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Considerações acerca da aplicação da teoria da imprevisão nos contratos de leasing indexados ao dólar

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26/08/2011 às 14:17
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RESUMO

O presente trabalho consiste num estudo a respeito da aplicação da teoria da imprevisão nos contratos de leasing indexados ao dólar, procurando analisar os principais aspectos, num esforço direcionado a identificar as linhas mestras que definem os contornos do instituto na atualidade. A partir de alguns dispositivos de lei, em especial o Código Civil de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor, os doutrinadores e a jurisprudência, sempre divergentes, firmaram seus entendimentos. No Brasil, o entendimento majoritário é o do Superior Tribunal de Justiça, o qual admite a revisão das cláusulas de reajuste à variação cambial frente a desproporcional majoração da moeda estrangeira. Entretanto, antes de analisar o tema específico, é necessário abordar alguns elementos importantes para facilitar seu entendimento. São eles: a teoria da imprevisão, perfectibilizada através da cláusula rebus sic stantibus, esclarecendo os aspectos significativos acerca da evolução histórica e aplicação do instituto, passando pelas noções da força obrigatória nos contratos, autonomia de vontade, função social dos contratos, dirigismos contratual e a ordem pública, trazendo noções do direito comparado acerca da teoria em tela, adentrando ao contrato de leasing e relatando sua origem e espécies e, ao final, abordando o tema específico do trabalho, qual seja, a aplicação da teoria da imprevisão nos contratos de leasing indexados ao dólar, analisando seus principais aspectos, em especial os requisitos para a instituição da cláusula de reajuste à variação cambial e o entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul acerca do tema.

Palavras-chave:

Teoria da imprevisão – Contratos – leasing – dólar

ABSTRACT

This paper is a study concerning the application of the theory of improvisation in leasing contracts indexed to the dollar, trying to analyze the main aspects, an afford aimed at identifying the main lines that define the contours of the institute in the news. Since some devices of law, in particular the civil code of 2002 and the code of consumer protection, the doctrine and jurisprudence, always different, have signed the understanding. In Brazil, the prevailing understanding is that of the Superior Court, which allows the revision of the terms of exchange rate adjustment to the disproportionate increase in the forward foreign currency. However, before examining the specific topic, you must address some important elements to facilitate their understanding. They are: the theory of improvisation, though the clause rebus sic stantibus, clarifying significant aspects about the historical evolution and application of the institute, passing through the notions of binding contracts, autonomy of will, social function of contracts, contracts-authoritarian and public order, bringing notions of comparative law theory on the screen, entering the lease and describing their origin and species, and, the end, addressing the specific topic of word, which is the application of the theory of improvisation in leasing contracts to the dollar, analyzing its main aspects, in particular the requirements for the establishment of the escalation clause the exchange fate and jurisprudential understanding of the Superior Court of Justice and the Court oh the State of Grand River of South on the subject.

Keywords:

Theory of unpredictability – Contract – Leasing – Dollar


Introdução

No presente trabalho será abordado o instituto da teoria da imprevisão nos contratos de leasing indexados ao dólar, tecendo alguns comentários acerca da cláusula rebus sic stantibus, sua aplicação nos contratos em geral e, por fim, a aplicação no contrato de leasing indexado ao dólar.

No capítulo I será feita breve análise da teoria da imprevisão, trazendo a sua evolução histórica, natureza jurídica e conceito, bem como serão explicitados os institutos afins que compõe a base da revisão judicial dos contratos, tais como a força obrigatória dos contratos, autonomia da vontade, função social dos contratos, dirigismo contratual e a ordem pública e o entendimento através do direito comparado.

O capítulo II trará uma prévia introdução do tema proposto para o presente trabalho, abordando o contrato de leasing propriamente dito, descrevendo o seu respectivo conceito, origens, espécies encontradas no ordenamento jurídico brasileiro, as relações obrigacionais que envolvem os contraentes dessa modalidade contratual, sua visão frente à legislação consumerista e, por derradeiro, sua extinção.

Finalmente, após algumas considerações introdutórias necessárias para adentrar ao tema específico, analisaremos o capítulo III, que versará sobre a aplicação da teoria da imprevisão nos contratos de leasing indexados ao dólar, comentando, necessariamente, a possibilidade da instituição da cláusula de reajuste na legislação aplicável, os pressupostos necessários para a variação cambial e, por fim, a análise dos principais julgados do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul aplicáveis a espécie, trazendo a baila a problemática que as referidas cláusulas de reajustes ao câmbio causam à sociedade e a solução encontrada pelos Tribunais Superiores do nosso País.

A elaboração do presente trabalho se realizou através de pesquisa bibliográfica de doutrinas jurídicas, bem como de pesquisa jurisprudencial acerca da matéria em estudo, com o objetivo de analisar a possibilidade ou a impossibilidade da revisão judicial dos contratos de leasing por meio da aplicação da teoria da imprevisão, tendo como objetivo específico demonstrar a viabilidade de se aplicar tal teoria, objetivando o restabelecimento na avença, para que o cumprimento do contrato não se torne demasiadamente oneroso a somente um dos contraentes.

Por fim, justifica-se a escolha desse tema pelo fato de que os contratos de leasing com cláusula de reajuste à variação cambial são firmados frequentemente e, com a instabilidade da moeda nacional, o cumprimento regular de suas cláusulas onera, de forma desproporcional, somente uma das partes, a qual, neste particular, é considerada hipossuficiente frente as grandes empresas de arrendamento mercantil, esse contexto causa grande impacto econômico à sociedade gerando grande insegurança nos negócios jurídicos em geral, tornado o tema deste trabalho monográfico assunto amplamente discutido e debatido entre os doutrinadores e a jurisprudência do mundo inteiro, tendo inúmeras e inacabáveis discussões acerca de sua admissibilidade.


