RESUMO
O presente artigo visa fazer um estudo do caso da "Farra do Boi" e discorrer acerca do contexto jurídico-social da proibição e criminalização da manifestação. Pretende-se também analisar as modificações sociais que mobilizaram a sociedade civil contra esta prática cultural, bem como a maneira que se deu este processo.
ABSTRACT
The present article intend to make a study about the case "Farra do Boi" and talk about the legal and social context of the prohibition and criminalization of the manifestation. It`s also tried to analyse the social modification that mobilized the civil society against this cultural practice, and the way that this process happened.
PALAVRAS-CHAVES: "Farra do Boi". Movimentos sociais. Hard cases. Princípios.
KEYWORDS: "Farra do Boi". Social movements. Hard cases. Principles.
1. INTRODUÇAO
A lei Federal nº 9.605 (ou Lei de Crimes Ambientais) instituída em fevereiro de 1998 criminaliza condutas que maltratem animais, tal como descrito no cap. V Art. 32: "Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos". A aprovação de tal norma visa conseguir o fim de diversas práticas de crueldade para com os animais, que, muitas vezes, se travestem de cultura popular para permanecer vigentes.
Entre tais práticas, destaca-se a manifestação cultural catarinense conhecida como Farra do Boi. Essa "festa" popular, tem seu auge na Semana Santa, sobretudo na sexta-feira; entretanto, se realiza também em outras festas populares, tais como casamentos e aniversários. A Farra do Boi é marcada pela crueldade com esses animais, consistindo basicamente em um ritual de sequentes maus-tratos aos bois.
As atrocidades começam antes mesmo do próprio evento, quando o boi é confinado sem alimento disponível por vários dias. Além de passar fome, comida e água são colocados num local à sua vista, mas que ele não pode alcançar, como forma de aumentar seu desespero. A festa em si começa quando o boi é solto e perseguido pelos "farristas", que carregam pedaços de pau, facas, lanças de bambu, cordas, chicotes e pedras e perseguem o boi que, no desespero de fugir, corre em direção ao mar e acaba se afogando.
Os adeptos da Farra do Boi, que acontece na área do litoral catarinense, justificam a festa como uma herança dos pescadores portugueses, da Ilha de Açores, que vieram para o sul do Brasil, e afirmam que a prática é uma espécie de encenação da Paixão de Cristo, ou a "malhação do Judas" (que aqui se faz com um boneco de pano). Outros dizem que o animal representa o diabo. Contudo, pesquisas históricas mostram que essa atividade não tem qualquer conotação religiosa, servindo, sim, como espaço para o comércio e, até mesmo, compra de votos, pois os bois são doados por grandes políticos e empresários da região.
Assim, na tentativa de coibir essa prática, diversas organizações como a WSPA-Brasil (Word society for protection of animals), a ACAPRA (Associação catarinense de proteção aos animais) e a APA (Associação de proteção aos animais), bem como a sociedade civil através de intensas pressões sobre o governo conseguiram, em 1997, a proibição da Farra do Boi, através do Recurso Extraordinário número 153.531-8/SC; RT 753/101 julgado pelo Supremo Tribunal Federal.
Com efeito, o artigo tem como objetivo principal mostrar que a tentativa e êxito de se obter uma legislação a respeito da "Farra do boi", por parte de ONG´s e da sociedade civil, pode ser exemplo de como uma prática que, anteriormente, não incomodava a sociedade, passa a perturbar a consciência coletiva e a faz achar meios para exigir do Direito que ela seja banida. Desse modo, mostra-se que essa sociedade está sempre mudando sua perspectiva sobre uma série de coisas, o que se traduz em mudanças nas suas demandas.
Para provar tal mudança paradigmática, o presente artigo faz um passeio pelas mudanças constitucionais que proibiram tal ação- analisando as etapas que culminaram com a sua criminalização. Investiga-se a fundo os motivadores sociais que fizeram com que a sociedade passasse a condenar tal prática cultural: primeiro, analisa-se a consonância da visão de Antônio Carlos Wolkmer ("Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito, 1994) com o caso concreto, já que o autor vê a participação das ONGs como expressão dos movimentos sociais modernos, onde a sociedade civil organizada afirma seus interesses, sem mais esperar uma atitude judiciária, mas sim através da luta social moderna (em oposição à da época da revolução industrial); a seguir, analisa-se a perspectiva de Ronald Dworkin ("O Império do Direito", 2003), que vê o direito como um tradutor da moral social de cada tempo e que deve assim, explicitar e positivar estas mudanças (como neste caso concreto, em que uma conduta que, por não ser coibida pela sociedade, não era considerada crime, mas, à medida que passa a ser repudiada, é criminalizada). Além disso, ele fala de como é possível dissolver uma eventual coalizão de princípios constitucionais ("hard cases") e que o sistema jurídico deve apresentar um aspecto de continuidade entre as decisões, o que ele chama de "romance em cadeia".
