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Inconsistências da teoria concepcionista como absoluta e única de defesa do direito à vida frente aos conflitos jurídicos da anencefalia e outros

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26/09/2011 às 07:59
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Um truísmo nada óbvio. O que é "Ser Humano"? A teoria concepcionista exacerbada em outra fraqueza.

O nosso ponto de discussão será polêmico? O que não é polêmico no Direito? Tomamos como pressupostos na condição de hipóteses gerais poucas coisas aqui, que colocamos fora da discussão. Primeiro pressuposto, o Direito é uma ciência dedutiva e não prescinde da lógica, embora não seja limitado pela pura lógica. Segundo ponto, o Direito é uma ciência que emerge das sociedades não como uma digressão intelectual, e sim pela necessidade de oferecer respostas para problemas concretos de cada sociedade, onde o direito ganha seus matizes próprios. Terceiro ponto, uma construção jurídica que viole os princípios da lógica é um exercício de arbítrio, e não de equidade, que não dispensa a razão, e a sua origem na acepção do termo "ratio ", sem ser aqui por pedantismo, mas por antítese ao arbítrio, Ratio é derivado do verbo reor, contar, calcular, contudo, ratio significa também: razão, faculdade de calcular e de raciocinar; juízo, causa, porquê. Logo não poderemos violar a lógica dedutiva. Estes são os pressupostos básicos com que pretendemos trabalhar. O direito tem de fazer a todo momento escolhas, opções entre uma e outra alternativa, tendo o jurista a dura tarefa de decidir entre perdas e ganhos inevitáveis qual a posição que melhor considera defender.

O tema, a definição mínima para o Direito do que seja "vida humana", a determinação minimamente racional do que seja "ser humano". Esta definição está nas bases do direito mais subsidiário, o Direito Penal, onde saber o que é Ser Humano faz a diferença entre a questão de "matar alguém" e "matar alguma coisa". Quanto ao que é um "Ser Humano"? Dizer-se-ia que é algo óbvio. ¿Tão óbvio? Não pretendemos esgotar o tema, e muito menos dar uma palavra definitiva, seria a antítese frontal do que procuramos aqui, que é simplesmente questionar estes tantos ou poucos óbvios. Fato, o direito como construção de conhecimento científico não opera no arbítrio. Sem querer aqui discutir metodologia jurídica em minúcias, não há, evidentemente, a minima condição de negar que o direito necessita de sua metodologia própria, independente de como tentem tantos não juristas avessos à ciência do direito a desqualificar a cientificidade da ciência jurídica. Fique claríssimo no que pretendemos ter duas coisas tidas como claras aqui, a primeira sendo de o direito não constituir monopólio dos advogados e juristas, e a segunda, para desqualicar o direito como ciência primeiro é preciso conhecer seus princípios antes de cair em arbítrio cientificista antitéco à definição lato sensu de ciência, e afirmar por convicções próprias ou argumentos claudicantes que "direito não é ciência".

Chegue um jurista ao Tribunal defendendo o direito à vida do ser humano. Supõe-se que a Magistratura já tenha um claro conceito do que é vida humana. Questiono se os próprios biólogos e médicos e demais profissionais da saúde tem essa percepção menos intuitiva e mais claramente construída logicamente a partir de postulados que não gerem contradições intrínsecas. E isto com o Direito? O Brasil, como bem antes citado, é signatário do Pacto de San José da Costa Rica, a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, e neste diploma legal, qual tem capacidade de colocar, dependendo das decisões de nossos Legisladores e Tribunais, o Brasil em extremamente incômoda situação de ilícito internacional, está disposto no Jus Cogens Público Internacional dos Direitos Humanos.

Artigo 4. Direito à vida

1.Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.

Partimos do pressuposto, pelo todo do texto da Convenção, que esta pessoa é um Ser Humano. E fazemos referência aqui ao RHC 18.799-RS do STJ, onde o Ex.mo Ministro Relator José Delgado em seu voto, que omitimos por economia de espaço e pertinência de transcrever trechos, faz clara e coerente defesa do status de Emenda Constitucional da CADH. E, óbvio então, claramente temos em vista a teoria concepcionista da vida humana. O Direito não é arbitrário, não inventou um conceito jurídico do nada. Buscou a fundamentação de um conceito jurídico, direito à vida, na ciência. E de onde vem a construção teórica concepcionista? Consenso há nas defesas desta teoria que advém dos experimentos Karl Ernst Von Baer, que observou, em 1827, o ovo ou zigoto em divisão na tuba uterina e o blastocisto no útero de animais. Vamos abrir um paralelo, não uma digressão, nem mudança de foco da discussão, mas não vamos incorrer no arbítrio de que a modernidade não interessa no caso. Só, e tão-somente em 16 de Outubro de 1846 a anestesiologia tem seu marco inicial com William Thomas Green Morton, realizando uma anestesia baseada em éter no paciente Edward Gilbert Abbott para que o cirurgião John Collins Warren excisasse uma lesão vascular de seu pescoço. Logo se houve experimentos com animais em 1827, antes da anestesia com éter, estes experimentos, independente de equipamentos, em sua maioria podem ter utilizado, em sua época aceitáveis, métodos de pesquisa animal que nos dias atuais seriam, quase que certamente, totalmente inaceitáveis ao ponto de levarem à possível interdição do laboratório por parte das comissões de bioética das boas universidades, pois os alunos não suportariam os gritos de animais "torturados" nos corredores de onde ficam os laboratórios. Não fugiremos ao ponto proposto, questionar numa perspectiva contemporânea algumas definições possíveis do que seja vida humana.