1 Teoria da Imprevisão

1.1 PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA CLÁUSULA rebus sic stantibus

1.1.1 Evolução Histórica

Prefacialmente, como melhor forma de introduzirmos o cerne do assunto deste trabalho monográfico, é indispensável que se apresente uma visão geral acerca da revisão contratual, à luz da cláusula rebus sic stantibus, modernamente conhecida com teoria da imprevisão.

Segundo Barletta (2002), a maioria dos doutrinadores que se dedicaram à pesquisa da origem da cláusula rebus sic stantibus afirma que as primeiras construções teóricas acerca da cláusula, incidindo na órbita dos contratos, surgiram na idade média. Entretanto, no Direito Romano já havia a preocupação com os efeitos desencadeados pela mudança das circunstâncias presentes no momento da formação do pacto e ausentes no momento de sua execução.

Continua a autora explicando que, embora os escritos romanos tenham influenciado na elaboração da cláusula, atribui-se sua imposição somente nos séculos XII e XIII, oportunidade que a referida cláusula ganha sua denominação clássica, cuja tradução seria; estando assim as coisas.

Constata-se ainda que, na segunda metade do século XVIII, a cláusula fora consagrada legislativamente nos códigos de origem germânica, como no Código Bávaro de 1756, no princípio doutrinário do Código Prussiano de 1794 e no Código Civil Austríaco de 1811.

Venosa (2005, p. 497), complementando o entendimento acima, assim dispõe:

[...] princípios dessa natureza foram observados em legislações muito anteriores a Roma. J. M. Othon Sidou (1984:3) cita texto do Código de Hamurabi pelo qual se admitia a imprevisão nas colheitas. Destarte, parece que o fenômeno já era conhecido antes do direito romano, o qual, entretanto, não o sistematizou, mas plenamente o conheceu e aplicou.

Nesta mesma linha Rizzardo (2005) relata que o Código de Hamurabi, datado de 1690 a.C., objeto de descoberta e divulgação do século XX, congregou sob seus 282 parágrafos um dos maiores monumentos legislativos de que se tem notícia, estabelecendo em sua Lei 48 o seguinte:

"Se alguém tem um débito a juros, e uma tempestade devasta o campo ou destrói a colheita, ou por falta de água não cresce o trigo no campo, ele não deverá esse ano dar trigo ao credor, deverá modificar sua tábua de contrato e não pagar juros por esse ano".

Segundo o Código de Hamurabi, os contratos eram realizados em tábuas de barro, onde os contraentes escreviam as disposições contratuais e as colocavam ao sol para secar. Se por ventura a tábua apanhasse chuva, as disposições se perderiam e o contrato estava desfeito.

Conforme Pereira (2005), esta doutrina, durante o período medieval, perdeu um pouco o seu prestígio, até que no século passado foi totalmente relegada. Após, com o advento da primeira guerra mundial, de 1914 a 1918, ressurgiu com força, tendo em vista que esta deflagração trouxe grande desequilíbrio aos contratos a longo prazo. Franqueou, outrossim, benefícios desarrazoados a um contratante, em prejuízo do outro, assim afetando a economia contratual, com prejuízo para a economia geral.

Frente a esse desequilíbrio e no intuito de coibi-lo, votou a França a Lei de Faillot, de 21 de janeiro de 1918, que autorizou a resolução dos contratos concluídos antes da guerra já que sua execução se tornara muito onerosa, ao mesmo tempo imaginou-se na Inglaterra a doutrina da frustration of adventure, retornou na Itália a cláusula rebus sic stantibus, reconstituiu-se por todo o mundo o mecanismo da proteção ao contratante contra a excessiva onerosidade superveniente.

Segue Pereira (2005, p. 163) dizendo:

O movimento doutrinário, sem embargo de opositores tenazes, pendeu para a consagração do princípio como revivescência da cláusula rebus sic stantibus, que alguns escritores entre nós têm procurado subordinar à incidência da força maior e do caso fortuito (João Franzem de Lima), mas que se desprendeu e alçou vôo pelas alturas (sic).

Prossegue o doutrinador esclarecendo que a primeira palavra favorável à tese, entre nós, foi de Jair Lins, com o desenvolvimento da teoria Vontade do Negócio Jurídico, que teve a resistência total de nossos tribunais. Já em 1930 veio a lume o julgado de Nelson Hungria, abrindo a porta do pretório às novas tendências do pensamento jurídico.

1.1.2 Natureza Jurídica

Em nosso ordenamento jurídico, a discussão sobre a incidência da chamada teoria da imprevisão foi resolvida, em parte, pelo Código do Consumidor ─ Lei n.º 8.078/90 ─ que no seu artigo 6º, inciso V, a erigiu como princípio da relação de consumo o do equilíbrio econômico do contrato.

Art. 6.º São direitos básicos do consumidor:

V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais, ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;

Explicando o contido no dispositivo legal supra, Nunes (2005) diz que o Código de Defesa do Consumidor, com supedâneo nos princípios da boa-fé e do equilíbrio ─ art. 4º, inciso III da Lei 8.078, da vulnerabilidade do consumidor ─ art. 4º, inciso I, da Lei 8.078 ─ que decorre da necessidade de aplicação concreta do princípio da isonomia ─ art. 5º, caput, da CF, garante o direito de modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais, bem como estabelece o direito à revisão das cláusulas em função de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.

Na mesma linha Benjamin (2008, p. 58):

Prevê o inciso V do art. 6.º do CDC a possibilidade da revisão judicial da cláusula de preço, que era eqüitativa quando do fechamento do contrato, mas que em razão de fatos supervenientes tornou-se excessivamente onerosa para o consumidor.

O Código Civil Brasileiro de 2002 resolveu de vez o problema ao disciplinar a resolução por onerosidade excessiva nos seus artigos 478 a 480.

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou deferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que decretar retroagirão à data da citação.

Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.

Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterando o modo de executá-la a fim de evitar a onerosidade excessiva.

