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Breves considerações sobre a competência cível e penal da Justiça Federal.

Uma análise à luz da Constituição e das Súmulas 208 e 209 do Superior Tribunal de Justiça

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Estudam-se os critérios constitucionais para a fixação das competências cível e penal gerais da Justiça Federal, defendendo o critério "ratione personae" para a competência cível, em contraste com o "ratione materiae", utilizado para a competência penal.

RESUMO

O estudo aborda os critérios constitucionais para a fixação das competências cível e penal gerais da Justiça Federal, previstas, respectivamente, no art. 109, I e IV, da Carta Magna. Defende o critério ratione personae para a competência cível, em contraste com o ratione materiae, utilizado para a competência penal. Ressalta a comum mixórdia realizada pelos Tribunais, ao confundirem ambos os critérios, baseando-se, principalmente, numa leitura apressada das Súmulas 208 e 209 do Superior Tribunal de Justiça. Explana que tais enunciados foram cunhados pela Terceira Seção daquela Corte, incumbida regimentalmente da matéria criminal. Colaciona os precedentes fundamentadores de ambos os verbetes, constatando tratarem-se todos de Conflitos de Competência em processos penais, motivo pelo qual os entendimentos lá firmados somente podem ser aplicados em feitos da mesma jaez.

Palavras-chave: Competência. Justiça Federal. Critérios.


1 INTRODUÇÃO

A delimitação da competência jurisdicional constitui pressuposto indispensável para a atuação de qualquer profissional do Direito, regra que não deixa de ser aplicável com relação ao Membro do Ministério Público. Na verdade, ressaltemos que, quanto a tal categoria, o conhecimento das diversas regras de competência tem um significado diferenciado, até mais importante do que para outros operadores jurídicos: tendo em vista que as regras para definição das atribuições dos diversos ramos do Ministério Público tomam como parâmetro a Justiça à qual aquele está vinculado, o Membro do parquet que desconhece as regras de competência, em última análise, desconhece os próprios limites de atuação.

Em face da importância da matéria, conforme ressaltado no parágrafo anterior, analisaremos, de forma breve, os critérios para a definição da competência da Justiça Federal. Escolhemos tal ramo não por acaso: trata-se, sem sombra de dúvida, daquele que apresenta as regras mais tormentosas, inclusive, que geram os percalços das mais diversas sortes na atuação em juízo do parquet estadual. Deveras, dificilmente encontra-se um Promotor de Justiça que, em seu labor, nunca tenha sofrido com alguma declinação de competência para a Justiça Federal, realizada por magistrado estadual, sem, muitas vezes, observar corretamente as regras constitucionais sobre a temática.

Por fim, discorreremos sobre o real alcance das súmulas 208 e 209 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), demonstrando o lapso de muitos juízos ao utilizarem-se apressadamente do entendimento consubstanciados em tais enunciados, deslocando, indevidamente, diversos feitos para o âmbito da Justiça Federal, ou mesmo atuando em demandas sem a devida competência.


2 A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL DE PRIMEIRO GRAU NAS CAUSAS CÍVEIS E PENAIS EM GERAL

O rol de competências da Justiça Federal de primeiro grau é delimitado pelo art. 109, da Constituição Federal (CF). Trata-se de enumeração reconhecida pela doutrina e jurisprudência como taxativa, não albergando a ampliação por qualquer legislação infraconstitucional [01]. Contrasta com as competências da Justiça Estadual, seja no âmbito cível, seja no criminal, que são de caráter residual, abrangendo todos os feitos que não forem atribuídos às justiças especializadas [02].

Nos incisos do art. 109, da CF, é possível encontrar diversas situações configuradoras de litígios cíveis ou criminais. Alguns são dotados de certa especificidade, como, por exemplo, aqueles previstos nos incisos II, III, e XI, no âmbito cível, e nos incisos V, VI e IX, no âmbito criminal, contudo, a maioria dos feitos são afetos à Justiça Federal com fundamento em dois dispositivos de caráter mais genérico: os incisos I e IV, que encampam as regras da competência cível geral e da competência penal geral da Justiça Federal.

