Capa da publicação Anencefalia: inconsistências do concepcionismo na defesa do direito à vida
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Inconsistências da teoria concepcionista como absoluta e única de defesa do direito à vida frente aos conflitos jurídicos da anencefalia e outros

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26/09/2011 às 07:59
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Questão Moral ou Questão Biológica?

Faremos uma última incursão crítica à questão do direito absoluto à vida que alguns podem defender dentro do enfoque da teoria concepcionista de modo empedernido, e faremos discorrer sobre contradições que se fariam emergir à prática jurídica, e ao peso que cairia sobre os ombros dos Tribunais. E exporemos mais contradições que desafiam os argumentos da doutrina concepcionista como vista hoje em sua forma exacerbada.

Os concepcionistas, eivados de argumentações religiosas para quais buscam o auxílio da ciência que escolhem, não a ciência que descreve os fatos reais hodiernamente, defendem até mesmo a ilegalidade do art. 128 do Código Penal. O inciso I teria de, mantido o rigor conceitual da teoria concepcionista e a defesa absoluta da vida, sem distinção de vida potencial, sofrer uma leitura que nem draconiana é, e sim insensata. Num caso de gravidez ectópica, bastasse a ínfima possibilidade de a criança sobreviver, o corpo da mulher não pertenceria mais a ela na condição de mãe, e seria propriedade do Estado na defesa dos direitos que não são vistos como potenciais, e sim como absolutos, do embrião, do feto, até esgotamento da última possibilidade, custe o que custar. Os direitos fundamentais não devem apresentar incoerência entre si. Vejamos então o art. 5º da CF/88 em seus incisos III e XLVI a) e b), Seria uma forma de proclamação de uma nova escravidão. Fato inconteste que a escravidão não é compatível com os valores fundamentais que alicerçam o ideário do discurso dos que defendem e fundamentam moralmente a teoria concepcionista.

Enfraqueça-se a oposição ao art. 128 somente em relação ao inciso II. Tomamos como analogia a doutrina da "árvore envenenada" que só produz frutos envenenados e estes trazem sementes com genes que produzem o veneno da árvore matriz. A princípio é uma discussão de direito processual penal, e um exemplo de onde foi bem vista pelo Excelso Pretório vem a ser o RCH 90.372-RJ – STF, tendo como Relator o Excelentíssimo Ministro Celso de Mello. Faremos uma analogia com a questão do estupro, tomando não o valor da fato como coisa, e sim do fato como conceito, sendo este ato, o esturpro, como uma árvore venenosa, a gravidez indesejada de tal ato o fruto, e os fatos jurídicos conseqüentes à transmissão do DNA desta árvore maligna o germinar das sementes da árvore venenosa com resultados nefastos. Assentar o direito à vida do embrião concebido por estupro acima do direito de aborto da mulher é querer presumir que se trata de apenas uma violência moral. A questão que parece estar negligenciada é que a gravidez decorrente de estupro tem uma base biológica totalmente inerente, e que arremessa a questão para o campo da seleção natural, do darwinismo mais puro, e as conseqüências são, se aceita a supremacia do direito do feto, a negação de tudo que defendem os concepcionistas no afirmarem que o aborto eugênico é abominável, quando estarão dando força jurídica ao mais primitivo modo de eugenia genética, o uso da força para perpetuação dos genes, e a lógica deste modelo de seleção natural é a extinção dos mais fracos em favor dos mais fortes, que sobrevivem pela transmissão de sua carga genética. Concepcionistas darwinianos, seria este o caso em fatos, "os mais fortes se reproduzem e perpetuam seus genes". Obrigar a mulher a carregar os genes do estuprador é consagrar esta lógica. Somente a espécie humana tem comportamentos mafiosos? Em trabalho publicado nos Proocedings of National Academy of Sciences of United States of America, Hoover and Robson descrevem literalmente o comportamento mafioso de uma espécie de pássaro dos EUA, o cowbird, que usa de violência e retaliação para impor que outras aves choquem seus ovos e criem seus filhotes. Diferente dos cucos europeus e americanos, e dos chupins comuns no Brasil que mimetizam seus ovos iguais a dos pássaros cujos ninhos retiram os ovos para depositar os seus, o cowbird não tem ovos parecidos com as das espécies hospedeiras. Deposita seus ovos nos ninhos de outras aves, e aquelas que ejetam para fora dos ninhos os ovos do invasor tem seus ninhos destruídos pelo mesmo. Impor o custo energético do cuidado com a prole para outros e propagar seus genes são motivações biológicas, não são questões de moral. Supomos que a evolução da espécie humana seja para produzir resultados mais eficientes que a crueza do matar ou morrer da seleção natural. Logo impor à mulher engravidada por um estuprador a obrigação de ir adiante com a gravidez a título de direito do feto é premiar de diversas formas o estuprador, mais que simplesmente impor tortura psicológica e física à mulher, pois a depressão pós-parto é reconhecida como doença pela Organização Mundial de Saúde, é consagrar pelo direito positivo as regras do darwinismo biológico em sua concepção mais pura e sem vícios ideológicos pejorativos como a tão combatida leitura do darwinismo social. E os frutos envenenados? O estuprador como pai biológico, mesmo que perca o pátrio poder, nascendo o filho, concorre à herança deste filho, obrigando à família da vítima que já sofreu com a violência a ter que tomar medidas jurídicas para tentar deserdar o criminoso. Este saindo da cadeia, poderá na condição de ascendente da criança, quando esta adulta, ingressar com ação de alimentos por necessidade, reclamar de abandono material, e onde tudo irá parar? Nos Tribunais. Ver como que positivada a remuneração a título vantajoso da ilicitude? Sobrecarregar a máquina do judiciário? Mais que isto, pela mesma lógica fundamentalista, o estuprador uma vez cumprida a pena, não é mais responsabilidade do Estado, é também uma vida humana, e como tal precisa de dignidade, não bastasse tal posição ideológica aplicada ao fato jurídico obrigar a toda sorte de violências para além da já sofrida a vítima, ainda fundamentaria o direito do criminoso causador dos danos ter direito de ser mantido em alimentos pelo fruto do seu ato criminoso, com base na lei civil, por ser pai biológico, ascendente, trazendo ao crime vantagens que não se extinguiriam, como se extingue a pena com seu cumprimento para o agressor, mas e a vítima é culpada? Os laços genéticos são inextinguíveis. Afirmar que não aconteceria assim, seria supor um mundo perfeito, e neste mundo pretensamente perfeito não caberia a realidade do estupro.