Comentando estes dispositivos legais Gonçalves (2004), em resumo, relata que as modificações supervenientes que atingem o contrato podem ensejar pedido judicial de revisão do negócio jurídico, se ainda possível manter o vínculo com modificações nas prestações, ou de resolução a ser apreciada tendo em conta as cláusulas gerais sobre enriquecimento injusto, a boa-fé e o fim social do contrato, se houver modificação da base do negócio que signifique quebra insuportável da equivalência ou a frustração definitiva da finalidade contratual objetiva.

1.1.3 Conceito

A teoria da imprevisão é o substrato teórico que nos permite rediscutir os preceitos descritos em uma relação contratual, em face da ocorrência de acontecimentos novos, imprevisíveis pelas partes e a elas não imputáveis (GAGLIANO, 2008).

Nos termos da doutrina de Diniz (2003, p. 135) a cláusula rebus sic stantibus corresponde:

[...] à fórmula de que, nos contratos de trato sucessivo ou a termo, o vínculo obrigatório ficará subordinado, a todo tempo, ao estado de fato vigente à época de sua estipulação. A parte lesada no contrato por esses acontecimentos supervenientes, extraordinários e imprevisíveis, que desequilibram as prestações recíprocas, poderá desligar-se para evitar enriquecimento sem causa ou abuso de direito por desvio de finalidade econômico-social, sob a falsa aparência de legalidade de sua obrigação, pedindo a rescisão do contrato ou o reajustamento das prestações.

O termo teoria da imprevisão é relativo à condição de que, havendo mudança na situação fática, através de fatores exógenos ao pactuado, a execução da obrigação contratual não será exigível nos mesmos moldes impostos anteriormente. A obrigação continua exigível, mas não nas mesmas condições, frente à necessidade do ajuste para evitar ganho excessivo de um, em detrimento do outro contratante.

Já a cláusula da imprevisão ou rebus sic stantibus é a instrumentalização deste ajuste. Trata-se da estipulação contratual implícita de que, presente a situação imprevista, o contrato deve ser ajustado à nova realidade.

Venosa (2005) assevera que se trata de cláusula implícita que possibilita a intervenção judicial no contrato, justifica-se quando um elemento inusitado e surpreendente surja no curso da execução do contrato, colocando em situação de extrema dificuldade um dos contratantes, ocasionando uma excessiva onerosidade em sua prestação.

1.2 DA FORÇA OBRIGATÓRIA DOS CONTRATOS

O princípio da força obrigatória dos contratos, mais conhecido por pacta sun servanda, nos traz a orientação que contrato válido e eficaz deve ser cumprido pelas partes. Dicção esta que não pode ser tomada de forma peremptória.

Na lição de Costa (2007, p. 22):

O contrato traduz um acordo de vontades para a produção de efeitos jurídicos desejados pelos seus participantes, pelo que o princípio da força obrigatória dos contratos tem em mira os efeitos, as consequências da palavra empenhada no momento da formação do contrato no sentido de resguardar o cumprimento da obrigação livremente assumida; os pactos devem ser cumpridos sob pena de execução patrimonial, superada a fase da garantia pessoal incidente sobre o corpo do devedor, o crudelíssimo nexum, como forma assecuratória do cumprimento da obrigação.

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No dizer de Azevedo (2002), os contratos são obrigatórios para as partes, já que estas, como que realizando naqueles a sua lei particular, em suas cláusulas, regulam seus interesses, especificamente.

Pereira (2005, p. 14) traz um claro conceito do que seja a força obrigatória dos contratos:

[...] o princípio da força obrigatória do contrato significa, em essência, a irreversibilidade da palavra empenhada. A ordem jurídica oferece a cada um a possibilidade de contratar, e dá-lhe a liberdade de escolher os termos da avença, segundo as suas preferências. Concluída a convenção, recebe a ordem jurídica o condão de sujeitar, em definitivo, os agentes. Uma vez celebrado o contrato, com observância dos requisitos de validade, tem plena eficácia, no sentido de que se impõe a cada um dos participantes, que não têm mais a liberdade de se forrarem às suas conseqüências, a não ser com a cooperação anuente do outro. Foram as partes que escolheram os termos de sua vinculação, e assumiram todos os riscos (sic).

Essa obrigatoriedade forma a base do direito contratual. O ordenamento jurídico deve conferir à parte instrumentos para obrigar o contratante a cumprir a avença ou a indenizar pelas perdas e danos. Não tivesse o contrato força obrigatória estaria estabelecido o caos. Ainda que busque o interesse social, tal não deve contrariar tanto quanto possível à vontade contratual, bem como a intenção das partes (VENOSA, 2005).

Aduz o autor, ainda, que desse primado decorre a intangibilidade do contrato. Ninguém pode alterar unilateralmente o conteúdo do contrato, nem pode o juiz, como princípio, intervir nesse conteúdo.

Como bem explanou Costa (2007) é inegável que o cumprimento do disposto no contrato implanta, dentre os valores fundamentais do direito e da ordem jurídica, a segurança que se reflete na paz, na tranqüilidade, na ordem social, no valor sobre o qual se constitui a doutrina do negócio jurídico perfeito resguardado em sede constitucional não poderia conviver em um regime de incertezas quanto ao cumprimento ou não do acordado, base maior na qual se sustenta a circulação e distribuição da riqueza.

Prossegue o doutrinador relatando que é por este motivo que as obrigações assumidas no contrato devem ser executadas pelos contratantes como se suas cláusulas fossem compostas de preceitos legais, irretratáveis ao nuto dos contraentes.

Muito embora seja louvável a importância do pacta sun servanda, conforme explicitado pelos doutrinadores supra, diante a nova concepção do contrato, de suas novas funções desempenhadas dentro da sociedade e no Estado moderno exige-se, por exceção, uma atenuação do princípio geral.

