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Inconsistências da teoria concepcionista como absoluta e única de defesa do direito à vida frente aos conflitos jurídicos da anencefalia e outros

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26/09/2011 às 07:59
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Conceitos modernos da complexidade da organização biológica do que é vida, como autopoiese, bem como conceitos da neurociência, como senciência e autoconsciência são expostos de forma a criar aporias na teoria concepcionista, sem descumprir a Constituição e o Pacto de San Jose da Costa Rica.

Resumo: Neste trabalho procura-se buscar as bases biológicas modernas, bem como o uso da lógica formal, para abordar a questão das falhas da teoria concepcionista como absoluta para definir os direitos à vida, começando por suas inconsistências e paradoxos em definir o que seria ser humano. Conceitos modernos da complexidade da organização biológica do que é vida, como autopoiese, bem como conceitos da neurociência, como senciência e autoconsciência são expostos de forma a criar aporias na teoria concepcionista, sem que em nenhum momento se transija com o estrito cumprimento da Constituição Brasileira e o Pacto de San Jose da Costa Rica.

Palavras-chave: : Inconsistências; Lógicas; Teoria; Concepcionista; Humano.

Sumário: : 1. Introdução. 2. O Caso Concreto da Anencefalia. 3. Um truísmo nada óbvio: o que é "ser humano"? 4. Questão Moral ou Questão Biológica. 5. Conclusão.


Introdução

A questão que pretendemos tratar nestas considerações é o Direito Fundamental à Vida, garantia constitucional pétrea, tanto pelas determinações do Poder Constituinte Originário de 1998, quando do Poder Constituinte Derivado, devido à incorporação ao ordenamento jurídico pátrio do Pacto de San Jose da Costa Rica, a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, doravante Convenção ou CADH.

A questão que procuraremos enfrentar vem justo a ser até que ponto este direito é um direito absoluto, e procuraremos mostrar que o conceito de "direito absoluto irrestrito e sobreposto a todos os demais" é mais um de outros falsos truísmos. Enfrentaremos a questão da teoria concepcionista sobre vida humana, a doutrina positivada pela inserção da CADH como norma de direito interno, § 2º do art. 5º da Constituição Federal, e procuraremos enfrentar a questão das fraquezas conceituais e práticas desta doutrina, usando como referência o caso concreto dos fetos anencéfalos, a partir do qual discorreremos sobre as contradições e possibilidades de soluções jurídicas jurisprudenciais frente à determinadas situações concretas, aqui hipotéticas, mas concretas como casos nos Tribunais, e faremos uma proposta de balizamento dentro de uma perspectiva que consideramos fundamental à modernidade, aos tempos atuais, de até pode ir a jurisprudência em sua capacidade criadora, diante dos fatos novos do mundo contemporâneo, sem ferir os princípios de direito positivados como pétreos em nossa carta magna.

Em seu texto sobre direito constitucional, o jurisconsulto Alexandre de Moraes define que cabe ao biólogo, lato sensu, definir quando do começo da vida. O nosso Código Civil de 2002 e o Pacto de San Jose da Costa Rica, numa perspectiva sem exagero, congelaram a questão à perspectiva da teoria concepcionista. A vida começa na concepção, e é sobre este ponto que propomos a nossa divergência, ampliando conceitos sem contrariar a determinação genérica do legislador. E buscaremos aporias nos casos concretos onde esta teoria tomada em exacerbação para além do que é consistente falha em coerência interna, não responde à realidade do fato concreto.


O Caso Concreto da Anencefalia

A questão da legalidade do aborto de fetos anencéfalos tem suscitado veementes discussões, onde o fundamentalismo de grupos religiosos de um lado, e discursos que cientificistas que contrariam em sua formulação o nosso direito positivo de outro, parecem colidir em incoerências lógicas.

O objetivo destas linhas é desenvolver um raciocínio lógico que demonstre como resultado que o aborto em casos de anencéfalos, do ponto de vista jurídico e científico pode ser permitido sem nenhuma incoerência. Principalmente, sem nenhuma incoerência com nosso ordenamento jurídico atual.

