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O diálogo entre a liberdade religiosa e o direito à diversidade na jurisprudência da Corte Constitucional da África do Sul

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13/11/2011 às 07:56
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Conclusão

1 Nos casos CCT 38/96 (S v Lawrence), CCT 39/96 (S v Negal) e CCT 40/96 (S v Solberg), destaca-se o voto do então Presidente Arthur Chaskalson, o qual assentou que os recorrentes não lograram demonstrar que a proibição legal deque grocery stores (nesse contexto, mercearias, lojas de conveniência e congêneres) vendam vinho aos domingos(proibição estendida ao Dia do Natal e à Sexta-Feira da Paixão ou Sexta-Feira Santa) infringiria a liberdade religiosa, de crença e opinião nem a liberdade de livre iniciativa e, ad argumentandum tantum, caso restasse, de fato, comprovada, no álbum processual, a existência da referida interdição estatal à liberdade do exercício de atividade econômica, não estaria evidenciado, naqueles autos, que tal intervenção do Estado não fora justificável nem razoável (acórdão dos casos CCT 38/96, 39/96 e 40/96, §§ 105 a 108 c/c §§ 1º, 6º, 7º, 97 e 98).

2 No referido decisum, Chaskalson frisou que o domingo é o dia da semana mais apropriado para se reduzir, por meio de tais limitações legais, o consumo de bebidas alcoólicas, por constituir o dia da semana em que a maioria dos sul-africanos não desempenha múnus laboral,e assim o fazem por razões de conveniência secular (não por dever religioso), seguindo prática já cristalizada no seio da sociedade como de cunho temporal, em face de padrão adotado pelo ordenamento jurídico ao longo dos anos de reservar ao domingo o principal período semanal de descanso dos que atuam no mercado de trabalho, a transcender motivos de fundo religioso e a abarcar indivíduos de credos não cristãos e ideologias não religiosas (acórdão dos casos CCT 38/96, 39/96 e 40/96, § 106 c/c §§ 95 a 96).

3 Em tal aresto, Chaskalson pontuou que a seção 90 da Lei do Álcool não sujeita (de modo direto ou indireto) pessoas físicas e jurídicas em geral à observância compulsória do Sabbath cristão, e não limita os direitos à escolha do credo religioso e à manifestação pública de crenças religiosas nem bane o funcionamento, aos domingos, de estabelecimentos que comercializam bebidas alcoólicas, já que, nesse caso, a interdição dominical à venda de vinho não impede a comercialização, aos domingos, de outros produtos, pelas lojas sujeitas a tais restrições, e, de outra banda, a proibição parcial à venda dominical de bebidas alcoólicas não atinge todos os estabelecimentos empresariais (acórdão dos casos CCT 38/96, 39/96 e 40/96, §§ 90, 97, 99 e 105).

4 No caso CCT 4/00(Christian Education South Africa v Minister of Education),a Corte de Johannesburgo chancelou a proibição legal de aplicação de punições corporais por escolas sul-africanas, ao reputá-la razoável e justificável em uma sociedade aberta e democrática (norteada pelos princípios da dignidade humana, liberdade e igualdade), e conferir primazia à salvaguarda da dignidade e da integridade físico-emocional das crianças, dos adolescentes e dos jovens sul-africanos (em detrimento da filosofia educacional esposada por determinados educandários cristãos, favoráveis ao castigo corporal como medida pedagógica), de maneira que todos eles (cristãos ou não) recebam igual cuidado e respeito e, ao mesmo tempo, haja a prevenção à violência física e psicológica no ambiente escolar e no corpo social, e os alunos sejam educados com a perspectiva de que coexistem em uma sociedade plural, em meio a um mosaico de valores, ideologias e crenças, não necessariamente os que são comungados pela comunidade em que cresceram (acórdão do caso CCT 4/00, §§ 32, 38, 42 a 43 e 50 a 52).