1.3 DA AUTONOMIA DA VONTADE

O termo autonomia, resulta, etimologicamente, da conjunção de duas palavras gregas autós e momói. De autós tem-se a ideia de si mesmo, representando uma qualidade ou condição inerente e peculiar a um ser. E nomói corresponderia à norma ou regra. A junção do antepositivo grego autós com a palavra nomói gerou autonomia, que haveria ingressado em nosso idioma pátrio, por influencia da palavra francesa autonomie (RODRIGUES, 2006).

1.3.1 Das Origens Históricas

A expressão tem sua fonte primaz na obra de Kant: "Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graça à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objectos do querer)" (KANT apud RODRIGUES, 2006, p. 14) (sic).

Continua o estudioso acima aclarando que há, outrossim, os que atribuem a Emmanuel Gounot os méritos por haver transmigrado o termo autonomia da categoria Kantiana da Filosofia para o Direito.

1.3.2 Análise Conceitual

A autonomia da vontade patenteia-se, a cada instante, no ambiente dos contratos, que nascem sob sua influencia direta. Trata-se da vontade, que, ao manifestar-se, retrata o interesse da pessoa física ou jurídica, no meio social. Apresenta-se sob duas formas, na liberdade de contratar e a liberdade contratual (AZEVEDO, 2002).

Acompanhando essa linha, Diniz (2003, p. 70) assim dispõe acerca do instituto:

[...] autonomia da vontade, no qual se funda a liberdade contratual dos contratantes, consistindo no poder de estipular livremente, como melhor lhes convier, mediante acordo de vontades, a disciplina de seus interesses, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica.

Na orientação de Pereira (2005) o contrato nasce da vontade livre das partes. A ordem jurídica, que assegura aos indivíduos a faculdade de criar direito e estabelecer uma vinculação efetiva, não se contenta com isto, e concede-lhes a liberdade de contratar.

Aprofundando um pouco mais no conceito, o autor acima continua relatando que, no plano puramente civilístico, a autonomia da vontade se exerce e concretiza nos quatro momentos fundamentais da existência dos ajustes que são: a) vigora a faculdade de contratar ou não, isto é, o arbítrio de decidir, segundo os interesses e conveniências de cada um dos participantes; b) a liberdade de contratar implica a escolha da pessoa com quem o fazem, bem como do tipo de negócio a efetuar; c) a liberdade de contratar espelha o poder de fixar o conteúdo do contrato, redigidas as suas cláusulas ao sabor do livre jogo das conveniências dos contraentes; d) uma vez concluído o contrato, passa a constituir fonte formal de direito, autorizando qualquer das partes a mobilizar o aparelho coator do Estado para fazê-lo respeitar tal como está, e assegurar a sua execução segundo a vontade que presidiu a sua constituição.

Como esclarece Venosa (2005), a liberdade de contratar pode ser vista sob dois aspectos. Pelo prisma da liberdade propriamente dita de contratar ou não, estabelecendo-se o conteúdo do contrato, ou pelo prisma da escolha da modalidade do contrato. A liberdade de contratar concede às partes a possibilidade de se valerem dos modelos contratuais constantes no ordenamento jurídico ─ contratos típicos, ou a criarem uma nova modalidade de acordo com suas necessidades ─ contratos atípicos.

Os contratos criados pela autonomia da vontade, ante a necessidade de se encontrarem fórmulas apropriadas para a celebração de negócios que atendam interesses socioeconômicos não contemplados legalmente, serão inominados ou atípicos, resultando de fusão de caracteres de outros tipos contratuais, que serão combinados, surgindo então contratos mistos. O conteúdo da avença pertence livremente à determinação das partes contratantes, embora, alguns contratos se formem pela adesão de uma das partes à cláusulas impostas pela outra (DINIZ, 2003).

1.3.3 Das Limitações à Autonomia da Vontade

Assevera Pereira (2005, p.25):

Esse princípio não é absoluto, nem reflete a realidade social na sua plenitude. Por isso, dois aspectos de sua incidência devem ser encarados seriamente: um diz respeito às restrições trazidas pela sobrevivência da ordem pública, e outro vai dar no dirigismo contratual, que é a intervenção do Estado na economia do contrato [grifo do autor].

Continua o autor explicando que todo o contrato parte do pressuposto fático de uma declaração volitiva, emitida no compasso da lei, ou obediente aos seus ditames. O direito positivo prescreve normas que integram a disciplina dos contratos e limitam a ação livre de cada um, sem o que a vida de todo o grupo estará perturbada. São os princípios que barram a liberdade da ação individual e constituem o conteúdo das leis proibitivas e imperativas.

Concluindo o raciocínio, a lei ordena ou proíbe dados comportamentos sem deixar aos particulares a liberdade de derrogá-los por pactos privados, ao contrário das leis supletivas, que são ditadas para suprir o pronunciamento dos interessados (PEREIRA, 2005).

Quando um contrato é ajustado, não é possível fugir da observância daquelas normas, sob pena de sofrer penalidades impostas.

Adiciona Diniz (2003) dizendo que é preciso não esquecer que a liberdade de contratar não é absoluta, pois está limitada pela supremacia da ordem pública, que veda convenções que lhe sejam contrárias e aos bons costumes, de forma que a vontade dos contraentes está subordinada aos interesses coletivos.

1.3.3.1 Limitações Quanto às Normas de Ordem Pública e aos Bons Costumes

Na lição de Pereira (2005, p. 25) condizem com a ordem pública:

[...] as normas que instituem a organização da família (casamento, filiação, adoção, alimentos); as que estabelecem a ordem de vocação hereditária e a sucessão testamentária; as que pautam a organização política e administrativa do Estado, bem como as bases mínimas da organização econômica; os preceitos fundamentais do Direito do Trabalho; enfim, as regras que o legislador erige em cânones basilares da estrutura sócia, política e econômica da Nação. Não admitindo derrogação, compõem leis que proíbem ou ordenam cerceando nos seus limites a liberdade de todos.