A Constituição Federal garante no caput do Art. 5º o Direito à Vida.

O Código Civil Brasileiro de 2002 afirma:

"(...) Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (...)".

É absolutamente impossível se ter uma análise racional e lógica, e digna de ser nomeada como jurídica, sem uma análise da primeira questão fundamental, o que é vida?

E então é simplesmente fundamental avançar para questão do se definir com mínimo de segurança e ubiqüidade o que é vida humana?

A primeira característica da condição de vida, que faz diferenciar a vida de um aglomerado de matéria orgânica inerte é a capacidade de Autopoiese. Tal termo foi desenvolvido primeiramente pelos biólogos e filósofos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana para nomear a complexidade e a organização de um sistema orgânico que basicamente permite à vida criar vida. Ou seja, o que diferencia um ser vivo da matéria orgânica inerte é a capacidade de a própria estrutura que mantém a complexidade da vida gerar ela mesma nova vida. Para facilitar o entendimento, sem aprofundar excessivamente, a característica das máquinas é que a partir de materiais retirados do meio ambiente são capazes de modificar matéria criando produtos, sendo no caso das máquinas este produto invariavelmente diferente delas mesmas. Uma máquina sozinha não constrói uma réplica exata de si mesma unicamente com seus próprios recursos. A vida, a organização complexa dos seres vivos se caracteriza por esta capacidade de com seus próprios recursos internos, serem capazes de recolher recursos do meio ambiente, processá-los, e produzir outros seres vivos semelhantes ou, considerando a pressão evolutiva, aprimorados em relação a si mesmos.

A autopoiese pode ser simples, como no caso das bactérias e protozoários, que se reproduzem por divisão celular, o maquinário biológico destes seres inferiores é capaz de duplicar cromossomos, no caso dos protozoários, ou duplicar o DNA circular no caso das bactérias, duplicando assim a carga genética que pode ser dividida entre dois seres vivos distintos, estes capazes de a partir de seus próprios recursos novamente se dividirem gerando nova vida.

A autopoiese pode ser mais complexa, no caso da reprodução sexuada, envolver transformação de gametas haplóides em um zigoto diplóide, que deve encontrar um ambiente orgânico favorável onde terá então as condições de se desenvolver à condição madura, e através de processo reprodutivo, com base no seu próprio aparato biológico, contribuir para que vida crie nova vida de maneira completamente autônoma. Há um ponto em aberto, a questão dos vírus. São vida ou não? A ciência teve de definí-los como formas de vida muito elementares. Por um lado são incapazes de por seus próprios recursos biológicos se reproduzirem. Por outro lado, parasitas essenciais por natureza, no seu código genético, que pode ser DNA ou RNA, trazem informação para, utilizando o sistema biológico do hospedeiro até mesmo para a infecção das células, uma vez dentro da célula hospedeira, esta informação genética ser capaz de utilizando o aparelho enzimático, a complexidade metabólica do hospedeiro, ser modificado o DNA do hospedeiro para que a célula infectada produza cópias idênticas do vírus invasor. Isto por meios biologicamente naturais, sem necessidade de intervenção do engenho humano.

Não se deve perder de vista o conceito fundamental da autopoiese. Não devemos julgar enfadonho repetir que uma máquina sempre gera um produto diferente de si mesma. A vida é uma organização complexa, que em seu arranjo estrutural vem a ser em seu conjunto de diversidade as únicas máquinas, os seres vivos, que geram outras máquinas iguais, conceitualmente e em essencia, igual a si mesmas, ou, considerando a pressão seletiva, melhoradas, com capacidade de melhoramentos autoproduzidos na adaptação contínua aos ambientes que nunca são estáveis no longo e mesmo no médio prazo, dependendo da perspectiva de tempo biológico.

E esta questão é fundamental, a necessidade ou a não necessidade de intervenção do engenho humano. Neste ponto reside toda incoerência de teorias que se julgam absolutas e científicas, e que se tomadas como absolutas, sem considerar a sua inerente relatividade, falharão e no aspecto lógico cairão na falácia, qual só se sustentará num absolutismo cego do fundamentalismo religioso.

