerados pela impotência que aflige a mulher, por restar-lhe apenas a possibilidade de esperar o término da gravidez e a consequente morte de seu filho. Durante esse lapso, ela é diariamente torturada, o que poderá acarretar transtornos psicológicos por um longo período.
Ademais, a saúde física da gestante também é abalada, posto que, em decorrência da má-formação fetal, podem advir sérias complicações, como o aumento das chances de doenças hipertensivas na gravidez, de pré-eclâmpsia, eclâmpsia, desmaios, convulsões. Outrossim, há um alto índice de óbitos de fetos anencéfalos quando ainda no útero materno, representando perigo para a vida da gestante.
O parecer da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia juntado aos autos da ADPF nº 54 ressalta os problemas recorrentes nesse tipo de gestação ao afirmar que
As complicações maternas são claras e evidentes. Deste modo, a prática obstetrícia nos tem mostrado que: A) A manutenção da gestação do feto anencéfalo tende a se prolongar além de 40 semanas. B) Sua associação com polihidrâminio (aumento do volume de líquido amniótico) é muito frequente. C) Associação com doença hipertensiva específica da gestação (DHEG). D) Associação com vasculopatia periférica de estase. E) Alterações do comportamento e psicológicas de grade monta para a gestante. F) Dificuldades obstetrícias e complicações no desfecho do parto de anencéfalos de termo. G) Necessidade de apoio psicoterápico no pós-parto e no puerpério. H) Necessidade de registro de nascimento e sepultamento desses recém-nascidos, tendo o cônjuge que se dirigir a uma delegacia de polícia para registrar o óbito. I) Necessidade de bloqueio da lactação (suspender a amamentação). J) Puerpério com maior incidência de hemorragias maternas por falta de contratilidade uterina. K) Maior incidência de infecções pós-cirúrgicas devido às manobras obstetrícias do parto de termo.
Destarte, percebemos que a intervenção terapêutica se mostra como a melhor solução para preservar a saúde física e mental da gestante, haja vista que, muito embora a gravidez não provoque um risco iminente, traz mais problemas que a gestação de uma criança saudável, sendo a permanência do feto no útero da mãe potencialmente perigosa.
3.4. CONFLITO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Tendo em vista a diversidade ideológica que emana das normas constitucionais, estando nelas consagrados valores e interesses contrapostos, típicos de uma sociedade plural, é bastante comum a colisão entre direitos fundamentais ou mesmo entre as ditas normas. No caso antecipação do parto de fetos anencéfalos, observamos conflitos, como entre o direito à vida do feto e o direito à saúde psicofísica da gestante.
George Marmelstein explica com clareza as consequências advindas da contradição existente entre as normas
O que ocorre é que, muitas vezes, o dever de respeitar, proteger e promover determinado direito pode resultar em eventual violação a outro direito. Assim, por exemplo, a obrigação que o Estado possui de adotar medidas para proteger o meio ambiente pode resultar em uma possível afronta ao dever de respeitar o direito de propriedade. O dever de promover a solidariedade é potencialmente capaz de invadir a zona de respeito à livre iniciativa. O dever de respeitar a liberdade de expressão pode gerar uma ameaça ao dever de proteger os direitos de personalidade e assim por diante. [44]
Embora estejam em pauta valores de extrema relevância, é necessário haver limites para o exercício dos direitos fundamentais quando a coexistência de outros valores, também resguardados pela Constituição, são ameaçados. Isto se deve ao fato de que, se todos pudessem exercitar suas prerrogativas constitucionais com plenitude e sem qualquer restrição, ninguém teria direito algum. Todavia, devemos atentar para a exigência de justificativa em relação à referida supressão dos direitos, evitando-se, assim, a arbitrariedade.
Os métodos tradicionais de solução de conflitos normativos são ineficientes para resolver a colisão entre direitos fundamentais e determinar, no caso concreto, qual valor deve prevalecer. Não é possível aplicar os critérios hierárquico, temporal ou da especialização, pois se tratam de normas que integram a Constituição. Tampouco é cabível o método da subsunção, no qual é feito o enquadramento dos fatos à norma, vez que mais de uma norma postula aplicação.
Na tentativa de se evitar abusos na limitação dos direitos fundamentais, é preciso aplicar o princípio da proporcionalidade, sendo respeitados os critérios da adequação, necessidade ou vedação de excesso e de insuficiência e, por fim, proporcionalidade em sentido estrito. Assim, a privação estabelecida por qualquer medida limitadora somente será legítima caso sejam observados, obrigatoriamente os três aspectos mencionados.
De acordo com o primeiro critério, adequação, exige-se que o meio adotado pelo Poder Público se mostre apto a atingir o resultado inicialmente visado. Em relação à necessidade, busca-se escolher, dentre todos os meios adequados, aquele que ocasione menores supressões aos direitos fundamentais. Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito determina que, para ser válida, a medida adotada deve oferecer uma vantagem maior do que as desvantagens advindas das consequências naturais daquele ato adotado.