5 No caso CCT 36/00 (Prince v Law Society of the Cape of Good Hope),o entendimento minoritário da Corte Constitucional da África do Sul, baseado no voto do Justice Ngcobo, posicionou-se pela declaração de inconstitucionalidade da seção 4(b) c/c parágrafo primeiro da Parte III do Anexo 2 da Lei de Drogas e Tráficos de Drogas de 1992 (Drugs and Drug Trafficking Act 140 of 1992) e da seção 22A(10)(a) c/c Anexo 8 da Lei de Controle de Substâncias Medicinais e Correlatas de 1965 (Medicines and Related Substances Control Act 101 of 1965), no que tange à vedação do uso e da posse de Cannabis, no contexto da prática (de boa-fé) da religião rastafári, por não consubstanciarem medidas legislativas de intervenção mínima na liberdade religiosa dos adeptos da religião rastafári, dado o seu conteúdo genérico em demasia, a criminalizar todas as hipóteses de consumo religioso da cânabis (feito somente por sacerdotes e determinados fiéis do sexo masculino, excluídas as mulheres e os menores de idade), inclusive as circunstâncias em que o uso restrito, no âmbito do culto rastafári no lar ou no templo, poderia, a exemplo da sua utilização para fins medicinais, de análise acadêmica e de pesquisa científica,ser objeto de efetivo controle pela Administração Pública, sem que representasse risco inaceitável à saúde coletiva nem individual, ou risco sanitário nenhum, desde que os requisitos para a utilização religiosa da maconha (incluindo-se o modo de obtenção, a finalidade, a quantidade e o local de consumo) sejam esculpidos em lei formal e haja a apropriada regulamentação e infraestrutura administrativa de autorização e fiscalização estatais (acórdão definitivo do caso CCT 36/00, §§ 18 a 21, 26, 51 a 53, 55, 58 a 64, 66 a 70, 73 a 74, 77 a 79, 81 a 83, 86 a 87, 90, a, e 91, de 25 de janeiro de 2002).

6 Porém, na circunstância em debate, o posicionamento majoritário da Corte de Johannesburgo foi capitaneado pela dissidência aberta pelo voto conjunto do Chief Justice Arthur Chaskalson e dos Justices Lourens Ackermann e Johann Kriegler, aderida pelos Justices Richard Goldstone e Zak Yacoob, apertada maioria dissidente (5 contra 4) que considerou constitucional a incidência da restrição legal e genérica ao uso e à posse da cânabis sobre adeptos da religião rastafári, ante a impossibilidade fática (inexequibilidade) de se formular meio-termo que, de um lado, contemplasse a eficaz fiscalização (pelo Poder Público sul-africano e pelas autoridades religiosas rastafáris) do consumo controlado de maconha, para fins estritamente religiosos (no lar e em cerimônias religiosas coletivas, em uma comunidade religiosa tradicionalmente difusa e descentralizada, com organização institucional incipiente), e, de outra banda, não consubstanciasse exceção que, pela via oblíqua (reflexamente), (a) incentivasse o narcotráfico, (b) enfraquecesse a eficácia social da legislação antitóxico, (c) potencializasse riscos à saúde de seguidores da religião rastafári, (d) estabelecesse injustificável tratamento diferenciado entre os usuários da Cannabis adeptos da religião rastafári e os consumidores de maconha não adeptos do referido credo, (e) e, ao determinar fossem controlados o uso e a posse de cânabis por praticantes da religião rastafári, impusesse restrição excessiva à liberdade religiosa, por meio da supervisão estatal das práticas espirituais rastafáris relacionadas à Cannabis (acórdão definitivo do caso CCT 36/00, §§ 101, 111, 118, 127 e 130 a 142, de 25 de janeiro de 2002).

7 No caso CCT 40/03 (Juleiga Daniels v Robin Grieve Campbell N.O. and Others),o Pretório Excelso sul-africano perfilhou interpretação extensiva da legislação sucessória, de modo que os conceitos de cônjuge (spouse) adotado pela Lei da Sucessão Legítima de 1987 (Intestate Succession Act 81 of 1987) e de sobrevivente (survivor) abraçado pela Lei de Sustento dos Cônjuges Sobreviventes (Maintenance of Surviving Spouses Act 27 of 1990) abrangessem o consorte sobrevivente de matrimônio islâmico monogâmico, visando a proporcionar à viúva muçulmana hipossuficiente o amparo mínimo, em face da morte do consorte monogâmico, para evitar que corra o risco de ser futuramente despejada do imóvel em que morou durante parcela expressiva do casamento, e para assegurar a ela a renda oriunda de quinhão que, pelo menos, tenha valor correspondente ao quinhão de filho, considerando os valores constitucionais da igualdade, tolerância e do respeito à diversidade, da promoção da igualdade substancial entre homens e mulheres e do combate à hegemonia cultural e racial, além do pano de fundo cultural da tradição patriarcal sul-africana (vigorosa na comunidade muçulmana) de que o marido, na qualidade de "chefe de família", seja o "provedor do lar", em nome do qual se registra o patrimônio do casal, sem que a esposa, ao longo do matrimônio, adquira a autonomia financeira para se sustentar às próprias expensas (acórdão do caso CCT 40/03, §§ 5º, 19, 21 a 23, 25, 27 e 40, nº 1, a e b).

