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Processo civil em perspectiva: propostas de inovações versus riscos de retrocessos frente a possíveis paradoxos

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25/10/2011 às 08:57
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SERÃO OS RECURSOS AS CAUSAS DOS PIORES MALES DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL?

Os defensores da "Emenda Peluso" afirmam inexistir em outro país do mundo um sistema de quatro instâncias julgadoras. Considerando a afirmação de que nosso direito é de origem latino-germânica, buscar informações sobre o modelo alemão, onde a estrutura do Judiciário [10], a semelhança do Brasil, é definida na Constituição Federal daquele país, nos é muito útil para um contra-exemplo capaz de desconstruir a verossimilhança de alguns argumentos contra os recursos. Na Alemanha há um rol de cortes de primeira instância, e em segunda instância cortes estaduais de apelação. Acima, na hierarquia, a Corte Federal de Justiça [11], Bundesgerichtshof, ou BGH, com jurisdição em matéria civil e criminal. No site da própria Corte podem ser obtidas informações sobre a existência de outras quatro supremas cortes federais. A Corte Federal Administrativa, Bundesverwaltungsgericht, em Leipzig, a Corte Federal de Finanças, Bundesfinanzhof, em Munique, a Corte Federal do Trabalho, Bundesarbeitsgericht, em Erfurt, e a Corte Federal Social, Bundessozialgericht, em Kassel. No ápice da jurisdição está a Corte Federal Constitucional, Bundesverfassungsgericht [12], com competência para rever julgamentos versando sobre matéria afeta à interpretação da Constituição Federal da Alemanha.

A Corte Federal Alemã é composta de 122 Ministros [13], divididos em cinco senados criminais e doze senados cíveis, além de quatro senados designados para lidar com matérias especializadas. Quando há divergências de julgamentos entre os senados, e.g. em matéria civil, ministros representando cada um dos senados, visando manter a unicidade interpretativa das leis nacionais, se reúnem, no caso, no Grande Senado Civil (Grosser Senat für Zivilsacen). Em casos de violação direta de matéria constitucional cabe recurso à Corte Federal Constitucional, a Suprema Corte da Alemanha. Pelo exemplo germânico, atual, caem por terra argumentos de que "em nenhum país do mundo há tantas possibilidades de recursos a tantas instâncias julgadoras". A Suprema Corte Alemã é composta de dois senados, cada um com oito ministros [14], formando um quadro total de dezesseis ministros. Segundo informações da própria Corte [15], qualquer interessado que tenha seus direitos fundamentais tidos como violados, pode apresentar uma apelação junto ao Bundesverfassungsgericht, sendo que as condições de admissibilidade são parecidas com a do nosso recurso extraordinário, esgotamento das instâncias ordinárias. Infirmado resta, com estas informações, qualquer argumento em favor de o Supremo Tribunal Federal dever se afastar mais e mais do controle difuso de constitucionalidade, o que acontece na prática quando os tribunais locais criam óbices artificiais para o prosseguimento de agravos do art. 544.

Outro exemplo muito batido pelos "inimigos dos recursos" é o paradigma do sistema judiciário dos EUA. Considerando as diferenças entre o Common Law e o Civil Law, tomemos o regulamento da Suprema Corte dos EUA [16], em matéria específica. A regra nº. 10, quanto a admissibilidade de um apelo (writ of certiorari), define em seu caput que se trata não de matéria de lei processual, mas de discricionariedade judicial, ao critério dos Juízes admitirem ou não. Na alínea "c" é determinado como uma das causas de admissibilidade do processamento de um apelo à Corte as situações em que um tribunal local decide sobre matéria federal em divergência com o que a Suprema Corte antes havia decidido, ou decide sobre matéria federal a qual seja considerada de competência da Suprema Corte decidir. Em síntese, não é admitida a usurpação de competência. Mesmo que a Suprema Corte possa discricionariamente escolher quais casos julgar, a escolha é dos Juízes dessa Corte, e não algo pautado e definitivamente obstado pelos juízes dos tribunais inferiores.

Voltamos à questão de como, reduzindo drasticamente o seu volume de trabalho, o STF uniformizar plenamente a sua prestação jurisdicional? Não julgando nada! Todos receberiam a pretendida idêntica prestação jurisdicional, mas ao preço de desconstruir o artigo 102 da Constituição Federal. O mesmo vale para o STJ em relação ao rol dos recursos repetitivos.

Em que se argumente que o povo não quer saber de firulas e sim tão somente de uma célere prestação jurisdicional. Ponderemos os fatos sem restrições a aspectos factuais não desejáveis. Temos uma Constituição Federal escrita, onde em seu artigo 102 a guarda precípua desta Constituição foi dada ao STF, não ao Parlamento e nem a um colegiado de tribunais a quo. Seria um discurso da constituição de fato tendo poder de desconstruir a constituição escrita, esta ficando reduzido a "um livrinho de normas modificável a qualquer momento pelos fatos concretos".