Há a primeira questão a ser posta em foco. Sendo vida a capacidade de autopoiese, e visto que o óvulo fecundado, o zigoto não tem capacidade autopoética autônoma antes de completar fases complexas de desenvolvimento, entramos numa questão fundamental. A vida em potencial. Vida potencial x vida plena.

Os grupos fundamentalistas entendem que a vida humana começa no momento da concepção. E afirmam ser uma teoria de bases científicas. Esta fundamentação concepcionista da vida humana tem bases científicas e lógicas suficientes para garantir a direitos fundamentais, mas é fraca cientificamente tanto quanto em sua lógica para ser a única teoria que defina os direitos fundamentais do ser humano.

Defendemos que após a fecundação em condições naturais, inicia-se um processo de vida em potencial A fecundação nas tubas de falópio não é garantia que haverá implantação da mórula, estágio que o embrião é ainda um aglomerado de células, do zigoto no útero A medicina pode oferecer estatísticas atualizadas de qual percentual estimado de óvulos fecundados que começam sua divisão celular na migração até o útero, e não conseguem completar a implatação no endométrio, e são simplesmente descartados sem que a mulher sequer tenha noção de que trouxe em si um zigoto. Não é uma resposta difícil de ser atualizada pelos especialistas em obstetrícia e especialmente por ser rotina a fecundadação em vitro nos dias de hoje.

Por outro lado um óvulo fecundado in vitro pode ser implatado artificialmente e evoluir à formação da placenta, ao desenvolvimento embrionário, avançando ao período fetal, cumprindo todas as etapas até o nascimento de um ser humano saudável. Destaque-se, a fecundação ocorrendo totalmente fora do corpo feminino, totalmente em aparato técnico construído pelo ser humano em tempos posteriores a segunda metade do século XX.

A fecundação em vitro só ocorre por obra do engenho humano, contudo, uma vez implantado a mórula, um embrião em estágio bem primitivo do desenvolvimento, esta irá acabar se desenvolvendo a partir de então, de sua fixação no endométrio, no caso de não sofrer acidentes, e será caso de ter um desenvolver naturalmente sem mais nenhuma intervenção externa do engenho humano. Se torna vida potencial com capacidade total de desenvolvimento autônomo, em condições biológicas naturais, plenamente viável de chegar à condição de vida humana plena. Devemos destacar que um embrião enquanto um conjunto de células ainda por se diferenciar não é autopoéitico de fato, mas potencialmente será quanto for permitido, pela não intervenção humana e pela sorte de não acidentes, o seu desenvolvimento à condição de vida plena.

A fecundação na espécie humana garante apenas, observada pela lógica e pela experiência científica, uma vida humana em potencial. Esta vida em potencial precisa de condições necessárias, imprescindíveis, para evoluir à vida humana plena. E esta questão, este conceito absolutamente necessário de vida em potencial não pode ser ignorado, quando há a luz de incontáveis evidências científicas, e constitui o ponto de bifurcação onde a teoria concepcionista pura, que defende que a vida de modo absoluto começa na concepção, simplesmente falha em incoerência diante do caso concreto da anencefalia.

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Não vamos entrar em contradição com os direitos legais garantidos no Código Civil, e entendemos que a vida potencial, enquanto viável, enquanto capaz de por seus próprios recursos em condições absolutamente naturais se desenvolver à vida humana plena, esta vida potencial tem seus direitos civis garantidos pela lei. A lei garante os direitos de uma vida potencial em perfeitas condições de, não sofrendo intervenção externa, em condições biológicas naturais, se desenvolver até a condição de vida humana plena, e então a personalidade civil começar com o nascimento.

Precisamos avançar para além da simples autopoiese, para irmos a questões de organizações mais complexas de vida. Uma bactéria tem autopoiese diferente de um mamífero, visto a simples divisão celular indo longe da complexidade da reprodução sexuada. Um porífera, esponja do mar, é multicelular, eucarionte, tem reprodução sexuada, no entanto sua diferenciação celular não permite uma capacidade de sistemas mais complexos de vida, a senciência. Um porífera é um animal multicelular, de reprodução sexuada, mas que tem vida vegetativa, séssil, se alimentando de filtrar nutrientes no movimentos das águas onde vive.