Assim, a metodologia desenvolvida consistiu no estudo do caso da "Farra do boi", em uma análise bibliográfica dos autores supracitados, pesquisas na internet sobre a origem e prática da "Farra do boi", bem como a consulta da legislação sobre o caso.
2. Fundamentação teórica acerca da proibição da "Farra do Boi"
2.1. Os movimentos sociais como fonte de produção jurídica
A decisão do Supremo Tribunal Federal que proibiu a "Farra do Boi" foi uma ação motivada por organização popular. Esta, por meio de ONGs manifestou-se contrária a continuidade da manifestação e assim conseguiu tornar-la ilegal. Tal contexto de aprovação se dá em um cenário teorizado anteriormente por Antônio Carlos Wolkmer ("Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito, 1994), que prevê que os movimentos sociais modernos serão a maneira contemporânea de conseguir a positivação de anseios populares – já que as maneiras tradicionais, legislativo e executivo, mostraram-se historicamente ineficientes ao os realizarem.
Wolkmer, em sua teoria acerca de pluralismo jurídico afirma que os movimentos sociais modernos serão num futuro próximo, a maneira na qual a população consagrará seus anseios. Tais movimentos se dão, atualmente, de forma autônoma e independente: estes não estão necessariamente subordinados a nenhuma corrente ideológica e nem dependem política ou financeiramente de nenhuma instituição externa, não devendo assim nenhuma fidelidade a partidos políticos ou sindicatos. Estes movimentos modernos também são intrinsecamente pluriclassissistas, compostos assim por diferentes fatias sociais – não tendo que comprometer-se com fatores que beneficiariam somente uma classe em detrimento de outra (Wolkmer, 1994).
Esta nova roupagem de organização social contrapõe-se à antiga maneira como os movimentos se organizavam. Tais manifestações davam-se basicamente na época da revolução industrial e, embebidas por um espírito socialista, reinvidicavam somente benefícios no campo econômico, não visando, assim, melhorias urbanas ou sociais; além de ser somente uma reunião do proletariado, e que, portanto, não se interessava em resolver problemas de outras categorias, mas limitando-se somente a parcialmente positivar alguns direitos de interesse das classes mais baixas.
Os movimentos sociais atuais, ao contrário, por serem constituídos principalmente por classes distintas, reclamam direitos difusos e melhorias que beneficiariam a sociedade como um todo - e não somente direitos isolados que remediariam apenas determinadas situações e que não resolveriam futuras necessidades e possíveis problemáticas mais profundas. Assim, problemáticas ambientais e diversos direitos de minorias passaram a ter um palco de discussão e puderam ser efetivamente concretizados e positivados.
Em tal contexto, encaixam-se as ONGs que se mobilizaram para que o Recurso do STF, que proibiu a farra do boi, fosse aprovado. Sem a comoção popular que motivou a organização de diversas ONGs, além de ter a participação da sociedade civil, tal prática jamais teria sido proibida – e inúmeros animais ainda continuariam sofrendo com tais crueldades.
Em tal análise, torna-se latente o fato de a sociedade contemporânea ser regida pelo pluralismo jurídico: diferentemente do verificado num contexto monista, a sociedade atual é influenciada por diferentes e variados fatores sociais, tais como a família nuclear, mídia, internet, manifestações culturais, dentre outros. Desta maneira, ao organizar-se e modificar um problema que a incomodava, fica clara a interferência direta de diferentes fatores na sociedade. Esta, ao viver num contexto multifacetado, passa a ser informada acerca de diversos assuntos, o que faz com que esta tenha uma renovada gama de interesses, que vão além dos simples fatores que influenciam diretamente seu dia-a-dia. Fica assim, perceptível a influência social no mundo jurídico - e não somente o contrário, como acontecia no monismo tradicional- que adequa-se ao proposto pelas demandas sociais (se isto não é feito pelos meios jurídicos, passa a ser conquistado pela sociedade organizada).
