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Interrupção da gestação do feto anencéfalo: aborto ou antecipação terapêutica do parto?

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CAPÍTULO IV – INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO DO FETO ANENCÉFALO

Inicialmente cumpre relembrar que já tratamos a interrupção da gestação do feto anencéfalo sob a perspectiva de que ele, como ser vivo, é dotado de direitos. Nesse sentido, haveria uma colisão entre os direitos do feto e os da gestante. Assim, para que se ponha fim a gravidez, faz-se necessário a realização de uma ponderação de valores. Como afirmamos no item anterior, esse é o único meio de solucionar o conflito entra direitos fundamentais.

Resta-nos, doravante, explorarmos a questão ao abrigo da corrente esposada na ADPF nº 54, segundo a qual a interrupção da gravidez em casos de anencefalia é atípica. De acordo com tal entendimento, o médico que, com o consentimento da gestante, realiza os procedimentos para a antecipação do parto em virtude da presença da anomalia em tela não comete crime algum.

4.1 ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL nº 54

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) surgiu no ordenamento jurídico brasileiro como um instrumento de aferição subsidiária da compatibilidade vertical de normas em face da Constituição Federal, tendo cabimento apenas na impossibilidade do manejo dos demais institutos de controle concentrado de constitucionalidade. Pode ser provocada de forma autônoma, sendo o procedimento objetivo e sem partes, ou de forma incidental, no caso de um debate surgido concretamente.

Nesse sentido, a CNTS, visando discutir a possibilidade de se antecipar o parto nos casos de anencefalia, propôs a ADPF nº 54, sendo distribuía em 17 de junho de 2004 ao ministro relator Marco Aurélio. A referida ação constitucional trouxe como fundamento jurídico a violação de preceitos fundamentais concernentes aos princípios da legalidade, dignidade da pessoa humana, autonomia da vontade e demais princípios relacionados à saúde.

A mencionada arguição tem por fim interpretar, em conformidade com a Constituição, a legislação infraconstitucional que disciplina o aborto. Busca-se afastar o entendimento, prevalente na atualidade, segundo o qual a interrupção da gestação do feto anencéfalo se enquadra nos arts. 124 e 126, caput, do CP. De acordo com as razões suscitadas na exordial da ADPF, em casos de gravidez nos quais essa má-formação fetal é diagnosticada, não pode haver crime de aborto, pois este tipo penal tutela a vida. Em hipóteses tais, ante a inviabilidade da vida, qualquer conduta voltada para por fim a gestação seria atípica.

Percebe-se, então, que a intenção da alegada ADPF não é inclusão de mais uma excludente de ilicitude do aborto, o que se mostraria impossível juridicamente. Diante do princípio da separação harmônica de Poderes, é vedado ao Judiciário atuar como legislador positivo, suprindo as omissões do Legislativo. Nesse tom, o intuito da arguição é interpretar os dispositivos do Código Penal em adequação com o direito à saúde e com os princípios da dignidade da pessoa humana e da legalidade, sem, contudo, violar o direito à vida.

Trata-se de controle abstrato de constitucionalidade, pois, por serem normas plurissignificativas, os atos impugnados podem ser compreendidos de mais de uma forma. Assim, é utilizada a técnica de interpretação conforme a Constituição. Com ela visa-se excluir a interpretação que impede a antecipação terapêutica do parto.

O advogado Luís Roberto Barroso, subscritor da ADPF, esclareceu a respeito

Não se pode nem se espera que o Supremo Tribunal Federal atue como legislador positivo no processo objetivo aqui examinado, criando uma norma até então inexistente. A pretensão formulada pela autora da ação pode ser enquadrada em uma das duas categorias: (i) a da aplicação direta e indireta do texto constitucional; ou (ii) a da aplicação do direito infraconstitucional em harmonia com a Constituição. Em nenhuma das situações pretende-se que o STF inove originariamente na ordem jurídica, mas apenas que extraia do sistema a disciplina imposta à matéria. [48]

Em primeiro de julho de 2004, o ministro Marco Aurélio deferiu monocraticamente o pedido a cautelar da ação em tela, consistente na suspensão dos processos que, até então, ainda não tiveram o transito em julgado, nos quais fosse discutida a possibilidade de abortamento de fetos com anencefalia e o reconhecimento do direito de interromper a gravidez desde logo. [49] No entanto, em 20 de outubro de 2004, a medida foi revogada parcialmente em decisão plenária no que tange ao direito de submissão ao aborto terapêutico.

Vale ressaltar que, em seu voto sobre o juízo de admissibilidade da ADPF nº 54, o então ministro e presidente do STF, Nelson Jobim, proferiu entendimento favorável ao pleito. Segundo ele, a aplicação da causa de excludente de ilicitude art. 128, inciso I, do Código Penal, pressuporia a existência de vida viável, e que, nesse caso, não há que se discutir, sequer, a respeito da aplicação do próprio tipo penal do aborto constante do art. 124 do Diploma Repressivo. Destarte, Nelson Jobim afirmou que o feto, nessas circunstâncias, não é merecedor do amparo constitucional.

