4. Descodificação: um afastamento da centralidade do Código Civil
4.1) Direito Privado Codificado e Descodificado
Foi o jusracionalismo moderno [51] (séculos XVIII e XIX), através da ideia de sistema, que trouxe ao Direito Privado, a noção de codificação [52], qual seja, a "reunião de normas jurídicas relativas a certo ramo do Direito positivo, de forma metódica e articulada" [53]. Ela nos apresenta virtudes, como a simplificação do Direito, facilitando sua compreensão e aplicação [54]. Todavia, possui também desvantagens, como não possibilitar ao ordenamento acompanhar as mutações sociais, um pretenso (mas impossível) encerramento do Direito e uma restrição do poder do juiz, ao lhe dar parâmetros estritos de subsunção [55].
A opção brasileira, para o Direito Civil, é, sem dúvida, pela codificação, com suas virtudes e seus defeitos. Todavia, o Direito Privado, ainda na Modernidade, sofreu grande desagregação, surgindo novos ramos, podendo-se citar, dentre outros, o Direito do Trabalho, o Direito Previdenciário, o Direito Agrário e o Direito Imobiliário. São ramos jusprivatistas, que possuem legislação específica, fora do Código Civil [56]. Surge a descodificação.
A descodificação é um fenômeno contemporâneo que consiste na fragmentação do sistema unitário do Código Civil, com a proliferação de leis civis especiais que reduzem o primado do Código e criam uma pluralidade de núcleos legislativos, os chamados microssistemas jurídicos. [57]
Na seara civil, existe o Código Civil, que, graças à constitucionalização, não é o centro (papel exercido pela Constituição), mas é o diploma de aplicação prática mais direta e cotidiana. Mas não o único. No Direito Privado, são inúmeras as leis específicas. A descodificação opera de modo que, além do surgimento de novos ramos, surjam leis específicas e microssistemas legislativos.
Microssistemas são diplomas legais, com objeto específico de proteção, semelhantes às codificações, mas que, ao contrário destas, envolvem mais de um ramo do Direito. O exemplo mais notório é o Código de Defesa do Consumidor – Lei n.º 8.078/90 –, que acopla o Direito Civil (ao tratar de prescrição e decadência, responsabilidade e contratos), o Direito Empresarial (ao abordar a desconsideração da personalidade jurídica e as práticas comerciais), o Direito Penal (ao estabelecer infrações penais), o Direito Administrativo (ao tratar das sanções administrativas), dentre outros, em torno de um mesmo objeto de proteção: o consumidor. Outros exemplos importantes são o Estatuto do Idoso – Lei n.º 10.741/03 – e o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei n.º 8.069/90 –, cujos objetos de proteção são, respectivamente, o idoso e a criança e o adolescente.
É justamente o Código de Defesa do Consumidor que foi o microssistema (portanto, objeto da descodificação) mais importante na Responsabilidade Civil.
4.2) Descodificação e Responsabilidade Civil
De acordo com o art. 186 do Código Civil, que é a cláusula geral de Responsabilidade Civil, nosso sistema adota (assim como o CC/16), em regra, a teoria da culpa [58]: não há responsabilização se não houver culpa do agente. Contudo, o atual Código Civil apresenta um temperamento, vale dizer, a regra geral é a responsabilidade subjetiva (baseada na culpa), todavia, há casos de responsabilidade objetiva, ou seja, de adoção da teoria do risco, de acordo com o parágrafo único do art. 927 [59]. Se o dano decorrer "de uma atividade normalmente geradora de riscos", será "dispensável a culpa, pois o agente será responsável pelo único fato de possuir o controle da fonte geradora" [60] – esta é, pois, a responsabilidade objetiva.
Não obstante a adoção da responsabilidade subjetiva como regra geral, a doutrina [61] aponta como tendência a objetivação da Responsabilidade Civil. Grande impulso nos ofereceu o Código de Defesa do Consumidor, ao adotar exclusivamente a teoria do risco e, portanto, abolir a responsabilidade subjetiva. O CDC exerce grande influência no Direito dos Danos.
O esquema clássico da responsabilidade civil por danos está sujeito ao temperamento do art. 186 do Código Civil, fundado na configuração da culpa em sentido subjetivo. (...) No entanto, uma sociedade civil cada vez mais reivindicante reclamava mecanismos normativos capazes de assegurar o ressarcimento dos danos, se necessário fosse, mediante sacrifício do pressuposto da culpa. A obrigação de indenizar sem culpa surgiu no bojo dessas idéias renovadoras por duas razões: a) a consideração de que certas atividades do homem criam um risco especial para outros homens, e que b) o exercício de determinados direitos deve implicar ressarcimento dos danos causados. Estavam lançadas as sementes da teoria do risco. [62]
Além disso, o mesmo CDC trouxe à tona os danos de caráter coletivo – mais uma obra da descodificação. A coletivização da Responsabilidade Civil, já anunciada quando tratamos da Constitucionalização, é mais um novo desenvolvimento da Descodificação em matéria de danos. Os danos coletivos "são aqueles que atingem bens do interesse da generalidade das pessoas que integram uma comunidade" [63].