Percebe-se assim, que a teoria de Wolkmer, aplica-se facilmente a diversos casos reais, como no que culminou a proibição da Farra do Boi. Os movimentos sociais podem concretamente mudar a realidade constitucional, como neste caso, onde, com a união de ONGS e da sociedade civil, a prática foi proibida. A sociedade, neste caso, não esperou uma possível intervenção dos meios jurídicos tradicionais, mas sim, organizou-se e conseguiu modificar a realidade que a incomodava – demonstrando assim, que a sociedade pode mobilizar-se para positivar e efetivar seus anseios.
2.2 "Farra do Boi" princípio ambiental e patrimônio cultural?
Ronald Dworkin é um grande filósofo do Direito contemporâneo, que o estudou sob um prisma social. Assim, ao enxergar o campo jurídico como um importante mediador entre as necessidades sociais e a efetivação destes anseios, o direito passaria a ser um garantidor de que as demandas sociais, que mudam de acordo com a consciência coletiva, seriam inseridas no controle estatal.
Em sua obra, "O Império do Direito" (2003), Dworkin propõe o direito como uma integridade, ou seja, o juiz deve se portar de maneira a ser a personificação da comunidade e, assim, tomar decisões que respeitem os direitos e deveres defendidos por essa comunidade. Dessa maneira, o juiz seria uma espécie de representante da moral da comunidade no campo jurídico, afirmando que:
Os juízes que aceitam o ideal interpretativo da integridade decidem casos difíceis tentando encontrar, em algum conjunto coerente de princípios sobre os direitos e deveres das pessoas, a melhor interpretação da estrutura política e da doutrina jurídica de sua comunidade. (DWORKIN, 2003, p.305).
Assim, Dworkin baseia-se em uma perspectiva principiológica do direito, ou seja, em todo conflito jurídico, há uma única solução correta (sendo aquela que representa mais fielmente os interesses da comunidade) e ela deve ser encontrada mediante análise dos princípios vigentes naquele contexto social.
Neste caso em especial, há um embate entre dois princípios constitucionais que se mostram divergentes: de um lado há o princípio que assegura a proteção ao meio ambiente (artigo 225 da Constituição Federal), do outro há aquele que protege o patrimônio cultural como um todo (artigo 216 da Constituição Federal). Tal divergência se dá na medida em que, ao mesmo tempo, que, a liberdade cultural deve ser protegida, o mesmo deve ocorrer com a fauna e a flora envolvida em tais manifestações culturais.
Ao haver o embate de princípios, Dworkin categoriza o caso a ser julgado como um hard case, e a única resposta correta a ser encontrada será aquela que não irá contrapor-se a moral amplamente aceita pela sociedade. Na "Farra do Boi", ao haver tal divergência constitucional, o juiz optou por dar precedência à proteção ao animal, visto que, neste caso em específico, tal manifestação, apesar de ser bem antiga, não era estritamente cultural (havia muitos interesses políticos e econômicos envolvidos); além do que, o direito ambiental mostrava-se gritantemente mais violado (a sociedade, em suma, incomodava-se muito mais com a crueldade para com os animais do que se incomodaria sem a ocorrência da manifestação).
Destaca-se, neste contexto, o conceito Dworkiano de romance em cadeia. Tal ideia teoriza que o direito sofreria constante renovação e complementação, na medida em que, as decisões seriam mutuamente complementadas pelos magistrados. Neste caso, a decisão do STF por meio do Recurso Extraordinário número 153.531-8/SC; RT 753/101 entende que o artigo 225 da Constituição Federal que garante que "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações." se fez mais necessário e proíbe a "Farra do Boi". Posteriormente, essa proibição segue para a criminalização através da Lei 9605/98, a Lei de Crimes Ambientais, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Em seu artigo 32, ela atribui detenção, de 3 meses à 1 ano, e multa para quem "Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos", podendo aumentar em caso de morte do animal. Desse modo, a "Farra do Boi" torna-se criminalizada.