Para haver senciência é necessário absolutamente um sistema celular com suficiente complexidade de diferenciação celular, com elementos de células especializadas em percepção sensorial, não apenas reflexa, e uma estrutura que forme um primitivo sistema nervoso central que processe informações do meio ambiente.

Por fim, a vida humana além da senciência implica também na autoconsciência. Não usaremos a capacidade cognitiva elevada como elemento fundamental à vida humana, por que tal conceito é suficientemente vago para interpretações que desvirtuem nossa argumentação. Interrompemos nossa ascenção de complexidade biológica necessária para definição de vida humana plena na capacidade de autoconsciência que seja resultado do desenvolvimento de um óvulo fecundado, desenvolvido a partir de certo momento em condições biológicas totalmente naturais, e que a partir da carga genética original desenvolva um ser senciente e autoconsciente.

A questão do anencéfalo. A autopoiese é a principal definição de vida, a que diferencia vida de simples matéria orgânica, poderia ser o ponto fraco de nossa argumentação, mas devemos reduzir tal fundamentação até seu limite lógico, ao limite que seja coerente. Sem cair em falácia ou contradição, como se verá adiante no caso concreto. A falácia seria querer extender um argumento para além do que este é capaz de fundamentar, para além do que o argumento reflete em realidade de fatos. Aos fatos. Um anencéfalo é absolutamente incapaz de em qualquer momento de sua vida ser autopoético, salvo exceção da intervenção do engenho humano. Ou seja, clonagem. A odiada clonagem. A única maneira de um feto anencéfalo ter a capacidade de gerar outra vida seria por intervenção do engenho humano, retirando sua carga genética intacta de uma de suas células, e fazendo a substituição num óvulo maduro, na exata técnica de clonagem como experimentada em animais. Agravante para os concepcionistas estritos, o ser novo gerado por tal intervenção do engenho humano teria a mesma carga genética, e se implantado tal novo óvulo em um útero saudável, com condições de desenvolvimento normais, tal carga genética teria imensas chances de gerar um embrião saudável, um novo feto completamente normal com todo desenvolvimento complexo a se concluir no período fetal, viável de avançar em todas etapas do pós-nascimento à vida adulta normal. No entanto põe-se a questão de se por conta de tal fato irá se tornar eticamente aceitável, e legalmente desejável a clonagem humana?

Dizer-se-á, tentando derrubar a coerência lógica do posicionamento que defenderíamos por conta de nossos argumentos, que os estéreis não seriam vida humana plena, e poderíamos ir ao caso mais extremo, a boa argumentação nos permite ir, os pseudohemafroditas feminilizantes, que tem carga genética com cromossomos X e Y, e nascem fenotipicamente como mulheres, estes são estéreis de nascença. A formação do fenótipo feminino acontece devido ao não funcionamento metabólico embriológico orientado por genes no cromossomo Y, que antes da sétima semana leva às gônadas primitivas a produzirem testosterona em fase crítica do período fetal. O fenótipo feminino não precisa de qualquer hormônio para se desenvolver, ao contrário do masculino Em qualquer bom livro de embriologia faz-se referências a experimentos com animais onde se bloqueia ou extirpa as gônadas masculinas primitivas em fetos machos, que então desenvolvem fenótipo feminino. Não adentraremos em embriologia, além da ilustração necessária. Reafirmamos, a autopoiese é fundamental até o ponto exato que ela deva ser considerada, e não pretendemos estender tal conceito como fundamental para além do limite exato que ele realmente fundamenta a questão. E a autopoiese não é nosso único argumento, mas está composto num contexto muito mais amplo. O pseudohemafrodita masculino feminilizante potencialmente era autopoiético até a diferenciação do sexo morfológico na vida embrionária. Nasce com testículos abdominais não funcionais, e fenótipo feminino.