Esta questão poderia ser polêmica? Em 2007 uma solução Amistosa entre a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o Governo do México,

INFORME Nº 21/07 [05] apontou que nosso entendimento é conforme com o entendimento da CIDH-OEA quanto à questão de gravidez decorrente de estupro. O Governo do México foi compelido a fazer reparações por permitir que grupos religiosos em um hospital público impedissem um aborto, autorizado por lei, em uma vítima de estupro quando tinha 14 anos de idade.

Conclusões

Introduzimos conceitos totalmente coerentes com o ordenamento jurídico, e que trazem embasamento biológico sólido. Como todo posicionamento está sujeito a muitas críticas, a reações que tentem demonstrar sua incoerência, e se isto acontecer é ótimo que seja. O direito é uma ciência com sua própria metodologia, uma ciência de essência lógica dedutiva. Um direito eivado de contradições desafia princípios fundamentais de seus propósitos inerentes, como os da segurança jurídica e da reserva legal. Consideramos que a jurisprudência, mais que historicamente, pela dinamicidade dos fatos sociais, não pode se escusar de função de profunda reflexão, de analisar os fatos em conceitos cada vez mais profundos, aceitar os desafios que lhes são próprios. O que procuramos em nossas considerações foi buscar uma perspectiva de lógica formal na análise dos fatos jurídicos, que traga possibilidades jurisprudenciais eventuais tais que, fundamentalmente, não desafiem os princípios de direito positivados. Não nos furtamos de citar, sem transcrever, o H.C. 56.572-SP do STJ, Relator Eximo Ministro Arnaldo Esteves Lima. Discordamos da conclusão de considerar o estupro fato meramente moral, e mostramos os porquês de nossa consideração, mas concordamos que o legislador do Código Penal de 40 não dispunha de uma ciência médica possível hoje.

E quais critérios objetivos defenderíamos? A viabilidade da evolução de vida potencial para vida plena do embrião e feto, e a situação em que a mãe não seja reduzida de sua condição humana para ser obrigada pelo Estado, desafiando o Protocolo de Cartagena, Convenção Americana Para Prevenir e Punir a Tortura, a se reduzir de sua humanidade à condição de uma "máquina orgânica" de manutenção artificial de uma vida inviável. O Brasil é signatário desta convenção adicional a CADH, e desafia-la é igualmente ato ilícito internacional. No mais um Direito sem escolhas de pensamento, poderia se substituir o Magistrado por um computador sem prejuízos ao exarar de simples silogismos de bases simplistas. E longe estar de ser este o caso da realidade de nossos Tribunais, onde vigora a hermenêutica na interpretação da lei.


Referências

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Notas

  1. http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/i.Tortura.htm (acessado em 8 de janeiro de 2008)
  2. Gibbons R et al.
  3. (2005): J Mol Biol.  2004; 339(4):721-9.
  4. http://www.projetoockham.org/cgi-bin/yabb/YaBB.cgi?board=ciencia;action=display;num=1131309000 (acessado em 8 de janeiro de 2008)
  5. http://exobiology.nasa.gov/ (acessado em 8 de janeiro de 2008)
  6. http://www.cidh.org/annualrep/2007sp/Mexico161.02sp.htm (acessado em 8 de janeiro de 2008)
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Sobre o autor
Ramiro Carlos Rocha Rebouças

Advogado, Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estácio de Sá, Mestre em Fisiologia pela FMRP-USP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REBOUÇAS, Ramiro Carlos Rocha. Inconsistências da teoria concepcionista como absoluta e única de defesa do direito à vida frente aos conflitos jurídicos da anencefalia e outros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3008, 26 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20038. Acesso em: 29 mar. 2024.

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