Percebe-se, assim, que, de acordo com o descrito por Dworkin, há um processo de continuidade neste caso: cada decisão complementa e amplia o determinado pela anterior – fomentando-se assim, um processo de constante evolução e afirmação dos direitos que se desejam assegurar. Fica evidente, portanto, que houve um aumento na abrangência dos casos descritos: uma decisão que somente coibia à "Farra do Boi" em particular (Recuso Extraordinário nº 153.531-8/SC; RT 753/101) e que, portanto, somente dizia respeito a este caso concreto, foi ampliada para o plano abstrato, culminando na aprovação da Lei de Crimes Ambientais, e que passou assim a criminalizar qualquer conduta de maus tratos a animais (e não somente reger este caso em específico).
É importante ressaltar que esses princípios norteiam as demandas e interesses sociais nos seus diferentes contextos históricos. Logo, à medida que esse contexto varia e, consequentemente, os interesses da sociedade se modificam, o direito, feito com base nesses princípios, também é modificado, a fim de acompanhar a evolução da moral da sociedade.
Com efeito, ao analisar-se a decisão do Supremo Tribunal Federal que proíbe a manifestação cultural catarinense "Farra do boi" percebe-se que ela se insere plenamente na lógica dworkiana. Afinal, essa prática perdurou por quase duzentos anos sem incomodar a consciência da sociedade; porém, com a disseminação de idéias sobre a importância da preservação ambiental, sobretudo em virtudes de conferências internacionais sobre o meio ambiente, nas décadas de 80 e 90, começou a haver um maior interesse da sociedade sobre o assunto. Isso culminou no surgimento de ONGs, bem como uma midiatização do tema, resultando numa nova perspectiva da sociedade a respeito da fauna e da flora.
Desse modo, o direito como uma instituição responsável por garantir a regulação das demandas sociais tem o dever de se posicionar a respeito desses novos interesses. Assim, o que houve foi a criação de uma legislação ambiental, e foi, valendo-se dela, que os representantes de ONG´s, bem como a sociedade civil, exigiram o fim da "Farra do boi".
Verifica-se que, apesar de, neste caso concreto, Dworkin e Wolkmer compartilharem uma visão parcialmente complementar, estes se diferem no que tange à maneira de como este problema deve se resolver: para Dworkin a resposta está exclusivamente dentro do direito, qualquer questão deve ser resolvida exclusivamente no âmbito jurídico; para Wolkmer, porém, o direito manifesta-se apenas como mais uma das várias maneiras de resolução de problemáticas.
Com isso, pode-se perceber que, com organização popular e pressões sociais, uma prática cultural fortemente enraizada no imaginário popular foi extinta – isso, devido a uma iniciativa popular, que, de acordo com a inserção de novos princípios em seu seio, passou a ver tal manifestação de maneira diversa.
3. CONCLUSÃO
Desse modo, pode-se inferir que a decisão do STF e a aprovação da Lei 9.605/98 se deram em um contexto de movimentação social, onde a sociedade civil organizada por meio de ONG’s mobilizou-se para modificar uma situação cultural que a incomodava. Percebe- se então, que, em consonância com o teorizado por Wolkmer, a sociedade como um todo tem plena capacidade de efetivamente modificar o que não se adequa mais em seu sistema.
Infere-se também que, ao organizar-se em movimentos sociais e lutar por causas que lhes são pertinentes, a sociedade traduz a moral que se adequa aos seus padrões e luta para positivá-las. A proibição da "Farra do Boi" encaixa-se em tal situação, já que, até pouco tempo não incomodava o todo social, mas, ao mudar-se o paradigma e difundirem-se direitos ambientais, esta manifestação passou a ser socialmente combatida. Assim, tal como previsto por Dworkin, o direito acaba sendo um palco de efetivação dos anseios sociais em diferentes momentos, tendo assim a função de identificá-los e efetivá-los em lei. No entanto, assim como esses anseios mudam, a visão do juiz deve mudar também, conforme a particularidade de cada caso. Desse modo, em outro caso que ocorrer um embate desses princípios, não necessariamente o que preza pela proteção do meio ambiente se sobressairá.
Assim, a população como um todo pode tomar a proibição da Farra do Boi como exemplo de luta social a ser seguida. Já que, de acordo com o teorizado por Dworkin e Wolkmer, o direito pode ser tomado como um palco de reivindicação social e efetivação de seus anseios.
4. BIBLIOGRAFIA
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
WOLKMER, A. C. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. São Paulo: Alfa omega, 1994.
COSTA, Nelson Nery. Monografia jurídica brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2006.