O autor traz, também, a idéia sucinta acerca dos bons costumes que são aqueles cultivados como condição de moralidade social, matéria sujeita as variações da época, do país ou região onde são praticados. Atentam contra bonos mores aqueles atos que ofendem a opinião corrente no que se refere à moral sexual, ao respeito à pessoa humana, à liberdade de culto, à liberdade de contrair matrimônio.

Dentro desses dois campos, cessa ou reduz-se a liberdade de contratar.

Enfatiza o supramencionado autor que o contrato, refletindo por um lado a autonomia da vontade, e por outro submetido à ordem pública, há de ser conseguintemente a resultante deste paralelogramo de forças, em que atuam ambas estas frequências. Como os conceitos de ordem pública e bons costumes variam, e os conteúdos das respectivas normas, por via de consequência, certo será então enunciar que em todo o contrato é momento de equilíbrio destas duas forças, reduzindo-se o campo da liberdade de contratar na medida em que o legislador entenda conveniente alargar a extensão das normas de ordem pública, e vice-versa.

1.4 Função Social dos Contratos

O Código Civil Brasileiro de 2002 procurou afastar-se das concepções individualistas que nortearam o diploma anterior para seguir orientação compatível com a socialização do direito contemporâneo. O princípio da socialidade reflete a prevalência dos valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundamental da pessoa humana. Com efeito, o sentido social é uma das características sobressalentes do novo diploma, em contraste com o sentido individualista que condiciona o Código de Beviláqua (GONÇALVES, 2004).

Prolonga o autor relatando que a concepção social do contrato apresenta-se, hodiernamente, como um dos pilares da teoria contratual. Tem por escopo promover a realização de uma justiça comutativa, aplainando as desigualdades substanciais entre os contratantes.

Nessa consonância, dispõe o artigo 421, do Código Civil Brasileiro: "Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato".

Efetivamente, o dispositivo supratranscrito subordina a liberdade de contratar a sua função social, como prevalência dos princípios condizentes com a ordem pública. Considerando que o direito de propriedade, que deve ser exercido em conformidade com sua função social ditada na Carta Magna, se viabiliza por meio dos contratos, o novo Código Civil Brasileiro estabelece que a liberdade contratual não pode afastar-se daquela função.

Pondera Pereira (2005) que a redação dada a este dispositivo de lei deve ser interpretada de forma a se manter o princípio de que a liberdade de contratar é exercida em razão da autonomia da vontade que a lei outorga às pessoas. O contrato ainda existe para que os contraentes interajam com a finalidade de satisfazerem os seus interesses. A função social do contrato serve para limitar a autonomia da vontade quanto tal esteja em confronto com o interesse social e este deva prevalecer, ainda que essa limitação possa atingir a própria liberdade de não contratar, como ocorre nas hipóteses de contrato obrigatório.

Tal primado desafia a concepção clássica de que os contraentes tudo podem fazer, encobertos pelo princípio da autonomia da vontade. Essa constatação tem como conseqüência, por exemplo, possibilitar que terceiros, que não são propriamente partes no contrato, possam nele influir, em razão de serem direta ou indiretamente por ele atingidos.

Preleciona Pereira (2005, p. 14):

O reconhecimento da inserção do contrato no meio social e da sua função como instrumento de enorme influência na vida das pessoas, possibilita um maior controle da atividade das partes. Em nome do princípio da função social do contrato se pode, v.g., evitar a inserção de cláusulas que venham injustificadamente a prejudicar terceiros ou mesmo proibir a contratação tendo por objeto determinado bem, em razão de interesse maior da coletividade.

Completa Gonçalves (2004) esclarecendo que o atendimento à função social pode ser enfocado sob dois aspectos: individual, relativo aos contratantes, que se valem do avença para satisfazer sues íntimos interesses, e outro, público, que é o interesse da coletividade sobre o contrato. Nessa senda, a função social contratual somente estará adimplida quando a sua finalidade – distribuição de riquezas – for atingida de forma justa, ou seja, quando o contrato refletir fonte de equilíbrio social.

A função social do contrato constitui, dessa forma, princípio moderno que vem a agregar aos princípios clássicos do contrato, que são os da autonomia da vontade, da força obrigatória dos contratos, da intangibilidade do seu conteúdo e da relatividade dos seus efeitos. Em se tratando de princípio novo, não se limita aos demais, antes pelo contrário vem desafiá-los e em certas situações impedir que prevaleçam, diante o interesse social maior.

1.4.1 Das Cláusulas Gerais

Cláusulas gerais são normas orientadoras sob forma de diretrizes, dirigidas precipuamente ao juiz, vinculando-o, ao mesmo tempo em que lhe dão autonomia para decidir. Trata-se de formulações contidas na lei, de conteúdo significativamente genérico e abstrato, cujos valores devem ser preenchidos pelo magistrado, autorizado para assim proceder em decorrência da formulação legal da própria cláusula geral. Resultam basicamente do convencimento do legislador de que as leis rígidas, definidoras de tudo e para todos os casos, são necessariamente insuficientes e levam seguidamente a situações de grave injustiça (GONÇALVES, 2004).

Segue o doutrinador enfatizando que o papel de identificá-las e definir o seu sentido e alcance caberão à doutrina e jurisprudência, aplicando-as ao caso concreto, de acordo com as suas circunstâncias, como novos princípios do direito contratual e não simplesmente como meros conselhos, destituídos de força vinculante, malgrado isso possa significar uma multiplicidade de soluções para uma mesma situação basicamente semelhante, mas cada uma com uma particularidade que impõem solução apropriada, embora diferente da outra.

Neste contexto, dentre as cláusulas gerais destaca-se a função social dos contratos, a probidade e boa-fé objetiva.

Por se tratar de preceito de ordem pública, as partes, ao celebrarem livremente seus contratos deverão observar e submeterem-se aos ditames das cláusulas gerais. Pela mesma razão o juiz poderá aplicar as cláusulas gerais em qualquer ação judicial, independente de pedido da parte ou do interessado, agindo de ofício.