Aceitamos que um empedernido defensor da doutrina concepcionista como única e absoluta afirme que vida humana é todo o resultado da fusão de um gameta feminino com um gameta masculino, produzindo um óvulo fecundado, com direito a murro na mesa e dar as costas como se a discussão estivesse sumariamente encerrada por falta de questionamentos possíveis não só em contrário, como passíveis de gerar dúvidas ou infirmar a tese. Perguntaríamos, mesmo ao vazio; e no caso da clonagem? Não discutamos as proibições, pois o direito é particular de cada povo, e suponhamos um nada inverossímil caso concreto de uma clonagem humana bem sucedida, com implantação do óvulo, desenvolvimento, nascimento. Então a questão, o ser gerado não é "Ser Humano"? O fato de ter sido gerado em um país contra a ética dos demais países torna esse ser, portador de genes e fisiologia completamente humanos, algo que não mereça ser reconhecido como "Ser Humano"? Estritamente não houve fecundação. Vamos ter então de enfraquecer o conceito de concepção. Ficaria sendo considerado, com fins de proteção de direitos, todo óvulo viável contendo uma carga genética humana. Outro murro na mesa e está encerrada a questão?

O que caracteriza a carga genética humana biologicamente falando? Vinte e três pares de cromossomos, sendo vinte e dois pares de cromossosmos somáticos, em seu conjunto simbolizados por AA, e um par de cromossomos ditos sexuais, que diferenciam o sexo genético, X e Y. Vamos supor um caso muito simples. Síndrome de Klinefelter, sujeito morfologicamente masculino, com cariótipo AAXXY. Não é um ser humano? Então vamos enfraquecer a questão para caber na definição. "Ser humano é todo aquele gerado a partir de um óvulo que possua carga genética humana normal, independente de presença de mais cromossomas, de mais genes". Então abarcamos praticamente todas as trissomias cromossômicas, incluindo Down, Edwards e Patau. Contrapomos o fato biológico, a síndrome de Turner, pessoas tidas como AAX0, ou seja, possuem cariótipo 22 pares de cromossomos normais e apenas um cromosso X, faltando o outro do par. Então não "Ser Humano". Enfraquece-se o argumento então para caber, afirmando que "é humano todo aquele gerado a partir de óvulo viável que possua pelo menos um minimo percentual de carga genética humana". Consegue fazer caber as síndromes genéticas cromossômicas conhecidas, mas esse enfraquecimento de pressuposto essencial pode levar a outra situação. Suponhamos um cromosso X represente com algum erro 1/46 da carga genética humana, aproximadamente 2,17%, façamos uma redução, coloquemos o cromossomo Y, suponhamos até 1,5% de falta de carga genética humana completa. Solução? Problema. Um chimpanzé normal, dentro deste raciocínio, seria um ser humano, pois estudos apontam a diferença genética de aproximadamente apenas 1% destes para os humanos2 3. Então vamos fazer o quê? Tentar compensar o enfraquecimento do argumento com uma inclusão de restrição? Podemos supor "que "Ser Humano" é todo ser gerado a partir de um óvulo humano, que carregue um mínimo percentual de carga genética humana e que tenha forma antromorfica reconhecidamente humana". Fim de questão? E os raríssimos xipófagos? Seria forma reconhecidamente humana e normal duas cabeças, um tronco dividido a partir do processo xifóide, com dois corações, duas cabeças, e um único aparelho genito-urinário, um único intestino grosso? Os xipófagos deixariam de ser reconhecidos como humanos por sua morfologia atípica?

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A questão básica chega ao ponto que queríamos aqui fazer conduzir. A partir de bases científicas incontestes podemos ser tão arbitrários quanto queiramos nesta questão. Basta as teses, que não deixam de ser rigorosamente científicas por sua replicabilidade e seus métodos, que escolhamos a partir de dados experimentais. Podemos escolher, sem infirmar o sentido da afirmação, podemos optar por quais verdades científicas, das disponíveis, nos interessem como bases de uma axiologia que mais nos convenha. E isto nos conduz a uma conclusão óbvia, retirar do Direito enquanto ciência, para colocar sobre qualquer outro campo da ciência puramente, por si mesmo enquanto ciência natural ou mais antiga ou que estuda a questão material de dado problema, a culpa e responsabilidade absoluta por opções filosóficas e éticas que decorrem como obrigatórias de serem feitas pelo Direito em sua própria essência e razão de ser, é construir uma falácia como outra qualquer. A ciência lato sensu pode emprestar ao Direito o amadurecimento do método e da objetividade, mas não pode aliviar o Direito de suas questões metodológicas enquanto ciência autônoma, a jurídica. A Biologia pode oferecer resultados que serão mais dúvidas que respostas para o Direito. O Direito por vezes partilha a dureza da Filosofia, não poder, sob risco de arbítrio, pressupor imediatamente dados por representação e compreensão, dados previamente definidos seus objetos com clareza de todos os predicados inerentes a estes. E no entanto não pode o direito se contradizer em sua base axiológica. A Biologia, como fazemos aqui, pode oferecer objetos, conceitos, mas ao Direito caberá escolher quais melhor lhe orientarão em cada tempo a uma resposta de paz social. E não há paz social pela promoção do sofrimento humano.

