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Obrigatoriedade dos precedentes

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4. Valores Constitucionais da Jurisdição

Uma maior compreensão da conveniência do seguimento dos precedentes passa, necessariamente, pela análise dos valores atinentes à própria jurisdição.

De início, não se pode deixar de considerar que as Ciências Jurídicas, como um ramo das Ciências Sociais Aplicadas, têm na interpretação das leis e dos fatos sua grande forma de exteriorização. Tal constatação, suficiente para conclusão no sentido de que cada julgador vê o direito da sua maneira, embora seja de grande relevância, não é a única para a aceitação da conveniência de uma regra de precedentes, no ordenamento jurídico brasileiro.

Sabe-se também, e não se pode discrepar de tal visão, que embora a imparcialidade do julgador seja um dos princípios básicos da jurisdição, esta sempre é mitigada, pois acima de tudo aquele que julga um caso posto diante de si é um humano, carregado de subjetividade, com seus sentimentos, cultura, experiência, vida passada e pensamentos, cultivados ao longo do tempo e, portanto, quase sempre, para não dizer sempre, estes valores intrínsecos do homem são externados quando de um julgamento (Barroso, 2011, on-line).

Não se afirma, aqui, que inexiste imparcialidade diante de um julgamento, está-se somente afirmando que ela, longe de ser do modo como posta nas codificações e na doutrina, embate-se com valores da própria existência humana, cuja influência, muitas vezes, nem mesmo é racional e consciente.

Tendo em vista todo o até aqui exposto, natural que valores como a segurança jurídica, previsibilidade, igualdade, coerência, racionalidade e celeridade, entre outros, estejam em xeque com a não adoção da teoria dos precedentes, no ordenamento jurídico nacional. Por óbvio que, uma vez que cada magistrado tenha ampla e total liberdade para interpretação de fatos e normas, aplicará ele um direito em que impressos seus preconceitos, suas experiências, etc., de forma que corre-se o risco de que cada magistrado dê à uma mesma lei interpretação diversa.

4.1. Segurança jurídica

A segurança jurídica é erigida a status de direito fundamental no sistema jurídico constitucional brasileiro, estando elencada no caput do artigo 5º da Carta Fundamental.

Ainda que o citado artigo-norte da Constituição Federal não se refira expressamente à segurança jurídica, sem dúvida que ela é inerente ao próprio sistema dos direitos e garantias fundamentais.

Ademais, é certo que a exasperação do mencionado princípio também ganha contornos expressos em diversos dispositivos da Carta Cidadã de 1988, a exemplo do inciso XXXVI, que dispõe "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".

Diante da necessidade de observância do princípio aludido, é certo concluir que uma decisão destoante com a orientação jurisprudencial pacífica nos tribunais não dá coro a ela.

Noutras palavras, quando se tem uma decisão em primeiro grau, em vertente contrária àquela superior, não há provimento jurisdicional que atenda ao predicado da segurança jurídica, na medida em que a decisão certamente será reformada pelo Tribunal ad quem,em momento oportuno, proporcionado pelo duplo grau de jurisdição.

Com isso, além da afronta à segurança jurídica, tem-se também prejuízo à própria efetividade do sistema jurídico, com o certo aumento do número de recursos e consequente maior demora para o julgamento, daí decorrente o abarrotamento do Poder Judiciário em segundo e terceiro graus, com recursos que, a bem da verdade, poderiam ser dispensados.

Já neste ponto, ainda inicial, translúcidos diversos direitos fundamentais, expressamente consagrados na Constituição, que acabam postos de lado, a exemplo da própria segurança jurídica, da efetividade da jurisdição e de celeridade.

4.2. Previsibilidade

Outro sintoma do não seguimento dos precedentes, que pode ser sentido no ordenamento jurídico nacional é encabeçado pela falta de previsibilidade diante de decisões e interpretações do Poder Judiciário, tão dissonantes entre uns e outros julgadores.

Por muito tempo se pensou que a codificação, bem como o conhecimento dos termos legais, bastariam para dotar de maior previsibilidade o modo de agir e pensar do Poder Judiciário, sendo que a lei, prevendo o maior número possível de situações, bastaria para a concretização do anseio de previsibilidade daquele que acionaria o inerte Judiciário.