Senciência e autoconsciência, são os dois quesitos fundamentais da vida humana plena que se seguem na evolução biológica, ontogênica do embrião, feto, nascituro, e filosófica e científica na questão que discutimos, a anencefalia. Não existem pedras sencientes. E as esponjas do mar embora vida, multicelular, nem atividade reflexa tem. Não possuem senciência.

O anencéfalo é absolutamente incapaz de senciência, pois não possui telencéfalo, não possui o córtex sensorial, fundamental para interpretar os estímulos vindos do meio ambiente no ser humano. E nem é capaz de autoconsciência, pois não tem o córtex frontal, essencial para atividades cognitivas.

Um animal de abate, como uma vaca ou uma galinha tem fisiologicamente mais capacidade de senciência que qualquer anencéfalo humano. O termo anencéfalo humano vem não com fins restritivos ou para permitir construção de argumentos falaciosos em favor da intocabilidade do anencéfalo. Um termo mais exato, não cientificamente melhor, no entanto mais esclarecedor, seria anencéfalo antropomorfo com genes humanos.

E convém esclarecer, a anencefalia não se provou até hoje como problema genético, e sim de desenvolvimento embrionário. A complexidade dos mecanismos bioquímicos da embriogênese, da transformação de células indifereciadas a tecidos primitivos, e então o dobramento do embrião, a diferenciação das céulas tronco em endoderma, mesoderma e ectoderma, do qual se formam os grandes grupos de tecidos orgânicos, e a passagem para o período fetal, em qualquer uma destas fases podem ocorrer falhas. Basta uma enzima falhar e uma mal formação congênita pode acontecer, por vezes falha que inviabiliza a vida fora do ventre do ser em formação. Logo é claudicante o argumento dos que defendem a intocabilidade dos anencéfalos por representarem "expressão da variabilidade genética", tão necessária às espécies. Se for se falar em variabilidade genética, conceito que nasceu da biologia evolutiva, há de se falar então em pressão seletiva, e tal argumento "anti-abortista" criaria uma abertura de conceitos biológicos corretos, uns menos impactantes a princípio como deriva genética, variabilidade genética, e outros de impacto imediato como pressão da seleção natural, que poderiam estes sim justificar ações de eugenia da espécie. E muito antes da genética moderna o homem já usava, mesmo inconsciente do que fazia, processos biológicos de pressão seletiva, seja na seleção de cruzamentos de animais produzindo novas raças que surgiram antes de se conhecer o DNA ou sequer o núcleo celular, seja na seleção de grãos para semeadura. Em termos cientificos e factuais, irrefutáveis logicamente, o homem no caso passou a exercer o papel da seleção natural, apenas substituindo o ambiente na seleção dos resultados.

A conjugação dos conceitos no limite em que estes, sem cair na falácia, podem nos conduzir a conclusões coerentes, é que vem a ser essencial para não incorrermos nas incoerências lógicas que podem advir. Devemos evitar sempre nos deixar avançar à irracionalidade falaciosa, do fundamentalismo, se a visão da teoria concepcionista for levada à extremos, sem observar seus pontos de bifurcação, onde em determinado rumo sua fundamentação se enfraquece para sustentar a condição de vida humana. E por outro lado não defendemos o "aborto eugênico" Um argumento pode ser absolutamente lógico com seus fundamentos, mas o mundo é dos fatos e não das idéias reduzidas a si mesmas como absolutas, sendo assim se um argumento lógico não representa uma realidade concreta, é um argumento falso, independente de logicamente coerente ou falacioso.

O portador de Síndrome de Down tem capacidade de senciência e autopercepção intactas, mesmo com prejuízo de sua capacidade cognitiva elevada, é autoconsciente, se reconhece a si cognitivamente, e possui capacidade de autopoiese, embora para tal seja necessário um ato ignóbil e criminoso, infelizmente registrado na literatura criminal. Os relatos são de portadores de down do sexo feminino engravidando. A propósito, os portadores de Síndrome de Down tem anomalia genética, cromossômica, trissomia do par 21. Pelo aspecto da carga genética suas células são diferentes das células ditas humanas, reconhecidas como humanas.