Diante da grande repercussão que gerou a propositura da ADPF, o relator, em 30 de setembro de 2004, decidiu pela realização de audiência pública com a participação de Ministros de Estado, representantes de entidades religiosas, sociedades civis e instituições científicas composta por profissionais da saúde. Estas no intuito de que trazer conhecimentos extrajurídicos para embasar a decisão daquela Corte Constitucional. Contudo, as audiências somente ocorreram nos meses de agosto e setembro de 2008.

Nos dias 30 de março e 03 de abril de 2009, a CNTS e o Advogado-Geral da União apresentaram alegações finais, respectivamente. Em 07 de julho de 2009, a Procuradoria-Geral da República ofertou parecer favorável à procedência da ADPF. Durante todo o ano de 2010 o processo permaneceu sem qualquer movimentação, estando atualmente os autos conclusos ao relator desde 26 de abril do corrente ano, não havendo data prevista para julgamento pelo plenário do STF.

4.2 ATIPICIDADE DA CONDUTA

Como foi dito anteriormente, há ainda o entendimento de que a interrupção da gravidez nos casos de anencefalia não contraria o texto constitucional, pois, considerando a anomalia apresentada pelo feto, não haveria que se falar em vida. A condição do anencéfalo seria equivalente à do indivíduo acometido por morte cerebral, por estarem ausentes os hemisférios cerebrais e o córtex, possuindo somente o tronco cerebral. Vejamos:

Através de uma primeira argumentação, conclui-se que inexiste afronta ao direito à vida, por se tratar de um ser "biologicamente vivo (porque feito de células e tecidos vivos), mas juridicamente morto", já que o conceito de morte adotado pela legislação brasileira – respaldado na literatura médica e no parecer do CFM sobre o assunto – não se restringe à cessação dos movimentos cardio-respiratórios, incluindo a ausência de atividade cerebral. [50]

A afirmação retro transcrita é respaldada pela Lei nº 9.434/07, que trata da remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante. Segundo o art. 3º do referido diploma legal [51], o fim da vida ocorre no momento da constatação da morte encefálica, mesmo que o indivíduo ainda esteja respirando e tenha batimentos cardíacos. Esse diagnóstico é dado sempre que se verifica a parada irreversível das funções do cérebro.

Por conseguinte, o feto anencefálico, ao se encontrar em situação análoga a de quem sofre morte cerebral, não tem vida, logo, esta jamais poderia ser tutelada pelo Direito. Logicamente, desse raciocínio decorre o compreensão de que, observada a presença da anomalia em testilha, não são aplicados os tipos constantes nos arts. 124, 126, caput, e 128, incisos I e II, do CP, já que tais dispositivos visam resguardar a vida. Cezar Roberto Biencourt comunga desse pensamento ao prelecionar

Ora, se a "morte cerebral" significa a morte, ou, se preferirem, a ausência de vida humana, a ponto de autorizar o "esquartejamento médico" para fins científico-humanitários, o que se poderá dizer de um feto que, comprovado pelos médicos, nem cérebro tem? Portanto, a interrupção de gravidez em decorrência de anencefalia não satisfaz aqueles elementos que destacamos anteriormente, de que "o crime de aborto pressupõe gravidez em curso e é indispensável que o feto esteja vivo", e ainda que "a morte do feto seja resultado direto das manobras abortivas". Com efeito na hipótese de anencefalia, embora a gravidez esteja em curso, o feto não está vivo, e sua morte não decorre das manobras abortivas. Diante dessa Constatação, na nossa ótica, essa interrupção de gravidez revela-se absolutamente atípica e, portanto, sequer pode ser tachado como aborto, criminoso ou não. [52]

Qualquer ato voltado para a interrupção da gestação nas circunstâncias relatadas é considerado crime impossível, em virtude da absoluta impropriedade do objeto material. O feto sobre o qual recai a conduta é inidôneo para a produção de resultado lesivo morte. Se o crime de aborto jamais irá se consumar, por conseguinte, o fato é atípico.

Inexiste, então, razão para atuação do Direito Penal em hipóteses de condutas voltadas para a interrupção da gestação de um ser que nunca viveu, mas apenas é composto de tecido vivo por estar ligado a um corpo que lhe fornece nutrientes para assim permanecer por um breve lapso temporal. Com efeito, por não haver vida nem direitos a se ponderar, sempre deve prevalecer a vontade da mãe.

4.3 A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Conforme dito no item que tratou sobre a ADPF nº 54, o STF ainda não se pronunciou sobre o seu mérito da ação, embora tenham se passados sete anos da interposição, estando a arguição ainda pendente a decisão. No cenário nacional, continuam os desentendimentos nas ações que julgamento os pleitos autorizadores da antecipação terapêutica do parto e mulheres permanecem sem possibilidade de exercer a liberdade de escolha.