Tratando das demandas gerais de caráter cível sujeitas à Justiça Federal, o art. 109, I, da CF, dispõe serem afetas a esse ramo as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes. Excepcionam-se as referentes a falências, acidentes de trabalho e as afetas aos demais ramos especializados. Trata-se, como é observável da própria redação do dispositivo, de competência ratione personae, pois afeta à pessoa do ente federal, desvinculada, portanto, da natureza do bem jurídico tutelado. Somente resta verificável com a presença processual de qualquer dos entes citados referenciados no art. 109, I (União, autarquias e empresas públicas federais), nas condições processuais lá dispostas (autor, réu, assistente ou oponente).

Regramento diferenciado verifica-se no concernente à competência criminal. Isso porque, no âmbito da Justiça Federal, enquanto o critério da presença processual delimita a competência cível geral, a competência criminal geral, nos termos do art. 109, IV, abarca as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União, suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e os feitos sujeitos às jurisdições especiais (Eleitoral e Militar). Verifica-se que, aqui, foi optado por critério concernente ao tema discutido na lide. Incorpora, dessarte, um parâmetro ratione materiae.

Do exposto, podemos deduzir uma conclusão lógica: na seara criminal, a mera presença processual da União, autarquias ou empresas públicas federais não tem qualquer influência na delimitação da competência. O critério utilizado aqui é dos bens, interesses e serviços afetados pelo ilícito. É material. A mera intervenção de qualquer dos citados entes, por exemplo, a título de assistente da acusação (art. 268, do Código de Processo Penal), não tem o condão de, por si só, deslocar a competência do feito para a Justiça Federal.

Tal situação diferencia-se do que ocorreria com uma intervenção numa lide cível: caso figurem, a União, autarquias e empresas públicas federais, na condição de autores, réus, assistentes ou oponentes, no litígio cível, resta verificada condição apta e suficiente para deslocar a competência para a Justiça Federal. Isso porque o art. 109, I, da CF, delimita um critério ratione personae, não importando se a lide em juízo está discutindo matéria concernente a um ente federal. Mesmo tendo total interesse no resultado da demanda, se esses não figurarem na relação jurídica processual na condição de autor, réu, assistente ou oponente, o juízo estadual será competente para decidir o litígio. Isso porque, repisemos: a competência cível da Justiça Federal não é material, mas concretizável com a presença processual de um ente federal. Para que o litígio tenha sua competência deslocada para a Justiça Federal, independentemente da matéria discutida, é imperiosa a intervenção das figuras do art. 109, I, da CF.

Em havendo a intervenção citada no parágrafo anterior, deve ser verificado o deslocamento automático da competência para a Justiça Federal. Nessa hipótese, cabe ao Juiz Federal avaliar o interesse da intervenção do ente federal. Caso esteja presente, o feito permanecerá no juízo. Na hipótese de ausência de interesse processual para figurar na lide, cabe ao magistrado federal proferir uma decisão declarando sua ausência, que poderá ter reflexos diversos, a depender da posição ocupada pelo ente federal. Se autor ou réu, será um sentença de extinção do processo sem julgamento de mérito (art. 267, VI, do Código de Processo Civil - CPC); se oponente, seguirá a mesma sorte, todavia, em julgamento prévio à demanda principal (art. 61, CPC); se assistente, será excluído (art. 51, CPC). Nas duas últimas hipóteses, oposição e assistência, tendo em vista que a relação processual tem continuação, após excluído o ente federal, caberá ao Juiz Federal declarar sua incompetência e remeter o feito à Justiça Estadual (art. 103, §2º, CPC).

Em síntese, com base na fundamentação exposta, conclui-se que, na competência cível geral, serão afetas à Justiça Federal as causas em que estiverem presentes quaisquer dos entes previstos no art. 109, I, da CF. No âmbito criminal, em contraste, sendo o critério de delimitação para a competência o bem, serviço ou interesse atingido pelo delito, não há qualquer influência na competência a presença de qualquer das figuras federais do art. 109, IV, da CF.