O princípio em comento possui suas raízes na limitação do Poder Executivo, contendo as ingerências perpetradas pela Administração na liberdade dos indivíduos. Posteriormente foi relacionado ao princípio da vedação do excesso, exigindo-se não apenas uma limitação quanto às intromissões administrativas, mas também em relação a todo e qualquer ato realizado pelo Estado.
É nesse meio que surge a ponderação dos direitos fundamentais, técnica adotada para harmonizar, manter em concordância prática de princípios que, diante de determinado caso concreto, entrem em conflito.
Cumpre registrar que o método de ponderação é utilizado para resolver conflitos entre princípios, normas impositivas de otimização, uma vez que as regras não podem coexistir quando colidentes. Nesse sentido o ilustre constitucionalista José Joaquim Gomes Canotilho leciona que
em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objecto de ponderação, de harmonização, pois eles contêm apenas "exigências" ou "Standards" que, em primeira linha (prima facie), devem ser realizados; as regras contêm fixações normativas definitivas, sendo insustentável a validade simultânea de regras contraditórias. [45]
Sabe-se que os princípios constitucionais encontram-se em patamar de igualdade, não havendo in abstracto relação qualitativa entre eles, razão pela qual referida técnica só se mostra eficaz quando da apreciação de conflitos instaurados concretamente. Afirmar que certos princípios possuiriam status de maior relevo em relação aos outros seria atentar contra a unidade e a concordância prática da Constituição.
Nesse sentido o jurista nunca assaz citado de Coimbra afirma que
A pretensão de validade absoluta de certos princípios com sacrifício de outros originaria a criação de princípios reciprocamente incompatíveis, com a consequente destruição da tendencial unidade axiológiconormativa da lei fundamental. Daí o reconhecimento de momentos de tensão ou antagonismo entre os vários princípios e a necessidade, atrás exposta, de aceitar que os princípios não obedecem, em caso de conflito, a uma "lógica do tudo ou nada", antes podem ser objecto de ponderação e concordância prática, consoante o seu "peso" e as circunstâncias do caso. [46]
Nesse sentido são as precisas lições de Dirley da Cunha Júnior ao demonstrar o caráter consequencial da ponderação como saída lógica à superação de conflitos entre princípios constitucionais e o modo de sua utilização. In verbis:
A existência de colisões de normas constitucionais, portanto, leva à necessidade de ponderação, não se mostrando úteis os critérios tradicionais de solução de conflitos normativos – hierárquico, cronológico e da especialização – quando a colisão se dá entre normas da mesma Constituição originária. Nesse cenário, a ponderação dos bens em conflito é a técnica a ser utilizada pelo intérprete, em face da qual ele (i) fará concessões recíprocas, procurando preservar o máximo possível de cada um dos interesses em disputa ou, no limite, (ii) procederá à escolha do direito ou bem que irá prevalecer, em concreto, por realizar mais adequadamente a vontade constitucional. [47]
Em síntese, sempre que for instaurado um conflito entre normas constitucionais de caráter principiológico, o intérprete deverá se valer da técnica da ponderação, buscando a coexistência harmônica de todos os princípios em tensão. Todavia, apenas quando tal medida não for viável é que o hermeneuta sopesará, dentre os princípios, aquele que mais se conformará com a Constituição, dando-lhe preferência.
Desse modo, surgem, então, os questionamentos em relação à gestação de um feto anencéfalo: é razoável garantir-se o direito à vida intra-uterina de um feto que não possui condições de sobreviver fora do útero materno em detrimento da saúde física e psíquica de sua genitora? O bem-estar da gestante deve suplantar a vida de um ser em virtude de esta ser breve? Quais princípios devem prevalecer?
Para responder a tais indagações, utilizaremos as três etapas da ponderação, quais sejam, identificar as normas e os princípios envolvidos na ponderação e agrupá-los; analisar, no caso concreto, as circunstâncias e consequências provenientes da solução a ser adotada; e, por fim, realizar a ponderação propriamente dita para identificar qual grupo de princípios deve prevalecer.
Dando início à primeira, agrupamos facilmente as normas e os princípios aplicados ao caso, posto que já foram objeto de análise linhas acima. De acordo com a direção para a qual apontam, de um lado, ficará o princípio da inviolabilidade do direito à vida (art. 5º, caput, da CF), de outro, o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CF) e o direito à saúde (arts. 6º, caput, e 196, ambos da CF).
Na segunda etapa, verificamos como consequência da vedação da interrupção da gestação do feto anencéfalo a prolongação do sofrimento psicológico, equiparado à tortura, pelo qual passa a gestante, além do risco a sua saúde. Por outro pórtico, em decorrência da antecipação do parto, observamos que o feto será privado de uma sobrevida fora do útero de apenas alguns minutos.
Por fim, na terceira e última etapa, ao realizar a ponderação de fato, concluímos que obrigar a mulher a carregar em seu ventre um feto sem chances de sobreviver não atende ao princípio da proporcionalidade. Se o direito à vida intra-uterina do feto colide com o direito à saúde física e psíquica da gestante, bem como com sua dignidade enquanto pessoa humana, estes direitos devem prevalecer sobre aquele, devendo ser permitido o aborto nessas circunstâncias.