Este é raciocínio que se extrai do comando cogente esculpido no parágrafo único do artigo 2.035 de Código Civil Brasileiro de 2002: "Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos".

1.4.1.2 Dos Princípios da Probidade e da Boa-fé

Analisando conceitualmente a regra inserta no artigo 422 do Código Civil Brasileiro de 2002: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé", extraímos o entendimento que a probidade nada mais é senão a honestidade de proceder ou a maneira criteriosa de cumprir todos os deveres, que são atribuídos ou cometidos à pessoa e a boa-fé impõe as partes que se portem de maneira correta, com a exigida lealdade e respeito que se espera de um homem comum.

Na dicção de Pereira (2005, p. 21):

Na apuração da conduta contratual, em face da probidade e boa-fé, exigidos pelo artigo, o juiz não pode deixar de se informar os usos, costumes e práticas que os contratantes normalmente seguem, no tocante ao tipo contratual que constitua objeto das cogitações no momento, ou em torno do qual surge o litígio.

A regra da boa-fé, como já dito, é cláusula geral para a aplicação do direito obrigacional, que permite a solução do caso levando em consideração fatores metajurídicos e princípios jurídicos gerais. O sistema civilístico fornece ao magistrado um novo instrumental que privilegia os princípios autonomia da vontade e da obrigatoriedade dos contratos, seguindo uma diretriz individualista que tem por base os princípios da sociabilidade, eticidade e operabilidade (GONÇALVES, 2004).

Adentra o autor ao tema relatando que a boa-fé se biparte em boa-fé subjetiva, também conhecida como concepção psicológica, e boa-fé objetiva, também denominada de concepção ética. Todavia, a boa-fé que acarreta profunda alteração no direito obrigacional clássico é a objetiva, que se constitui em uma norma jurídica fundada em um princípio geral do direito, segundo o qual todos devem comportar-se de boa-fé nas suas relações recíprocas.

Dessa forma, é concebida como cláusula geral e, portanto, fonte de direito e obrigações.

Entendida como tal, constitui um modelo jurídico, na medida em que se reveste de varias formas, não sendo possível, a priori, catalogar ou elencar as hipóteses em que ela pode configurar-se, porque se trata de norma cujo conteúdo não pode ser rigidamente fixado, dependendo sempre das concretas circunstâncias do caso.

1.5 Do dirigismo contratual E A ORDEM PÚBLICA

O princípio da autonomia da vontade sofre, também, restrições trazidas pelo dirigismo contratual, que é a intervenção estatal na economia do negócio jurídico contratual. O Estado intervém no contrato, não só mediante a aplicação de normas de ordem pública, mas também com a adoção de revisão judicial dos contratos, alterando-os, estabelecendo-lhes condições de execução, ou mesmo exonerando a parte lesada, conforme as circunstâncias, fundando-se em princípios de boa-fé e da supremacia do interesse coletivo (DINIZ, 2003, p. 72).

1.5.1 Base Histórica

A liberdade contratual sempre encontrou limitação na ideia de ordem pública, entendendo-se que o interesse da sociedade deve prevalecer quando colide com o interesse individual (GONÇALVES, 2004).

Relata Oliveira (2002) que as primeiras notícias acerca da intervenção estatal nos contratos vêm do direito romano que, durante o império, restringiu as exportações de trigo e vinho; impôs a constituição de corporações comerciais, industriais e operárias. Na Grécia antiga, o Estado interveio fortemente nos contratos, limitando a vontade das partes com o fito de por fim às crises enfrentadas.

1.5.2 Panorama Geral

Na lição de Pereira (2005) a ideia intervencionista ganha corpo através de três aspectos principais. Primeiramente, o legislador impõe a contratação como no caso de fornecimento de bens e serviços, conforme preceitua o Código do Consumidor, no seu artigo 39, incisos II e IX-A. Em segundo lugar, institui cláusula coercitiva, definindo direitos e deveres dos contratantes, em termos insuscetíveis de derrogação, sob pena de nulidade ou punição criminal. Finalmente, concede a lei ao juiz a faculdade de rever o contrato, e estabelecer condições de execução, coativamente impostas, caso em que a vontade estatal substitui a vontade dos contratantes, valendo a sentença como se fosse a declaração volitiva do interessado.

O movimento intervencionista nos inclina à diminuição da liberdade de contratar em benefício da ordem pública.

Esta, como relata Gonçalves (2004), é tratada como cláusula geral, descrita em nosso ordenamento através do artigo 2.035, parágrafo único, do Código Civil Brasileiro, bem como no artigo 17 da Lei de Introdução ao Código Civil, infra.

Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.

Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.

Art. 17. As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia na Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.

Não se trata da recusa ao direito de contratar, nem se nega a liberdade de fazê-lo. O que se pode apontar é o reforçamento de alguns conceitos, tais como a regulamentação legal do contrato, a fim de coibir abusos advindos da desigualdade econômica; o controle de certas atividades empresariais; a regulamentação dos meios de produção e distribuição, sobretudo, proclama a efetiva preeminência dos interesses coletivos sobre os da ordem privada com acentuação dos princípios de ordem pública (PEREIRA, 2005).

Guiados pelos ditames da ordem pública, os direitos, nesse particular ressalte-se os contratuais, também devem ser exercidos no limite ordenado pelos bons costumes, conceito que decorre da observância das normas de convivência, segundo um padrão da conduta social estabelecido pelos sentimentos morais da época.

Gonçalves (2004, p. 24) assim resume a ideia acerca dos bons costumes: "Pode-se dizer que os bons costumes são aqueles que se cultivam como condições de moralidade social, matéria sujeita a variações de época a época, de país a país, e até dentro de um mesmo país e mesma época".