3 A QUESTÃO DAS SÚMULAS 208 E 209 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Reconhecemos que a fundamentação e a conclusão exaradas no tópico anterior devem estar confundido o leitor, principalmente, tendo em vista a existência de diversas decisões proferidas em sentido contrário, reconhecendo a competência da Justiça Federal em matéria cível, envolvendo interesse federal, independentemente da presença processual de qualquer das entidades do art. 109, I, da CF [03]. Tratam-se, na maioria, de ações de improbidade administrativa movidas pelo Ministério Público Estadual em face de Prefeitos municipais, feitos que, geralmente, são remetidos à Justiça Federal pelo juízo estadual, unicamente considerando o fato de estar-se tratando de verba sujeita à fiscalização do Tribunal de Contas da União, ou, ainda, não incorporada ao erário local. Na maioria das vezes, tal fenômeno se origina de uma interpretação equivocada com enunciados sumulares do Superior Tribunal de Justiça de número 208 e 209, os quais transcrevemos no rodapé [04].

Analisando o conteúdo de ambas as súmulas, depreende-se que sua redação, ao se referir a expressões como "verba sujeita a prestação de contas perante órgão federal" (Súmula 208) e "verba transferida e incorporada ao patrimônio municipal" (Súmula 209), observa a adoção do critério material para a determinação da competência, ou seja: a refere-se a bens e interesses atingidos pelos ilícitos como circunstância determinante da competência jurisdicional. Conforme já salientado, o critério ratione materiae consubstancia método apto a determinar a competência criminal da Justiça Federal, portanto, não pode ser utilizado no âmbito de ações de improbidade administrativa, pois se tratam de demandas de caráter cível, para as quais a competência é fixada ratione personae. A aplicação do entendimento dos enunciados 208 e 209 no âmbito de procedimentos cíveis, portanto, mostra-se equivocada.

Ademais, deve-se consignar que tais súmulas foram moldadas pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, com fulcro no permissivo inscrito no art. 12, parágrafo único, III, do Regimento Interno daquela Corte (RISTJ), que preceitua competir às Seções elaborar as súmulas de jurisprudência uniforme das Turmas pertencentes à respectiva área de especialização. Em sendo a Terceira Seção composta pela Quinta e Sexta turmas (art. 2, §4, RISTJ), cuja competência envolve matéria precipuamente criminal (art. 9, §3, I, RISTJ) [05], conclui-se que as súmulas emanadas por tal órgão devem corresponder, predominantemente, à consolidação de jurisprudências no âmbito de feitos penais.

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Corrobora com tal argumentação a análise dos precedentes que fundamentaram as súmulas 208 e 209: os CC 18517/SP, CC 14358/RS, CC 14061/RS, CC 15426/RS e CC 15703/RO, precedentes tomados como base para a súmula 208; e os CC 15734/RO, CC 13073/RS, CC 12578/RS, CC 13574/RS, CC 14073/RS, CC 14039/RS e CC 5281/RS, ensejadores, por sua vez, da súmula 209. Trataram-se, todos, de Conflitos de Competência ocorridos no âmbito de processos criminais.

Dessarte, as súmulas 208 e 209 do STJ, imbuídas do critério material, baseado nos bens e interesses afetados, não podem ser invocadas como parâmetro para a delimitação da competência cível da Justiça Federal. Portanto, sua alusão trata-se de argumentação inválida para justificar o deslocamento de ações de improbidade ajuizadas contra Prefeitos na Justiça Estadual, envolvendo o desvio de verbas sujeitas à fiscalização do Tribunal de Contas da União, ou mesmo, para justificar a permanência no juízo local de demanda, pelo mero fato da verba ter se incorporado ao erário municipal.


4 CONCLUSÃO

Demonstramos, sucintamente, os critérios para a determinação das competências cível e penal gerais da Justiça Federal. Enquanto a cível se baseia no critério da presença processual dos entes federais, sendo ratione personae, a criminal tem como parâmetro os bens, serviços e interesses afetados pelo ilícito, demonstrando ser ratione materiae. Portanto, a primeira independe de possível interesse do ente federal, mas se esse está ou não presente; a segunda, não se alterará pela presença do ente federal, mas, somente, se a matéria for de sua seara.