A previsibilidade, num primeiro momento, tem lugar quando a demanda trazida ao Estado-Juiz, considerando que situações similares são rotineiramente decididas de determinada maneira, tem seu desfecho de antemão conhecido, ou seja, diante de uma questão comumente trazida a Juízo, cuja opinião judicial num ou noutro sentido está estabelecida, não deveria, a parte, ser surpreendida com decisão diferente.

O contrário, porém, a surpresa da parte com decisão inovadora e contrária à Jurisprudência dominante, tem lugar comum. Este fenômeno pode ter por causa diversos motivos, donde se destaca o pior e mais enfermo, o postulado da livre convicção, levado ao extremo. Tais situações, comuns, é verdade, atestam contra a própria estabilidade do sistema, tornando o acesso ao Judiciário uma verdadeira loteria e a investida nesta seara uma difícil e arriscada decisão.

Ressalte-se que o common law, de Judiciário certamente mais estável e previsível que os da tradição do civil law, não necessitou de qualquer positivação para galgar esse status. Tiveram os operadores do direito vinculados a esta tradição, sim, consciência de que faziam parte de um sistema, cujo entendimento, se não fosse consolidado e mais racional, atentaria contra o todo, de modo que seria inócua e de pouca valia sua decisão num isolado entender.

Deste modo, diante de tantos argumentos favoráveis à maior segurança dos jurisdicionados, dada pelo common law, em detrimento do civil law, é forçoso concluir que, num Estado onde há uma envergadura legislativa como o Brasil, donde despontam inúmeras leis e diversas formas de interpretá-las, tudo aliado à deficiência de redação de algumas delas, o papel dos precedentes é de maior e mais necessária pungência.

Percebe-se que, quando há uma crise de colaboração na realização do direito material e os textos normativos encontram diversas interpretações no Judiciário, o que obviamente importa são as decisões judiciais, momento em que a dimensão normativa dos textos encontra expressão, e não o texto normativo abstratamente considerado. Ora, se a previsibilidade não depende de norma em que a ação se funda, mas de sua interpretação judicial, é evidente que a segurança jurídica está ligada à decisão judicial e não à norma jurídica em abstrato. (MARINONI, 2010, p. 126).

O sistema do common law, dotado do stare decisis ou, numa tradução desprovida de técnica "ficar com as coisas decididas", é até mesmo mais efetivo, dando maior sensação de Justiça aos jurisdicionados, ainda mais quando analisado com olhos voltados ao princípio da igualdade, por vezes tão mitigado e instável no Brasil.

4.3. Igualdade

O princípio da igualdade, longe de ser apenas e mera letra positivada no ordenamento jurídico nacional, tem lugar de cláusula pétrea e ostenta íntima ligação com a discriminação (stricto sensu), que deve ser procedida diante de cada caso concreto.

A igualdade material (para alguns chamada de igualdade substantiva ou substancial) é aquela que assegura o tratamento uniforme de todos os homens, resultando em igualdade real e efetiva de todos, perante todos os bens da vida. (SILVA, 2003, p. 36).

Dito de outro modo, a igualdade não deve apenas permanecer relegada ao plano normativo, meramente abstrato. Tem o princípio em tela que se irradiar diante dos acontecimentos da vida, sobretudo àqueles onde há, nos pólos da relação, pessoas com diferentes condições em geral, sejam sociais, físicas, econômicas, etc.

No que toca à matéria que se tem aqui, é inadmissível que o Poder Judiciário, sem a devida fundamentação, dê tratamento diverso a jurisdicionados que, em tese, infelizmente sempre em tese, estão no mesmo plano de direitos. E esse tratamento diferenciado, muitas vezes, tem como escoro a própria jurisprudência, que para uns é aplicada de uma forma e, para outros, de maneira diametralmente oposta [01].

Não adentrando aqui nos meandros e causas de tal desigualdade de tratamento dos jurisdicionados, que podem avançar a fatos além do direito, o fato é que se vê, dia-a-dia, o tratamento desigual das partes no processo. Tratamento esse que se externa, também, na morosidade em se julgar determinados recursos, em comparação à celeridade com que outros acabam sendo resolvidos.