O pseudo-hemafrodita masculino feminilizante nasce estéril, demanda-se anos, e foi necessário o advento da moderna genética para descobrir que se trata de carga genética masculina num corpo fenotipicamente feminino. Antes do século XX seriam, e de fato foram, considerados como mulheres que por causa desconhecida seriam estéreis. No entanto biologicamente, sob condições naturais sem necessidade de intervenção do engenho humano, tais indivíduos podem se desenvolver até o nascimento, tendo a partir de então total viabilidade de se desenvolver como sencientes, autoconscientes e, fundamental, capazes de atividade cognitiva elevada, a característica mais ímpar da espécie humana. Não adentraremos no trauma psicológico que tal indivíduo sofre quando tardiamente descobre que sua identididade genética é diferente da identidade fenotípica, uma carga genética masculina num corpo que se desenvolveu completamente feminino, salvo a descoberta dos testículos na região abdominal, a falta de menstruação e outros indicativos que só em idade avançada conduzem os médicos a investigar o cariótipo do indivíduo. Há médicos que preferem não narrar a verdade dos fatos, enquanto outros seguem a linha que a verdade tem de ser conhecida, seja qual for o preço psicológico.

Há várias falácias que tentam defender que o anencéfalo possui capacidades características de um ser humano viável e pleno. Movimentos dos membros, estes são neurobiologicamente organizados em toda sua complexidade na medula, nos arcos reflexos medulares. O cérebro apenas comanda, através de tratos descendentes motores, a regulação fina destes arcos reflexos. Seria longo demais falar de arcos reflexos e sua organização, e como atuam no controle do movimento. No entanto, sem faltar ao rigor, podemos citar fontes, como a descrição dos experimentos de Mark Shik e Grigori Orlowsky, em Principles of Neural Science, de Eric R. Kandel (Prêmio Nobel de Medicina), J. H. Schwartz e T. M Jessel (Elsevier, 3. ed., p. 591), onde descrevem os experimentos com um gato descerebrado em uma esteira, e através de estimulações no tronco cerebral, em áreas motoras do tronco cerebral, tal gato, sem qualquer participação possível do cérebro desconectado cirurgicamente, conforme a intensidade dos estímulos elétricos, anda, marcha ou corre. Os reflexos de retirada do membro frente a estímulo de dor é totalmente medular, quando o estímulo de dor chega ao cérebro, o movimento reflexo já foi ou no mínimo está sendo realizado.

O anencéfalo tem a carga genética humana completa, sim, tem, como qualquer uma das várias células que todos nós perdemos todos os dias, e isto não nos torna assassinos de nós mesmos. E basta o DNA retirado de uma célula a partir do material de simples exame de sangue ou de saliva de qualquer ser humano, e se pode, por intervenção do engenho humano em técnicas de clonagem, se gerar um outro ser humano.

Fatos incontestáveis. O anencéfalo não tem viabilidade fora do útero por mais que algumas horas, ou pouquíssimos dias. Há excessões, raríssimas, de sobrevida de até próximo de dois anos, mas não altera sua condição vegetativa. Sua condição é biologicamente inferior a um paciente vítima de morte cerebral. O morto cerebral já apresentou uma vida humana plena.

Um paciente com morte cerebral tem preservados os arcos reflexos medulares, o coração, como no caso do anencéfalo, salvo intervenção do engenho humano, continua batendo por algumas horas ou alguns dias, antes do colapso orgânico. E nem por isso é proibida a retirada dos órgãos. Devemos lembrar que os fundamentalistas religiosos, por ocasião dos primeiros transplantes, defendiam ser uma verdade científica que havia vida humana enquanto o coração estivesse pulsando, e logo os trasplantes seriam "eticamente inaceitáveis". Antes do avanço da ciência a noção de morte não era cerebral, era percebida pelos batimentos cardíacos. Se não houvesse revisão de conceitos pelo avanço da ciência médica, os transplantes de órgãos seriam absolutamente impossíveis sem denúncia por crime de homicídio contra a equipe médica.

