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Privatização de prisões no Brasil

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07/09/2011 às 14:56
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6. QUESTÓES RELEVANTES ACERCA DA PRIVATIZAÇÃO

A problemática da privatização de serviços do Estado, em especial do sistema prisional, é um fenômeno complexo e multifacetado. É pertinente, portanto, apontar alguns dos pontos principais que a envolvem. Nesse sentido, a seguir serão analisados três importantes faces deste fenômeno, quais sejam: seus aspectos moral, político e jurídico.

6.1 Aspectos Morais

Conforme o exposto ao longo do trabalho, a privatização do sistema prisional implica em ceder, em parte ou no todo, à iniciativa privada a administração das prisões. Por óbvio, toda atividade econômica exercida pelo particular viso ao lucro, conforme esclarece Fábio Ulhoa Coelho:

No regime capitalista de produção, o lucro é o elemento propulsor da iniciativa dos particulares. Sem a motivação de ganhos atraentes, dificilmente as pessoas se lançariam a um empreendimento econômico, suportando seus riscos e percalços. Dariam às suas energias e recursos melhor destino. Nesse contexto, revela-se plenamente compatível com a constituição econômica brasileira os atos, negócios e práticas empresariais destinadas à geração de lucros. Quanto maior a perspectiva de lucro vislumbrada pelo empresário, mais capital e esforço ele se sentirá motivado a investir em determinada atividade [66].

A exploração de uma atividade prisional pelo particular gera alguns claros conflitos de interesse. A remuneração do administrador particular, como foi visto, é calculada predominantemente em função do número de presos sob custódia do estabelecimento. Ora, se o lucro do empresário é diretamente proporcional ao número de detentos, a ressocialização dos indivíduos apenados é flagrantemente contrária aos interesses desta atividade econômica.

Laurindo Dias Minhoto, em trabalho sobre o tema, apresenta o texto do convite para uma exposição de prisões, realizada em 1994 no estado Norte-Americano de Indiana, o qual pedimos licença para reproduzir:

Expo Prisão 1994: Participe do mercado de US$ 65 bilhões das cadeias locais. O público-alvo da "Expo Prisão" é constituído por tomadores de decisão na área das prisões locais — xerifes dos condados, administradores de estabelecimentos correcionais, autoridades locais, diretores de serviços médicos e alimentares, arquitetos, engenheiros — pessoas de todos os pontos do país envolvidas em questões relativas à administração de cadeias locais, novos produtos, serviços e tendências. Existem mais de 100.000 pessoas que trabalham nas quase 3.400 cadeias locais dos Estados Unidos. Apenas no ano passado mais de US$ 65 bilhões foram movimentados por essa indústria. O mercado das cadeias locais é muito lucrativo! Cadeias são um GRANDE NEGÓCIO [67].

É preciso tomar muito cuidado com esse grande negócio das prisões, pois o condenado não pode ser reduzido a um ativo empresarial, nesse mercado milionário. O melhor interesse da sociedade exige que o apenado seja o foco principal do sistema penal, devendo este respeitar os direitos daquele e trabalhar para sua reinserção no meio social.

Conforme, mencionado acima, o sistema penal, na prática, atua como meio de neutralização das camadas sociais excluídas. O novo papel que o sistema prisional, agora privatizado, exerce, garante a estes excluídos um lugar "produtivo" no atual contexto econômico. O apenado passa ser a peça chave de uma lucrativa atividade empresarial.

Tudo se encaixa, o setor privado gera mais lucros para os investidores, movimentando a economia; o Estado se afasta de uma atividade problemática, fonte de críticas e de poucos dividendos eleitorais; a mídia e os diversos defensores da política de lei e ordem (essa sim atraente do ponto de vista eleitoral) têm agora inúmeros depósitos para custodiar os condenados a penas cada vez mais longas. Enfim, todos ganham, menos o preso, que é novamente vitimizado pelos mecanismos de controle social.