Outra questão, a doutrina concepcionista como defendida hoje por grupos religiosos radicais é uma questão muito mais de fé, e mais ainda de escolhas filosóficas e lógicas que fundamentem as escolhas de fé, que de base científica inconteste, como demonstramos que podemos escolher axiomas científicos, com fundamentos muito mais sólidos e com confiabilidade, pela replicação de experimentos, que conduzem a uma profundidade de conhecimentos jamais possível de sequer serem imaginados em 1827. Todos nós temos nossos ídolos, a ciência tem seus ídolos. A religião afirmava que a vida vinha de Deus, e acreditava-se até os experimentos de Pasteur em "geração espontânea da vida". No entanto a história da humanidade hoje é muito diferente da vivida no século XIX. E pressupomos uma perspectiva de historia material, fazendo aqui a observação que a própria metodológica da Ciência da História evoluiu e se transformou intensamente a partir da segunda metade do século XX, quanto evoluiu a Biologia a partir da descoberta da estrutura de dupla hélice do DNA por James Watson e Francis Crick, descoberta publicada na Nature em 1953. Hoje bactérias com genes transformados por engenharia genética produzem Hormônio do Crescimento Humano, sendo para os pacientes que deste necessitam muito mais seguro que a técnica antiga de extração do hormônio da hipófise de cadáveres, o mesmo valendo para técnicas de DNA recombinante que levam bactérias transformadas a produzir insulina humana, substituindo a antiga técnica médica de uso de insulina de animais em humanos. Temos aí organismos transgênicos, outra questão do Direito atual.

Queremos concluir com o seguinte fato. Em nenhum momento falamos de eugenia de raça, em nenhum momento desqualificamos ou qualificamos o que seria "Ser Humano" Acreditamos apenas ter alcançado nosso propósito de demonstrar que a questão de definir "Ser Humano" em bases axiológicas universais, numa definição clara, como tão necessário ao Direito, não é tarefa tão óbvia assim. E que esta questão precisa ser objeto de análises mais profundas no que diz respeito ao objeto de atuação da Ciência do Direito. Não podemos exigir a axiomatização supostamente científica de um direito da primeira metade do século XIX às necessidades reais dos desafios das sociedades da primeira década do século XXI. E esta questão não se resolverá com gritos e bumbos nas praças e nos corredores das casas legislativas tentando calar as discussões filosóficas indesviáveis, que precisam ser atualizadas com toda profundidade não apenas para esta, como para diversas outras questões. Em tempos da Exobiologia4 não podemos ficar transformando em dogmas uma biologia do século XIX anterior ao surgimento do conhecimento da dupla hélice do DNA, e, no entanto, não podemos prescindir da milenar filosofia. Apenas não tentem usar a ciência como falácia para sustentarem dogmas que no fundo tem um único objetivo, proibir a sociedade de repensar suas escolhas. O mundo é dos fatos e não da conveniência das idéias, repetimos mais uma vez. Uma bela teoria que não reflita fatos, pois mais coerente que seja, como a teoria da "terra como centro do universo", não se sustenta como verdadeira que não se vê sustentada em fatos. O "criacionismo" se reduziu a medievalismo e ignorância quando fatos, evidências factuais provaram serem verdadeiras as deduções da teoria da evolução das espécies. Pode se negar a ciência? Óbvio! Mas este negar da ciência é coerente por parte dos grupos religiosos que fazem questão do uso de antibióticos de última geração, desenvolvidos a partir de técnicas que têm seu instrumental em fatos científicos que comprovam a teoria da evolução, a qual negam? Inclusive por que as bactérias evoluem, conforme mecanismos afirmados na consolidação das teorias da biologia evolutiva, desenvolvendo resistência a antibióticos antigos. Incoerência de conveniência?

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Sobre o autor
Ramiro Carlos Rocha Rebouças

Advogado, Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estácio de Sá, Mestre em Fisiologia pela FMRP-USP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REBOUÇAS, Ramiro Carlos Rocha. Inconsistências da teoria concepcionista como absoluta e única de defesa do direito à vida frente aos conflitos jurídicos da anencefalia e outros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3008, 26 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20038. Acesso em: 27 dez. 2024.

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