A constitucionalização trouxe a preocupação com os danos coletivos, mas foi a descodificação, especificamente o Código de Defesa do Consumidor, que trouxe o regramento e a proteção efetiva dos interesses transindividuais.
A preocupação com os bens coletivos é um dos pontos em que fica mais patente a evolução contemporânea do direito, sobretudo em áreas como as dos direitos da personalidade, do consumidor e do meio ambiente. São bens normalmente ligados aos chamados direitos humanos de quarta geração, voltados para um integral desenvolvimento da pessoa, com reflexos na tutela do meio ambiente, do patrimônio cultural, da infância, da juventude, da terceira idade, do patrimônio genético, etc.; são direitos que ultrapassam a esfera individual, deixando de ser direitos de indivíduos isolados. [64]
Em suma, a descodificação fez surgir microssistemas, podendo-se destacar o Código de Defesa do Consumidor. Por sua vez, este trouxe a responsabilidade objetiva como exclusiva, gerando grande impacto. O CC não aboliu a responsabilidade objetiva como o CDC, mas ampliou as hipóteses de indenização sem culpa, parte graças à forte influência do CDC. A objetivação da Responsabilidade Civil torna-se consequência da descodificação, evidenciada pelo código consumerista. Este, ainda, nos apresenta regramento dos danos coletivos, sendo que o interesse coletivo foi obra da constitucionalização, mas a descodificação foi a autora da sua proteção efetiva.
Em outras palavras, em sede de Responsabilidade Civil, a descodificação traduz-se como tendências de objetivação da responsabilidade e o surgimento dos danos coletivos, desenvolvimentos explicitados pelo Código de Defesa do Consumidor.
5. Considerações finais
O escopo deste artigo era demonstrar como três tendências gerais do Direito Civil – a constitucionalização, a personalização e a descodificação – traduzem-se no âmbito da Responsabilidade Civil. O Direito dos Danos possui suas próprias tendências, todavia, estas são resultado do efeito expansivo das tendências gerais.
Em resumo, deste modo, a Responsabilidade Civil acompanha as tendências gerais do Direito Civil, recebendo-as e transformando-as em tendências específicas, estudadas a fundo no presente texto.
A constitucionalização, na seara da responsabilidade, traduz-se em dois desenvolvimentos: a máxima satisfação possível da vítima – que esboça a primazia do interesse desta e a máxima reparação do dano – e a coletivização da Responsabilidade Civil – resultado do princípio constitucional da solidariedade social. Alguns autores citam, sem equívoco, uma função social da Responsabilidade Civil. Surge, por conseguinte, a Responsabilidade Constitucional.
Por sua vez, a personalização do Direito dos Danos gera novas espécies de danos extrapatrimoniais (não mais restritos aos danos morais) e os danos transindividuais – vale dizer, amplia-se o rol de danos reparáveis. Danos extrapatrimoniais são os que ofendem a personalidade do indivíduo, em seu aspecto físico, moral ou intelectual (estas são as facetas dos direitos da personalidade). O gênero dano extrapatrimonial dá espaço a três espécies: dano estético (ferimento à integridade física), dano moral (ferimento à moral individual) e dano intelectual (ferimento à integridade intelectual, englobando a integridade psíquica e danos a direitos autorais). Além disso, mais uma vez, os danos coletivos surgem, agora como resultado da personalização.
Por fim, a descodificação da Responsabilidade Civil, principalmente através do Código de Defesa do Consumidor, apresenta-se como a objetivação da responsabilidade, assim como no regramento dos danos coletivos (os quais, com a personalização e a constitucionalização eram apenas cogitação, elaboração doutrinária e preocupação teórica, recebendo normatização e garantia prática efetiva com a descodificação).
As crescentes alterações sociais, bastante evidentes no Direito de Família e tímidas no Direito Contratual, apresentam-se, na Responsabilidade Civil, como demanda também existente. Não pode o legislador estabelecer uma matéria de indenizações fixas, com regras imutáveis, permanentes e desatualizadas. Ao revés, a reparação civil é dinâmica, a legislação apresenta novidades, faz-se mister, pois, adaptar o Direito à nova realidade. Esta é a tarefa dos juristas. Sem pretensão de esgotamento, o objetivo aqui foi colaborar na reflexão e na sistematização do que há de mais recente no âmbito da Responsabilidade Civil, de modo a clarificar as obscuras – pois recentes – necessidades jurídicas neste setor. Espera-se que a contribuição seja efetiva.
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