Um dos motivos que há tão poucos transplantes no Brasil é devido ao curto tempo que há entre a constatação de morte cerebral e as providências necessárias para manter o paciente vítima do acidente com o coração e sistema respiratório funcionando, até haver a chegada da equipe de retirada. O paciente com morte cerebral tem de ir para uma UTI, ser conectado num respirador artificial, receber doses contínuas de vassopressina para não desidratar, que com a morte cerebral a neurohipófise deixa de produzir o hormônio antidiurético, a vasopressina, e se não for feita reposição artificial a vítima de morte cerebral desidrata, em situação idêntica à patologia de diabetes insipidus. A imensa maioria dos hospitais públicos não tem UTIs suficientes nem para os pacientes com alguma chance viável de recuperação, a vítima de morte cerebral é deixada entrar em colapso múltiplo dos órgãos, independente da imensa fila de espera de transplantes, não por maldade ou desídia dos médicos, e sim por que há pacientes com alguma chance de vida precisando daquela vaga na UTI que seria ocupada por uma vítima de morte encefálica até a chegada das equipes de diagnóstico e retirada dos órgãos.

No anencéfalo a mãe funciona como um aparelho artificial de sustentação da vida. O anencéfalo respira pela mãe, se nutre pela placenta da mãe, e uma vez fora do útero se lança à situação idêntica ao desligar dos aparelhos de um paciente com morte cerebral. Se a intocabilidade do anencéfalo é absoluta, por igual lógica é probido os transplantes de órgãos. Pode se tirar a excessão como a regra. Que haja um registro de anencéfalo com mais de dois meses vivo. Sugar o leite é arco reflexo, não envolve controle cerebral, mecanismos no bulbo e tronco cerebral que podem estar presentes em feto sem córtex cerebral operam tal reflexo motor. E depois, o registro que divulgam na internet reduz à quase nota ínfima dois fatos. A criança se alimenta com sonda, e tem vida vegetativa. Alimentação com sonda, respiradores artificias e monitoramento de sinais podem manter um paciente de morte cerebral estável por anos, e não desqualifica a morte cerebral.

Ao longo da exposição colocamos três características essenciais, a autopoiese, a senciência e a autoconsciência. Em todos os casos que falta uma dessas à vida humana, outras duas estão presentes. No anencéfalo estão ausentes as três.

Chegamos ao ponto fundamental onde a teoria concepcionista falha, bifurca-se e uma de suas bifurcações diante do caso concreto leva à falácia, à irracionalidade.

O anencéfalo é uma vida em potencial que se inviabilizou por seus próprios mecanismos, sem nehuma intervenção externa do engenho humano.

Conceitos como eugenia de raça pura, e outros, para serem efetivados exigem maquinação de vontade e engenho humano. A inviabilização da capacidade de evolução da condição de vida humana potencial para vida humana plena no anencéfalo acontece de forma absolutamente natural, totalmente independente de qualquer ato de vontade e muito menos de qualquer participação do engenho humano.

No outro extremo há a mãe. Senciente, autoconsciente, e que sofre riscos à saúde, tanto física quanto psicológica, riscos de danos físicos imediatos e afetações psiquiátricas até de longo prazo em efeitos negativos sobre esta. Devido a ausência do telencéfalo, o feto anencéfalo não tem o controle inibitório sobre os arcos reflexos, em geral é um feto que se mexe muito e de forma desordenada, colocando a mãe sob riscos como deslocamento de placenta. Há controvérsias quanto a isto? Obviamente que sim, e neste aspecto a discussão dos riscos de gestação cabe à medicina, especialidade da ginecologia, desenvolver a questão em profundidade, o que, qual seja o resultado das discussões, não afeta a sustentação de nossa tese.

E o aspecto do crime de tortura? Obrigar uma mãe a ser reduzida à igual condição de uma máquina de sustentação artificial de uma "vida" que é incapaz de se manter por seus próprios recursos biológicos sob condições naturais, é reduzir à condição humana da mãe a um objeto. E as implicações de limitação da vontade, depreciação da condição humana e psicológica da mãe adentram nos limites de atos de tortura. Poderíamos até pensar, em outra análise posterior, rever a questão de obrigar a mãe a carregar um anencéfalo em seu próprio corpo por imposição de ato de agente estatal, por coerção de agentes estatais, como violações da Convenção Intaramericana Para Prevenir e Punir a Tortura, começando por seus artigos 2 e 3, visto que claramente queremos defender posições harmônicas com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos1. Vale a leitura dos artigos 2, 3 e 4 desta Convenção da qual o Brasil é signatário.