A atuação dos Magistrados e Membros do Ministério Público deve estar devidamente pautada por tais regras. Nesse sentido, não é correto tentar avaliar a competência cível pelo critério da penal, e vice versa, como costumeiramente é feito – de forma errônea – ao se invocar os enunciados sumulares 208 e 209 para justificar a competência ou incompetência da Justiça Federal, com base no órgão fiscalizador de contas ou na titularidade da verba. Ambos enunciados tratam de hipóteses de competência ratione materiae, afeta aos feitos criminais, não cíveis. Corrobora com tal posicionamento a constatação de que foram cunhados pela Terceira Seção do STJ, incumbida de apreciar os feitos criminais daquela corte, tendo como precedentes Conflitos de Competência decididos no âmbito de demandas penais.


REFERÊNCIAS

BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/download.wsp?tmp.arquivo=815>. Acesso em: 29 mar. 2011.

BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Súmulas do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/docs_internet/SumulasSTJ.pdf>. Acesso em: 29 mar. 2011.

BRASIL. Constituição (1988) de 05 de outubro de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 29 mar. 2011.

CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

CARVALHO, Vladimir Souza. Competência da Justiça Federal. 5. ed. Curitiba: Juruá, 2004.

GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

MENDES, Aluiso Gonçalves de Castro. Competência cível da justiça federal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunal, 2006.


Notas

  1. Reconhecendo a taxatividade das competências da Justiça Federal no STJ: CC 105.645/SP, Primeira Seção, julg. 09/12/09; CC 47.692/PE, Segunda Seção, julg. 09/03/05. Na doutrina, cf. Mendes (2006) e Carvalho (2004).
  2. STJ, AgRg no Inq .465/PA, Corte Especial, julg. 29/06/07; STJ, CC 22.566/SP, Terceira Seção, julg. 14/02/01; STJ, CC 29.962/SP, Terceira Seção, julg. 13/12/00.
  3. Como ocorre, v. g., nos seguintes feitos: TJSP, Apelação (APC) 994.09.005830-0, julg. 19/05/10; TJSP, Agravo de Instrumento (AI) 994.08.171661-5, julg. 07/04/09. Nesses, concluiu-se erroneamente pela competência da Justiça Federal, somente com base na pura redação da súmula 208; Já no TJCE, a APC 1283258200280600000, julg. 11/05/09, concluiu corretamente pela competência da Justiça Estadual, todavia, baseado em fundamentação inapropriada, obtida com a leitura superficial da súmula 209: decidiu-se que seria competente o juízo estadual pelo mero fato da verba ter se incorporado no patrimônio municipal. Conforme está sendo exposto neste trabalho, a competência cível da Justiça Estadual, na verdade, deveria ser fundamentada com a ausência do ente federal. A titularidade da verba deste pode, decerto, ser critério para aferir seu interesse processual, cuja não verificação pode causar a exclusão do processo, e, consequentemente, a perda da competência pela Justiça Federal.
  4. Súmula n° 208: Compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por desvio de verba sujeita a prestação de contas perante órgão federal. Súmula n° 209: Compete à Justiça Estadual processar e julgar prefeito por desvio de verba transferida e incorporada ao patrimônio municipal.
  5. Utilizamos o termo precipuamente, poistais Turmas detêm a competência, também, para os litígios concernentes a benefícios previdenciários, matéria que nenhuma pertinência se verifica com a redação das súmulas 208 e 209. A mesma conclusão estendemos às competências anteriores à Emenda Regimental n° 11, referentes às lides relativas a servidores públicos civis e militares e locação predial urbana (antigos incisos II e IV). Os feitos de improbidade, por sua vez, por tratarem de matérias afetas a direto público em geral, são distribuídas para a Primeira e Segunda turma, vinculadas à Primeira Seção do STJ. É o que, reiteradamente, se observa dos diversos julgados que podem ser obtidos no sistema de busca de jurisprudência do Tribunal.
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Sobre o autor
Paulo Henrique Figueredo de Araújo

Bacharel e Pós-Graduando em Direito Tributário (latu sensu) pela UFRN. Assistente Ministerial responsável pelo assessoramento do Centro de Apoio às Promotoria do Patrimônio Público, Sonegação Fiscal e Fundações do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Paulo Henrique Figueredo. Breves considerações sobre a competência cível e penal da Justiça Federal.: Uma análise à luz da Constituição e das Súmulas 208 e 209 do Superior Tribunal de Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2984, 2 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19901. Acesso em: 26 dez. 2024.

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