8 Nos casos CCT 60/04 e CCT 10/05 (Minister of Home Affairs and Another v Fourie and Another) ? julgados em conjunto ?,o Tribunal Constitucional da África do Sul teve por incompatível com a seção 9(3) Constituição sul-africana de 1996 (em que se proscrevem diversas espécies de discriminações injustas, dentre elas a que se baseia na orientação sexual) o conceito de matrimônio extraído do common law clássico,sedimentado na jurisprudência tradicional da África do Sul, pois que tal construção pretoriana obsta casais homossexuais de desfrutarem do mesmo regime jurídico, direitos e deveres conferidos aos casais heterossexuais (acórdão dos casos CCT 60/04 e CCT 10/05,§ 162, nº 2, alínea b, c/c §§ 3º, 4º, 118, 120 e 122).

9 Ao mesmo tempo, nos casos CCT 60/04 e CCT 10/05, declarou inconstitucional a acepção restritiva de marido (husband) e cônjuge (spouse) acolhida pela seção 30(1) da Lei Matrimonial de 1961 (Marriage Act 25 of 1961), porquanto o indicado diploma legislativo incumbira à autoridade matrimonial celebrar o casamento valendo-se da fórmula clássica dessa cerimônia, em que se indaga ao nubente (sexo masculino) se aceita a nubente (sexo feminino) como sua esposa e se esta (sexo feminino) aceita aquele (sexo masculino) como seu marido, sem que fosse contemplada em tal formalidade a hipótese de se perguntar de um(a) nubente se este(a) aceitaria casar com outro(a) nubente do mesmo sexo e, portanto, sem se prever a possibilidade de que a cerimônia matrimonial redundasse no advento de um casamento monogâmico constituído por dois maridos ou por duas esposas (acórdão dos casos CCT 60/04 e CCT 10/05,§ 162, nº 1, alínea c, e nº 2, alíneas b e c, c/c §§ 3º, 4º, 117 a 118 e 120).

10 Dentre os fundamentos invocados na circunstância vertente pelo Tribunal Constitucional da África do Sul, além dos supracitados, destacam-se estes:

(a) A previsão legal do casamento homoafetivo traria impacto orçamentário mínimo, preservaria os mecanismos institucionais já consolidados, engrandeceria a proteção jurídica à família, não imporia às autoridades e instituições eclesiásticas a adoção, no âmbito religioso, do casamento homoafetivo, não obstaria casais heterossexuais de se casarem conforme suas convicções religiosas e consoante o procedimento jurídico que reputarem o mais adequado, e permitiria às autoridades matrimoniais se absterem de celebrar a cerimônia de consórcio homoafetivo, em caso de escusa de consciência (acórdão dos casos CCT 60/04 e CCT 10/05,§ 162, nº 2, alíneas d e e, c/c §§ 11, 122, 156 e 159).

(b) A crescente pluralidade de formações familiares na coletividade sul-africana hodierna, o imperativo constitucional de se reconhecer a histórica, injusta e ainda ponderosa discriminação contra homossexuais, a premência de se positivarem abrangentes marcos jurídicos reguladores dos direitos familiares de homossexuais e a evolução legislativo-jurisprudencial sul-africana em torno da progressiva ampliação do reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas, a ecoar a tendência legislativa de crescente combate às discriminações em geral e a servir de reflexo jurídico da conjuntura planetária contemporânea, singrada pela paulatina aceitação da existência fática de relacionamentos afetivo-sexuais duradouros entre pessoas naturais do mesmo sexo e da integridade de tais relações interpessoais, na qualidade de uniões amorosas credoras da mesma deferência que se credita aos casamentos e às uniões estáveis heteroafetivas (acórdão dos casos CCT 60/04 e CCT 10/05, §§ 57, 59, 76, 78 a 82, 108, 113, 115, 116 e 156).

(c) A ruptura, pela Constituição da República da África do Sul de 1996, com o passado sul-africano de intolerância, de exclusão, de discriminação, de autoritarismo e de repressão (acórdão dos casos CCT 60/04 e CCT 10/05, § 59).

(d) A impossibilidade de crenças religiosas presidirem a interpretação constitucional do Poder Judiciário, sob pena de afronta à diversidade cultural e de ingerência na dicção de normas religiosas e na análise de controvérsias teológicas, assim como de catálise de injustas discriminações da maioria contra minoria(s) (acórdão dos casos CCT 60/04 e CCT 10/05, §§ 88 a 98 e 113).