Outro ponto interessante a se analisar é o modo com que a população geral encara esse problema. Conforme citado acima, há uma tendência da sociedade, amedrontada com a violência e estimulada pela mídia, apoiando a adoção de políticas penais cada vez mais rígidas. Por outro lado a população não apoia o aumento dos gastos de dinheiro público no sistema penitenciário.

Essa situação talvez seja devida, em parte, ao fato de o criminoso ser concebido como um ser diferente. Um indivíduo perigoso, cruel, e que, portanto, merece sofrer as agruras do cárcere. Como no direito penal do autor, preocupa-se menos com o crime do que com o criminoso, aquele seria apenas um indício da inferioridade deste. Há talvez, alguma dificuldade em enxergar no criminoso um ser humano, sujeito daqueles direitos básicos inerentes à sua condição (direitos que, por sinal, são garantidos a ele pela Constituição). Em uma palavra ele é visto pela sociedade como o inimigo.

No mesmo sentido, ao discorrer sobre a história penitenciária brasileira, Rodrigo Roig mostra que esta foi "marcada pela reiterada imersão em períodos de exceção, pela sistemática supressão da dignidade da pessoa humana e pela inabalável crença de que o preso não merece ser sujeito de direitos" [68].

Analisando-se com mais atenção os mecanismos como a lei penal é editada e posteriormente aplicada, podemos perceber a forma com que o sistema repressor se movimenta para atingir a um público específico, previamente selecionado, posto que se esforce para tentar exteriorizar um caráter de universalidade.

Veja, por exemplo, as seguintes condutas tipificadas no código penal:

Apropriação indébita

Art. 168 - Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção:

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

Aumento de pena

§ 1º - A pena é aumentada de um terço, quando o agente recebeu a coisa:

I - em depósito necessário;

II - na qualidade de tutor, curador, síndico, liquidatário, inventariante, testamenteiro ou depositário judicial;

III - em razão de ofício, emprego ou profissão.

Apropriação indébita previdenciária

Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem deixar de

I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público;

II – recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços;

III - pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social.

§ 2º É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal.

§ 3º É facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa se o agente for primário e de bons antecedentes, desde que:

I – tenha promovido, após o início da ação fiscal e antes de oferecida a denúncia, o pagamento da contribuição social previdenciária, inclusive acessórios; ou

II – o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior àquele estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais.

As condutas transcritas acima configuram, respectivamente, os crimes de apropriação indébita e apropriação indébita previdenciária. Salta aos olhos a diferença no tratamento do agente que pratica cada uma delas, muito embora ambas sejam bem parecidas na essência. No segundo crime, o agente é isento da pena se pagar o débito antes do oferecimento da denúncia (sabemos que o que "é facultado ao juiz" é na verdade um direito subjetivo do indivíduo, uma vez preenchidos os requisitos da lei). Ora, tal diferença de tratamento que a princípio não se justifica, pode ser claramente entendida quando se observa quais são as pessoas que se encontram sujeitas à prática do crime do art, 168-A. Certamente elas não integram as massas excluídas da sociedade.

Esta situação se reflete na prática. Segundo dados do Ministério da Justiça (Infopen) [69], no final de 2010 havia no Brasil 523 presos por apropriação indébita, e 63 presos por apropriação indébita previdenciária. De igual modo, enquanto em dezembro de 2010 o número total de presos por furto simples era de 31.934, o número total de presos por corrupção ativa, corrupção passiva, contrabando ou descaminho e crimes contra o meio ambiente, somados, chegavam à 1.074. Quanto ao grau de instrução dos presos, de um total de 425 mil, cerca de 330 mil chegaram, no máximo, a concluir o ensino fundamental, e apenas 0,4% dos presos têm ensino superior [70].

Mesmo quando se analisam os indivíduos presos por um mesmo tipo penal, o caráter desigual da atuação repressora do Estado se mostra evidente. Em pesquisa realizada, a pedido do Ministério de Justiça, sob a coordenação da professora da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, Luciana Boiteux, "Tráfico e Constituição: um estudo sobre a atuação da Justiça Criminal do Rio de Janeiro e do Distrito Federal no crime de tráfico de drogas" este quadro é exposto com clareza.