A igualdade, diante de tantas feições que podem ser dadas a ela, também é entendida como igualdade perante a lei e igualdade na lei. A primeira seria aquela conformação tida pelo julgador, quando da análise do caso submetido a julgamento, no sentido de que a sua decisão deve se escorar nos termos legais, sem qualquer distinção acerca de quem deve julgar. A segunda, por sua vez, é imposta em face do legislador, que não pode, ao elaborar o conteúdo normativo, revesti-lo de elementos não isonômicos.

Natural que a vertente aqui defendida, do princípio em tela, certamente é a da igualdade perante a lei, e lei que, como acima já mencionado, muitas vezes não se presta à realização do direito, tendo em vista a multiplicidade de interpretações de que seus textos, em considerável parte mal redigidos e repletos de duplos significados, se revestem. Deste modo, aqui, a igualdade perante a lei deveria ceder espaço à igualdade em face do precedente, como marca mesma da atuação do Poder Judiciário.

Por fim, ainda sublinhando o princípio da igualdade, é necessário atentar para um fenômeno crescente na realidade brasileira, representado pelo crescimento das cláusulas abertas no ordenamento jurídico. Constituem elas regras de conteúdo não casuístico, dando maior liberdade de interpretação ao magistrado, quando de sua aplicação.

Portanto, ainda mais quando diante de regras deste jaez, o Princípio da Igualdade perante a lei sofre ainda maior dificuldade para ser observado, na medida em que o sistema deixa ao juiz a possibilidade de interpretar de forma mais aberta a lei. Nesse contexto de liberdade, a figura dos precedentes assume papel de imensa importância, na medida em que traz mais segurança e coerência ao sistema jurídico, notadamente quando ele, o precedente, é a demonstração prática do modo pelo qual a lei está sendo aplicada. Dito de outro modo, em relação ao conteúdo indeterminado das normas, o precedente judicial certamente faz a vez dela, a lei.

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4.4. Coerência e racionalidade

A coerência e a racionalidade também são valores sentidos com maior compreensão a partir do momento em que se entende o propósito do seguimento dos precedentes e passa-se, assim, a segui-los. Isso porque, o entendimento do ordenamento jurídico não pode ser cindido, como se independente fosse cada campo da inteligência jurídica. Antes de qualquer positivação específica de determinada matéria, no mundo jurídico, sobre ela existe o manto extenso da Constituição, a lhe dar fundamento e legalidade.

Em face da mencionada constatação, os pensadores do direito, de há tempos vêm entendendo o Direito como um bloco fechado e internamente ligado pelas diversas matérias que dele fazem parte, atribuindo cada vez mais racionalidade ao sistema que, ainda hoje, alguns tendem a considerar como dividido em quantas grandes matérias existirem.

Norberto Bobbio, aliás, foi um grande percurso da teoria que atribuía coerência e racionalidade ao ordenamento jurídico, ao considerá-lo como um todo, ente único:

O próximo problema que nos apresenta é se o ordenamento jurídico, além de uma unidade, constitui um sistema. Em poucas palavras, se é uma unidade sistemática. Entendemos por sistema uma totalidade ordenada, um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem. Para que se possa falar numa ordem, necessário que os entes que a constituem não estejam somente em relacionamento como um todo, mas também num relacionamento entre si. (Bobbio, 1995, p. 71).

Portanto, sendo o ordenamento jurídico mais coerente e racional, na medida em que se atribui validade ao todo, e não a cada seguimento em separado, natural que a adoção de determinada orientação, já consolidada, venha a dar consecução ao que propriamente é o ordenamento, ou seja, um todo racional e coerente. Pensar o contrário é motivar a separação e distanciamento dos órgãos do Poder Judiciário, e atentar contra os direitos fundamentais, em especial o da segurança jurídica, já alvo de considerações.