O inciso LVXXIIII do artigo 5º da Constituição não pode servir de argumento para esfacelar, não infirmar e sim desconstruir, retirar a vigência do inciso XXXV do mesmo artigo 5º e do caput do artigo 102 da CRFB-88. Por óbvio que não importa o que o Parlamento tenha decidido em legislação infraconstitucional, se as normas infraconstitucionais de processo que regulamentam a repercussão geral criam um quadro de contínua inconstitucionalidade, não é a Constituição que tem de ser flexibilizada, pois a questão é que se for confirmado a impossibilidade lógica de certeza e coerência interna na legislação infraconstitucional sobre repercussão geral, a norma inconstitucional nasceu nula. E esta decisão sobre a constitucionalidade ou não da norma, se total e irremediável, ou passível de uma interpretação conforme, é exclusiva dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.


CONCLUSÃO

Tendo demonstrado a inviabilidade lógica de um modelo ideal para prestação jurisdicional uniforme aos casos de repercussão geral, bem como a impossibilidade de um sistema de julgamentos absolutamente idênticos para demandas repetitivas, sem que isso conduza à usurpação de competências privativas do Supremo Tribunal Federal, se inevitável reconhecer o quanto é difícil a busca de soluções que tragam o máximo de eficácia na problemática do acesso, pelo cidadão, à jurisdição constitucional do STF, por outro lado a Constituição não pode ser sacrificada no altar da "celeridade processual a qualquer custo". Não pretendemos uma demonstração definitiva, mas sim abrir um novo espaço de discussão séria, convidando, inclusive, os especialistas em lógica formal a, eventualmente, se interessarem por esta questão processual.

Não há justificativas minimamente razoáveis para qualquer maltrato ao artigo 102 da CRFB-88, em inaceitável situação do Supremo Tribunal Federal, ao invés de ditar a pauta de julgamentos conforme a análise discricionária de seus Ministros sobre o que é matéria de importância constitucional, venha ser pautado pelas instâncias ordinárias. Este risco emerge não apenas da prática atual, na interpretação dada pelos tribunais locais às normas infraconstitucionais de repercussão geral, como também vem, por analogia, amplificado no DNA de dispositivos do Anteprojeto de Novo Código Civil, o qual seus defensores afirmam veementemente buscar um códex totalmente conforme a Constituição Federal. Ficam demonstradas possíveis inconsistências, eventuais absurdos lógicos a serem infirmados por contra-exemplos, demonstração de erros, ou então confirmados. E por fim restará devolvida ao Supremo Tribunal Federal na guarda de sua autoridade constitucional, e ao legislador, a busca de soluções constitucionais para o problema da celeridade processual em parâmetros constitucionais.


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Notas

Tomada uma soma infinita de números naturais, onde n+1 = 2n, então S = 1 + 2 + 4 + 8 + 16 + ...

Então multiplicando esta soma por 2, 2S = 2 + 4 + 8 + 16 + ... Somando-se 1 + (-1) a 2S

2S = -1 + 1 + 2 + 4 + 8 +

Temos então que 2S – S = -1, o que conduz a um absurdo, demonstrando que aquilo que parecia natural a um senso comum conduz a um absurdo, a um paradoxo, logo ∞ não é número.

  1. http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/88428.pdf, acessado em 22 de outubro de 2011.
  2. AZZONI, Clara Moreira. Recuso Especial e Extraordinário – Aspectos Gerais e Efeitos, São Paulo. Editora Atlas. 2009, p. 21-34.
  3. SMULLYAN, Raymond. O Enigma de Sherazade. Jorge Zahar Editor. 1998. Pags. 130-137.
  4. http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/fregerussel/o_paradox.htm, acessado em 09/09/2011, traz interessante referência ao Paradoxo do Barbeiro, proposto por Russell.
  5. CATHCART, Thomas & KLEIN, Daniel. Platão e um Onitorrinco Entram num Bar... Editor Objetiva, p. 53-54.
  6. http://www.lexico.pt/procusto/, acessado em 09/09/2011
  7. ALEXY, Robert. Direito, Razão, Discurso (Estudos para Filosofia do Direito). Livraria do Advogado Editora. 2010. P. 46-60
  8. http://www.lexico.pt/procusto/, acessado em 09/09/2011
  9. Em suas aulas de Análise na Reta no IM-UFRJ o Professor Doutor Cássio Neri costumava usar da seguinte demonstração quanto ao fato de que infinito não é número.
  10. Murray and Stürner em Chase & Hershkoff (Editors). Civil Litigation in Comparative Context. Thonson West Editor, 2007. P. 108-116.
  11. http://www.bundesgerichtshof.de/EN/Home/home_node.html , acessado em 23 de outubro de 2011.
  12. http://www.bundesverfassungsgericht.de/en/organization/task.html
  13. Ver notas 8 e 9.
  14. http://www.bundesverfassungsgericht.de/en/judges.html, acessado em 23 de outubro de 2011.
  15. http://www.bundesverfassungsgericht.de/en/organization/verfassungsbeschwerde.html

16.http://www.supremecourt.gov/ acessado em 21 de outubro de 2011

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Sobre o autor
Ramiro Carlos Rocha Rebouças

Advogado, Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estácio de Sá, Mestre em Fisiologia pela FMRP-USP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REBOUÇAS, Ramiro Carlos Rocha. Processo civil em perspectiva: propostas de inovações versus riscos de retrocessos frente a possíveis paradoxos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3037, 25 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20280. Acesso em: 29 mar. 2024.

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