Sabe-se que, nas ações diretas de constitucionalidade, o órgão judiciário competente para examinar as leis ou atos normativos conflitantes com a Constituição não fica adstrito aos fundamentos apontados pelo legitimado, devendo se limitar apenas ao pedido. Este condicionará a análise, de modo que somente os atos questionados podem ser declarados inconstitucionais, conforme entendimento pacificado na Corte Suprema. [53]

Por isso, tendo em conta a causa de pedir aberta, o STF pode decidir pela procedência do pedido constante na ADPF nº 54, mas por fundamentos diversos. Ou seja, é possível que a Corte julgue com base em pontos outros, desconsiderando os argumentos apresentados e os substituindo por aqueles que entenda mais adequados, embora, ao final, seja declarada a inconstitucionalidade. Alguns ministros já se mostraram a favor da interrupção da gestação do feto anencéfalo, como Joaquim Barbosa, no HC nº 84025/RJ, e Marco Aurélio, relator da arguição.

Por outro lado, não se pode excluir a hipótese de indeferimento da ADPF, pois no STF há também posicionamento contrário, no sentido de que o pedido de interpretação conforme dos dispositivos do Código Penal equivaleria à criação de mais uma hipótese de excludente de punibilidade. Desse modo seria uma ofensa ao princípio da reserva legal. Estas teses foram adotadas pelo ministro Cezar Peluso, atual Presidente do STF, e pela ministra Ellen Gracie, ao julgarem a admissibilidade da arguição em tela, votando pelo não conhecimento da ação. [54]

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Todavia, tal afirmação não se sustenta caso o anencéfalo seja considerado um natimorto cerebral. Se o interesse da arguição é que a antecipação do parto seja concebida como um procedimento atípico, não se mostra necessária a elaboração de leis para tanto. Na seara penal, a função do legislador é descrever as condutas criminosas e estabelecer em quais circunstâncias, embora o fato esteja descrito como crime, ou seja, é típico, está amparado por uma excludente de ilicitude ou de culpabilidade.

Assim, não é preciso a criação de leis para dizer o que não é crime, basta o pronunciamento STF a respeito da interpretação dada ao fato para se esclarecer a questão. Como exemplo de que esse raciocínio é adotado por aquela Corte, bem como pelo STJ, temos o princípio da insignificância aplicado ao furto. A jurisprudência daqueles tribunais é pacífica ao entender que, de acordo com o contexto, o fato se torna atípico e a conduta não será penalmente relevante, sem, no entanto, haver legislação nesse sentido.

Por isso, se o STF compreender que a interrupção da gestação do feto anencéfalo é atípica, sua decisão é perfeitamente legítima. Ademais, seja qual for o entendimento a ser adotado, ele deverá ser revestido do espírito democrático, posto que foram realizadas audiências públicas para se debater o tema entre setores da sociedade. Sobre essa questão se pronunciou o ministro Marco Aurélio

Essa reflexão, ouvindo-se segmentos da sociedade, levará o STF a definir o real alcance de nossa Constituição Federal de 1988. Reputo a audiência pública da maior importância para termos a segurança jurídica e um avanço no campo cultural. Tivemos nas apresentações dois enfoques, o técnico científico e o religioso, e o Tribunal deverá considerar acima de tudo os princípios constitucionais, mas os anseios da sociedade não podem ser colocados em segundo plano. [55]

Percebemos, então, a aplicação prática da teoria da sociedade aberta dos intérpretes da constituição, idealizada por Peter Häberle. Segundo ela, em uma sociedade efetivamente democrática, a tarefa de interpretação das normas constitucionais, principal norma constitutiva do Estado de Direito, deve ser conferida a todos os cidadãos. Não caberia ao Poder Judiciário aplicar o Direito à revelia dos jurisdicionados, sob pena de perda da legitimidade de seus próprios julgados.

A Lei 9.882/99, regulamentadora da ADPF, dispõe, em seu art. 10, caput, que o STF deverá fixar as condições e o modo de interpretação e aplicação do suposto preceito fundamental descumprido. A decisão tomada terá eficácia contra todos e vinculará os demais órgãos do poder público, isto é, seus efeitos serão erga omnes. Como se trata de uma decisão de natureza declaratória, terá também efeito ex tunc, reconhecendo um estado preexistente.

Nesse ponto, ressalte-se que, caso o STF julgue procedente a referida ação constitucional, a partir de então, não haverá a necessidade de qualquer forma de autorização judicial no sentido de interromper a gravidez. Bastará, para tanto, o simples consentimento da gestante após o diagnóstico de anencefalia, podendo o procedimento ser realizado o quanto antes pelo profissional de medicina legalmente habilitado.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PATRIARCHA, Giselle Christine Malzac. Interrupção da gestação do feto anencéfalo: aborto ou antecipação terapêutica do parto?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2971, 20 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19826. Acesso em: 24 abr. 2024.

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Orientador: Joneuso Tercio Cavalcanti da Costa

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