Diante de tanto, não se pode descurar que a racionalidade do sistema passa, inicialmente, a ser sentida dos próprios órgãos que proferem decisões, ou seja, o seguimento dos precedentes, sob pena de irracionalidade do sistema, deve ter lugar no âmbito interno do próprio Poder Judiciário. O Acórdão seguinte, emblemático, reflete bem o pensamento aqui exarado:

Processual – STJ – Jurisprudência – Necessidade de que seja observada. O Superior Tribunal de Justiça foi concebido para um escopo especial: orientar a aplicação da lei federal e unificar-lhe a interpretação, em todo o Brasil. Se assim ocorre, é necessário que sua jurisprudência seja observada, para se manter firme e coerente. Assim sempre ocorreu em relação ao Supremo Tribunal Federal, de quem o STJ é sucessor, nesse mister. Em verdade, o Poder Judiciário mantém sagrado compromisso com a justiça e a segurança. Se deixarmos que nossa jurisprudência varie ao sabor das convicções pessoais, estaremos prestando um desserviço a nossas instituições. Se nós – integrantes da Corte – não observarmos as decisões que ajudamos a formar, estaremos dando sinal para que os demais órgãos judiciários façam o mesmo. Estou certo de que, em acontecendo isso, perde sentido a existência de nossa Corte. Melhor seria extingui-la. (AgRg nos EREsp 228.432/RS, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, CORTE ESPECIAL, julgado em 01/02/2002, DJ 18/03/2002, p. 163).

Contundente o julgado colacionado. Demonstra bem a importância dos valores até então comentados, sentidos pela Corte Superior.

4.5 Celeridade

Quase ao fim deste capítulo, dedicado a breves comentários acerca dos valores jurídicos a serem respeitados e realizados com o seguimento dos precedentes, cumpre tecer algumas considerações acerca da celeridade processual.

É certo que a Emenda Constitucional nº. 45, datada de 30 de dezembro de 2004, comumente denominada de Emenda da Reforma do Judiciário, positivou na Carta Fundamental o princípio da celeridade, anseio já externado por grande parte da doutrina e da jurisprudência, e, inclusive já mencionado no seio de alguns textos legais, a exemplo da Lei 9.099/95, mais especificamente em seu artigo 2º.

Com efeito, veio a dispor o inciso LXXVIII, do artigo 5º, da Constituição da República, que "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação". O direito ao processo com duração razoável, mais célere, passou, então, a status de direito fundamental, com aplicabilidade imediata e cogente, não cabendo qualquer cogitação acerca de sua obrigatoriedade e/ou amplitude.

Em face de tal obrigatoriedade constitucional, passou o Poder Judiciário a criar mecanismo para o desenvolvimento mais rápido dos processos, tornando a tutela jurisdicional mais efetiva e temporânea. Coube ao Conselho Nacional de Justiça a criação de uma gama de mecanismos, como, por exemplo, as Metas para o julgamento dos processos distribuídos até uma data fixa.

Entretanto, em que pese o mandamento constitucional expresso, pode-se afirmar que sem uma cultura de seguimento dos precedentes, a celeridade, por mais empenho que se atribua ao Poder Judiciário, não será materializada. Ora, uma decisão destoante do entendimento jurisprudencial dominante, por mais que faleça com o julgamento do recurso interposto, terá postergado por considerável tempo o provimento jurisdicional, que a parte poderia ter obtido de maneira bem mais célere.

Diante de tudo o que ficou exposto no presente capítulo, percebe-se que o seguimento dos precedentes judiciais é medida, antes de mais nada, de materialização do tortuoso conceito de Justiça.

Em face da impossibilidade de atendimento integral desse valor supremo, em razão mesmo de sua imprecisão, ele se revela por meio de princípios que devem ser atendidos pelos órgãos constituídos do Estado Democrático, em especial o Poder Judiciário.

O Judiciário brasileiro, embora caminhe a passos curtos para uma maior aceitação da importância do seguimento dos precedentes, vem tendendo, ainda que não espontaneamente, a mudar sua visão do mundo jurídico, sempre tão enraizada num civil law de olhos vendados, escondido sob a premissa do livre convencimento do magistrado.

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Sobre os autores
Rodrigo Emiliano Ferreira

Defensor Público do Estado de São Paulo

Bruno Luiz Turci

Advogado. ex-estagiário da Defensoria Pública do Estado de São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Rodrigo Emiliano ; TURCI, Bruno Luiz. Obrigatoriedade dos precedentes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2976, 25 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19849. Acesso em: 17 nov. 2024.

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