Segundo a pesquisa, a maioria dos condenados por tráfico de drogas é de réus primários, que foram presos sozinhos, desarmados e com pouca quantidade de droga, condenados a penas iguais ou maiores a 8 anos de reclusão. Ou seja, são os pequenos traficantes, que recebem quantias ínfimas para transportarem pequenas quantidades de drogas, e cuja prisão não gera nenhum reflexo prático na oferta do produto.

Vale lembrar que em dezembro de 2010, o Brasil tinha mais de 106 mil presos por tráfico de drogas. Considerando a incapacidade de o Estado conseguir alcançar os grandes traficantes, verifica-se que, em sua grande maioria, essas prisões somente servem para "contaminar" esses indivíduos com as agruras do cárcere, deixando as consequências deletérias que já conhecemos.

Na mesma linha, ainda discorrendo sobre o tema, Boiteux, afirma que:

uma política de drogas originada dos EUA, que enche as penitenciárias, encontrou um terreno fértil no Brasil, onde tradicionalmente se exerce o controle social sobre as populações desfavorecidas por meio do sistema penal, pela alta representatividade destas nas estatísticas penitenciárias [71].

Ora, dada esta realidade, das duas, uma: ou se está diante de um sistema penal que escolhe deliberadamente seu público alvo, ou somos obrigados a concluir, com os positivistas, que os pobres apresentam maiores tendências à pratica de crimes.

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6.2 Aspectos jurídicos

Do ponto de vista jurídico, a privatização dos presídios também gera uma série de questões controvertidas que merecem ser analisadas.

Dentre os diversos serviços prestados pelo Estado, há alguns, chamados serviços públicos propriamente ditos, cuja Administração presta diretamente à comunidade, devido ao seu caráter de essencialidade, e necessários para a sobrevivência do grupo social e do próprio Estado.  Por isso mesmo, tais serviços são considerados privativos do Poder Público, no sentido de que só a Administração deve prestá-los, sem delegação a terceiros. Elucidativas são as palavras de Hely Lopes Meirelles.

Serviços públicos: propriamente ditos, são os que a Administração presta diretamente à comunidade, por reconhecer sua essencialidade e necessidade para a sobrevivência do grupo social e do próprio Estado. Por isso mesmo, tais serviços são considerados privativos do Poder Público, no sentido de que só a Administração deve prestá-los, sem delegação a terceiros, mesmo porque geralmente exigem atos de império e medidas compulsórias em relação aos administrados. Exemplos desses serviços são os de defesa nacional, os de polícia, os de preservação da saúde pública [72].

Desse modo, a atividade prisional, por estar enquadrada na segurança pública, insere-se entre os serviços públicos indelegáveis, que a Administração possui obrigação de prestar diretamente.

A própria existência do Estado, como se sabe, pressupõe o monopólio do uso legítimo da violência. Em outras palavras, Webber já definiu o Estado como "uma entidade que reivindica o monopólio do uso legítimo da força física." [73] Historicamente, essa é a principal característica do Estado que torna possível a sua interferência na vida de qualquer indivíduo de maneira inexorável, e independentemente de sua anuência. Continua o autor, afirmando que este domínio se legitima na legalidade que decorre da fé na validade do estatuto legal e da competência funcional, baseada em regras racionalmente criadas.

O chamado monopólio da violência, já se fazia presente nos textos dos primeiros pensadores do Estado moderno. Em Hobbes [74], por exemplo, ele é verificado como a principal ferramenta do Estado para alcançar a ordem social; em Locke [75] este atributo permite ao Estado primordialmente promover a defesa da propriedade privada; e, finalmente, Rousseau [76] se vale do mesmo instituto para advogar a garantia da liberdade individual.