A teoria concepcionista é forte o suficiente para sustentar os direitos desde a concepção do zigoto até sua transformação em embrião e feto viável. E garantidas as condições de sob condições naturais haver o desenvolvimento à condição humana plena, a Constituição e o Código Civil garantem a integridade de tal ser humano, o seu direito de evoluir, protegido do engenho humano contrário, da condição de vida humana em potencial à vida humana de fato.

A teoria concepcionista é fraca e falaciosa quando acontece o fato concreto da viabilidade de transformação de vida humana potencial em vida humana falhar por motivos biologicamente naturais, sem intervenção volitiva ou de engenho humano. Falha no caso que naturalmente, por seus próprios recursos biológicos, a vida humana em potencial se inviabilizou. Passa a ser uma expressão de idéias em um arranjo lógico que não encontra reproduzido na realidade aquilo que afirma defender, logo se reduz a uma ficção com resultados reais trágicos. Então ou se admite o fundamentalismo insano que prega a tortura física, moral e psicológica da gestante, ou admite-se a condição peculiaríssima do caso que o aborto nessa situação não representa crime de homicídio, pois para haver homicídio é necessário que haja vida humana a ser protegida. E podemos equiparar a vida humana potencial em condições de pleno desenvolvimento à vida humana plena como valor a ser protegido pela lei.

Não vamos reduzir a questão a falta de um único dos quesitos propostos ter condão ostensivamente eliminatório do reconhecimento de vida humana. Falamos de três quesitos. Autopoiese, senciência autoconsciência. Os três ausentes no anencéfalo. Basta dois quesitos dos três citados para que sustentemos que defendemos, muito claramente, uma não permissão da idéia do aborto eugênico. Falemos destes três quesitos claramente vistos sem a necessidade de intervenção do engenho humano.

A medicina falha? O ultra-som é impreciso, mas a ressonância magnética é suficientemente precisa para um diagnóstico sem erros. O custo da ressonância, a falta de tomógrafos de ressonância magnética em hospitais públicos para atender casos de emergência, esta questão ser ignorada pelos fundamentalistas torna o discurso dos mesmos numa fraude. Não se trata de questão de teoria econômica. Num país onde faltam UTIs infantis e onde nas UTIs de adultos de hospitais públicos a pressão pela disponibilidade das poucas vagas é tanta que se perdem n transplantes no que o paciente com morte cerebral não é mantido vivo até a chegada da equipe de retirada dos órgãos. Há direitos à vida mais fundamentais em jogo.

No mais há a questão da violência contra a gestante. A questão da violência não tem acolhimento secundário no nosso sistema jurídico. Por que outro motivo o aborto em caso de estupro, previsto no Código Penal, foi recepcionado pela CF/88, senão pela necessidade de erradicar como uma metáfora a uma planta venenosa, o ato de violência, cujos frutos trazem o DNA venenoso de extensão da violência? Por uma simples metáfora, poderia se ter o sémem do estuprador enveneado tanto pela violência do ato em seu DNA simbólico e material de fato. O Código Penal autoriza, recepcionado pela CF/88, o aborto em caso de esturpo. Por que melindres em relação a anencefalia? É questão mais simples para o Tribunal do Juri decidir em medida liminar, sem incoerências legais ou lógicas.

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Sobre o autor
Ramiro Carlos Rocha Rebouças

Advogado, Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estácio de Sá, Mestre em Fisiologia pela FMRP-USP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REBOUÇAS, Ramiro Carlos Rocha. Inconsistências da teoria concepcionista como absoluta e única de defesa do direito à vida frente aos conflitos jurídicos da anencefalia e outros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3008, 26 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20038. Acesso em: 26 dez. 2024.

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