A noção de ordem pública e o respeito aos bons costumes constituem freios e limites à liberdade contratual. Na seara intervencionista, destinado a coibir abusos advindos da desigualdade econômica mediante a defesa da parte economicamente mais fraca, situa-se ainda o princípio da revisão dos contratos ou da onerosidade excessiva, baseado na teoria da imprevisão que, oportunamente, serão destrinchados.

1.6 revisão judicial dos contratos COM BASE NA TEORIA DA IMPREVISÃO

A obrigatoriedade contratual, ou pacta sun servanda, não pode ser violado perante dificuldades comezinhas de cumprimento, por fatores externos perfeitamente previsíveis. O contrato sempre visará uma situação futura, na oportunidade da avença, os contratantes têm em mira justamente a previsão de situações futuras. Dessa forma, a imprevisão que pode ensejar a intervenção judicial na vontade contratual é somente a que sucumbi totalmente às possibilidades de previsibilidade.

Como menciona Venosa (2005), questões meramente subjetivas do contratante não podem servir de pano de fundo para pretender uma revisão na avença. A imprevisão deve implicar um fenômeno global, que atinja a sociedade em geral, ou um segmento palpável de toda a sociedade, a citar guerras, revoluções, golpes de Estado.

Para o doutrinador supra, a intervenção judicial nos contratos se justifica quando surge uma circunstância superveniente ao contratado, imprevista e imprevisível, alterando-lhe totalmente o estágio fático. Há uma consciência média da sociedade a ser preservada. Desequilibrando-se esse estado, estarão abertas as portas da revisão.

1.6.1 Requisitos para Aplicação

Adotando o entendimento doutrinário de Venosa (2005), não é qualquer contrato nem qualquer situação que viabilizam a revisão judicial.

Em primeiro lugar, os acontecimentos devem ser extraordinários e imprevisíveis, fugindo da esfera subjetiva dos contraentes e abrangendo uma camada ampla da sociedade. Entende-se por fato extraordinário aquele que afasta o contrato de seu curso normal de execução e imprevisível é aquele que as partes, por mais diligência que tiverem, não possuem condições de prevê-lo.

Esclarece o autor que esses acontecimentos devem refletir diretamente sobre a prestação do devedor, caracterizando o instituto pela incidência na prestação devida, tornando-a excessivamente onerosa para o devedor.

Assim dispõe Gagliano (2008, p. 271): "A ocorrência da circunstância superveniente altera a balança econômica do contrato, impondo a uma ou a ambas as partes onerosidade excessiva".

Quanto aos contratos, diz Pereira (2005) que estes devem ser de execução diferida e continuada, ou seja, o contrato que sobrevive com a persistência da obrigação, considerando que a onerosidade excessiva surge com o decorrer de certo tempo, não se amoldando aos contratos de cumprimento instantâneo.

Continua o autor relatando que a revisão aplica-se sempre a contratos bilaterais comutativos, ou seja, aqueles onde as partes são credoras e devedoras reciprocamente uma da outra e as prestações são de antemão conhecidas e guardam entre si uma relativa equivalência de valores.

Por fim, os fatos que ensejam a revisão judicial devem desvincular-se de uma atividade do devedor, demonstrando ausência de culpa do obrigado em relação ao fato imprevisível.

1.6.2 Operacionalidade e Efeitos da Revisão

Para a maioria dos renomados doutrinadores a aplicação da teoria da imprevisão se perfaz pela via judicial, fazendo necessário o pronunciamento de um juiz através de sentença, como base no artigo 317 do Código Civil Brasileiro de 2002, a saber:

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

Todavia, seguindo a tendência do dirigismo contratual, o legislador, na tentativa de ordenar a economia, intervém nos contratos entre particulares ao elaborar leis que interferem nos prazos, preços e no próprio objeto do contrato com o fito de proteger a parte mais vulnerável da relação contratual (VENOSA, 2005).

Não se olvide, igualmente, que na arbitragem se encontra campo fértil para a revisão contratual, fazendo o árbitro o mesmo papel do juiz, já que tem mesmo nível do procedimento judicial e decorre da vontade das partes.

Na esfera judiciária, explica Gonçalves (2004) que o devedor deverá ingressar com uma ação judicial solicitando a aplicação da teoria da imprevisão. O pedido poderá ser tanto de liberação do devedor da obrigação como de redução do montante da prestação, tendo em mira as obrigações ainda não cumpridas, tendo em vista que as já cumpridas estão extintas.

No tocante aos efeitos, destaca Venosa (2005, p. 499):

Note que a revisão judicial não deve limitar-se exclusivamente a resolver a obrigação. Pode, e com muita utilidade, colocar o contrato em seus bons e atuais limites de cumprimento, sem rescindi-lo. Se a prestação se tornou excessiva, nada impede que o julgador a coloque no limite aceitável, de acordo com as circunstâncias.

Por oportuno, destaca o autor que se o devedor pede exclusivamente a extinção da obrigação, é defeso ao juiz decidir fora do pedido.

Contrario é o entendimento de Gagliano (2008) sustentando que à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana, neste particular do devedor, e da efetividade do processo, é possível o juiz, sem pretender substituir-se à vontade das partes, prolatar sentença revisional, corretiva das bases econômicas do negócio, mesmo com a oposição do réu.

Quanto à cessação do pagamento, esta somente poderá ocorrer com o ajuizamento da ação e autorização judicial em sede liminar, já que na pendência da lide e antes do pronunciamento judicial definitivo, deverá o autor da ação revisional continuar a cumprir a obrigação anteriormente imposta (VENOSA, 2005).

1.6.2.1 Cláusula de Exclusão da Revisão Judicial

A doutrina e jurisprudência discutem a validade de cláusula que, no contrato, proíba as partes de concorrerem à teoria da imprevisão e à revisão contratual.

Acerca da validade da cláusula de exclusão da revisão judicial dispõe Venosa (2005, p. 503): "Quer-nos parecer que uma cláusula genérica nesse sentido não pode ter validade, por cercear o direito de ação em geral e ser uma renúncia prévia genérica a direitos".