É certo que as teorias sobre a origem do Estado constituem um importante legado histórico. Contudo, a proposição de que o Estado detém o monopólio legítimo sobre o uso da força é no mínimo polêmica. Isso porque a decisão sobre quando, como e em que medida o uso da força é de fato legítimo é carente de mecanismos de controle. Desse modo, fica difícil classificar como uso legítimo da força certas ações do Estado que verificamos na prática, em especial naquelas levadas a efeito pelo seu braço policial.

Feitas tais ressalvas, pode-se afirmar que o uso da força é atributo inerente e essencial a própria existência do Estado. Sendo que ele é o único que pode exercê-la de forma legítima, não cabendo desse modo ao Estado transferir novamente aos particulares os poderes que lhe foram confiados por ocasião de sua constituição.

A atividade prisional, como uma das formas de exteriorização desse poder, tem como objetivo imediato privar a sujeito de sua liberdade. Por conseguinte, fica evidente o caráter coercitivo desta medida, pois o Estado sujeita o interesse particular ao seu próprio interesse de modo absoluto.

No âmbito do Estado, a imposição e a fiscalização do cumprimento da medida penal ao condenado fazem parte do objeto da atividade jurisdicional. Ou seja, diversamente do sistema de hands off que já vigorou nos EUA, conforme mencionado, o poder judiciário, através do juízo da execução é inegavelmente responsável pelo acompanhamento zeloso da sanção imposta ao apenado pelo Estado.

Desse modo, a própria lei de execuções penais se configura como óbice à transferência ao particular da execução penal. Na mesma linha, concluindo pela inconstitucionalidade da privatização, João Marcello de Araújo Júnior afirma que:

assim, a execução penal é uma atividade jurisdicional e sendo, como se sabe, a atividade jurisdicional indelegável, devemos concluir que a administração penitenciária é, também, indelegável e, por isso, somente poderá ser exercida pelo Estado. A violação da indelegabilidade da atividade jurisdicional importa em inconstitucionalidade [77].

Separando as atividades materiais, chamadas atividades-meio, da atividade administrativa propriamente dita, Luiz Flávio Borges D'Urso entende que a privatização daquelas não foi proibida pela constituição. Desse modo, a entrega ao particular de serviços de hotelaria, manutenção, alimentação etc. não comprometeria o papel do Estado na execução penal, conforme se observa na seguinte passagem: " já a função jurisdicional, indelegável, permanece nas mãos do Estado que, por meio de seu órgão-juiz, determinará quando um homem poderá ser preso, quanto tempo assim ficará, quando e como ocorrerá a punição e quando o homem poderá sair da cadeia" [78].

6.3 Aspectos políticos

Como é sabido, a manutenção do Estado de Previdência nos países desenvolvidos (bem como os esboços criados nos países em desenvolvimento), principalmente a partir da década de 80 se mostrou insustentável. E progressivamente foi cedendo lugar ao modelo neoliberal. Este novo modelo é caracterizado pela retirada da participação direta Estado na economia, passando ele a ocupar um papel de regulador da mesma. É nesse ambiente que surgem as medidas privatizantes.

Nesse sentido, a crescente participação dos particulares nos serviços públicos, até então exercidos pelo Estado, reflete esta incapacidade material deste provê-los com exclusividade. O Estado não mais consegue arcar sozinho com os custos de todas as atividades essenciais que a sociedade demanda. Com o sistema penal não é diferente e é nesse contexto que a política de privatização vai ganhando cada vez mais espaço.

Em consonância com o exposto acima é a declaração do Secretário Executivo do Comitê Gestor de Parcerias Público-Privadas de Pernambuco, Silvio Bompastor, por ocasião da assinatura do contrato de financiamento da PPP que irá construir e administrar o CIR de Pernambuco [79]: " "Os recursos do tesouro não são suficientes para responder a todas as nossas necessidades. As PPPs são uma das saídas para resolver esse impasse.

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Sobre o autor
João Peixoto Garani

Advogado. Bacharel pela pela UFRJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARANI, João Peixoto. Privatização de prisões no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2989, 7 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19945. Acesso em: 25 abr. 2024.

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