Prossegue o doutrinador explicando que admitir a existência dessa cláusula seria a própria negação do instituto da imprevisão, que tem caráter geral para os contratos. A situação muda de figura quando as partes preveem expressamente fatos configurativos de excessiva onerosidade, o que, na realidade, torna-os previsíveis, fazendo-os cláusulas ordinárias do contrato.

Com isso, não será válida a cláusula pela qual as partes concordam em não ingressar com ação de revisão contratual, qualquer que seja a causa ou fato futuro.

1.7 A TEORIA DA IMPREVISÃO NO DIREITO COMPARADO

Com o fito de solidificar os principais aspectos da teoria da imprevisão ora expostos, necessária é a analise, ainda que sucinta, do instituto em tela à luz de alguns dos mais significativos ordenamentos jurídicos vigentes.

1.7.1 Alemanha

A tradição germânica sobre a revisão judicial de contratos inicia-se com o Codex Maximilianus Bavaricus Civilis, de 1756 e a Lei da Terra Prussiana de 1794 (RODRIGUES JUNIOR, 2006).

Continua o autor relatando que com a reforma do Código Civil Alemão afastou-se o tradicional rigor científico dos conceitos elaborados pelos juristas do oitocentos, sob forte inspiração do Direito Romano, mas que se achavam corroídos pela devastadora ação do tempo e da mudança de costumes e valores sociais.

A causa das mudanças, segundo o autor, estaria na necessidade de adequar o direito interno alemão às diretivas da União Européia, especialmente em questões de direito do consumidor, visando a proteção, pelos tribunais, da parte economicamente desprotegida.

Atualmente, o Código Civil Alemão, em seu parágrafo 313, aduz acerca da teoria da alteração base do negócio jurídico, bem como no parágrafo 314 permite a resolução dos contratos de trato sucessivo ou execução diferida, em razão do contrato deixar de ser razoável a uma das partes (RODRIGUES JUNIOR, 2006).

1.7.2 Itália

As primeiras idéias acerca da teoria da imprevisão surgiram no ordenamento jurídico italiano com o decreto-lei 739, de 27 de maio de 1915, oportunidade em que foi editada norma excepcional que contemplava a possibilidade de revisão dos contratos pelo judiciário, equiparando a guerra à força maior.

Conforme Rodrigues Junior (2006), o Código Civil Italiano de 1942, elaborado sob o regime fascista, destaca o princípio da obrigatoriedade contratual, mas não deixa cair no esquecimento a teoria da imprevisão, como se nota da combinação entre os artigos 1.372 e 1.467 do referido codex.

Art. 1.372. O contrato tem força de lei entre as partes. Não pode se desfeito senão por mútuo consenso ou por causa prevista em lei.

Art. 1.467. Nos contratos de execução continuada, periódica ou de execução futura, se a prestação de uma das partes tornou-se excessivamente onerosa em consequência de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, a parte que deve tal prestação pode demandar a resolução do contrato com os efeitos estabelecidos no art. 1.458.

Para o direito italiano, a resolução não pode ser demandada se a onerosidade superveniente entrar na esfera normal do contrato. A parte contra a qual é demandada a resolução pode evitá-la oferecendo modificar igualmente as condições do contrato.

1.7.3 França

O direito francês sempre teve forte posicionamento contra a revisão judicial dos contratos, considerando as cláusulas da avença lei entre as partes.

Somente em 1918 o ordenamento jurídico francês incorporou o instituto, conforme relata Rodrigues Junior (2006, p. 57):

A teoria da imprevisão seria introduzida no Direito Administrativo com a jurisprudência do Conselho de Estado, a partir do famoso caso da Compagnie Générale d’Eclaiirage de Bordeaux, e com a Lei de Failliot, de 1918 [grifo do autor].

Embora alguns aspectos acerca da teoria da imprevisão merecessem destaque no início do século passado, somente em 1970 a boa-fé objetiva assumiu novos contornos na realidade jurídica francesa, passando a ser admitida a revisão contratual no direito comum.

1.7.4 Portugal

O ordenamento jurídico português, assim como o italiano, somente começou a ocupar-se com o instituto da revisão contratual no pós-guerra, através dos decretos 1.536, de 27 de abril de 1915; 4.076, de 10 de abril de 1918 e 5.335, de 26 de março de 1919.

Explica Rodrigues Junior (2006, p. 55) o conteúdo destes decretos:

Estabeleceram as condições em que deveriam ser revistos os contratos entre o Estado ou os municípios e os seus fornecedores e os empreiteiros das obras públicas, aos quais o cumprimento dos mesmos contratos se tornará impossível ou de mui difícil execução, sem incomportáveis sacrifícios.

Entretanto, somente com o Código Civil Português de 1966, na subseção resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstancias é que a teoria da imprevisão encontrou escopo legal.

1.7.5 Argentina

A Argentina não seguia a teoria revisionista, somente com a alteração de seu código civil, em 1964 a teoria da imprevisão passou a ser utilizável para os contratos de execução diferida ou continuada, desde que existia grave desequilíbrio nas prestações acordadas, tornando impossível o seu cumprimento (RODRIGUES JUNIOR, 2006).

Prolonga o autor relatando que outro importante requisito para a aplicação dessa teoria é que haja um acontecimento infenso à habitual e prudente previsibilidade das partes.

Atualmente, a jurisprudência argentina tem firmado que, entre rever ou resolver o contrato, é mais aconselhável o critério que propicia a revisão, mantendo-se a avença.

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Sobre a autora
Mariane Domingues Moreira

Graduada em Direito pela Universidade da região da Camapanha Conciliadora do Juizado Especial Federal da 4ª Região

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Mariane Domingues. Considerações acerca da aplicação da teoria da imprevisão nos contratos de leasing indexados ao dólar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2977, 26 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19851. Acesso em: 19 abr. 2024.

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