(e) A necessidade, promanada do espírito da Constituição sul-africana de 1996, quer de unir e fortalecer a África do Sul (por meio do apreço pela diversidade e pelo pluralismo nacionais, assim como pela acomodação e administração, de maneira justa e razoável, de intensas e profundas diferenças de visões de mundo, de estilos de vida e de concepções sobre a natureza humana a grassarem entre diversos componentes do corpo social), quer de promover a igualdade, a liberdade e a dignidade de todas as pessoas humanas, aperfeiçoar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, impulsionar o desenvolvimento de uma sociedade democrática, aberta, universalista, solidária e igualitária, que reconhece a diversidade humana (genética, social, linguística, cultural, religiosa e sexual), acolhe os seres humanos tais como são e aceita todas as diferenças entre os componentes da humanidade, partindo-se do pressuposto de que todas as pessoas humanas merecem igual respeito, consideração, tratamento digno e proteção jurídica, sendo também passíveis de iguais deveres e responsabilidades, vedadas as práticas de homogeneização ou inferiorização cultural, de preponderância de um seguimento da sociedade sobre outras parcelas do corpo social, bem assim de exclusão, marginalização e estigmatização (acórdão dos casos CCT 60/04 e CCT 10/05, §§ 48, 60, 61, 75, 95 e 149).

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(f) A indispensabilidade de salvaguardar os casais homossexuais da excessiva interveniência do Estado em sua vida privada e a imprescindibilidade de lhes contemplar o anseio de que possam retirar a vida comum da clandestinidade, assegurando-lhes que sejam tratados como iguais (em relação às pessoas heterossexuais e uniões heteroafetivas) e acolhidos com igual dignidade pela ordem legal, conferindo-lhes tratamento isonômico no tocante aos casais heterossexuais, sob os ângulos dos direitos e também dos deveres, a fim de não serem estatuídas novas desigualdades, agora em sentido contrário, fonte de inevitável ressentimento e tensão sociais (acórdão dos casos CCT 60/04 e CCT 10/05, §§ 78, 137 e 149).

(g) O amplo, intenso e real impacto negativo (prático, moral e psicológico) sobre os casais do mesmo gênero, ante a ausência da chancela, pela ordem jurídica sul-africana, do casamento homoafetivo (acórdão dos casos CCT 60/04 e CCT 10/05, §§ 62, 63, 74, 78, 81, 122, 151 e 152).

(h) A omissão legislativa em tela reforça, de forma dissimulada, crenças sociais discriminatórias de que os casais homossexuais possuem ou merecem estar, sob as ópticas biológica e moral, em situação de inferioridade, comparados aos seus homólogos heterossexuais, e, por outro lado, priva-os seja de liberdades intrínsecas aos direitos de autodeterminação, de autodefinição e de escolha, seja da proteção isonômica ao seu relacionamento afetivo-sexual perene e dos benefícios inerentes à disciplina jurídica do matrimônio (acórdão dos casos CCT 60/04 e CCT 10/05, §§ 63 a 73, 78 e 151).

11 No caso CCT 51/06 (MEC for Education: Kwazulu-Natal and Others v Pillay), a Corte Constitucional sul-africana enxergou injusta discriminação na recusa do corpo diretor de escola feminina de nível médio de não excetuar à estudante de ascendência tâmil a vedação disciplinar ao uso de ornamentos corporais, uma vez que a aluna empregava piercing nasal, a título de decoração corporal que, para ela, possuía alta significação cultural e religiosa, e, portanto, desvencilhar-se do adorno, mesmo que durante tão só o horário letivo de cada dia útil, sujeitava a educanda à grave ofensa à sua identidade cultural e religiosa, na qualidade de pessoa integrante da referida comunidade hindu-sul-africana (acórdão do caso CCT 51/06,§§ 2º, 5º, 11, 23, 50, 58, 60, 85 a 86, 89 a 90, 106 e 119, nº 3, alínea a).

12 Depreende-se do aresto em liça o posicionamento da Corte Constitucional da África do Sul em favor de que o princípio da acomodação razoável seja homenageado por atos normativos das searas pública e privada (em especial, os que guardem nexo com direitos sociais, econômicos e culturais e os que, no afã de promoverem uma finalidade legítima, possam, como efeito colateral indesejado, mas real, interferir de forma excessiva no espectro das liberdades públicas e, ao fazê-lo, reforçarem fatores de exclusão social), encerrando em seu conteúdo preceitos que potencializem o acolhimento público e privado da diversidade humana, ao agasalharem mecanismos jurídicos justamente de acomodação razoável, no âmbito de diversos setores da vida em sociedade, de grupos sociais minoritários ou em posição de hipossuficiência, ou seja, positivando-se dispositivos normativos (desdobrados em políticas públicas e/ou institucionais e medidas administrativas voltadas à consecução de ações afirmativas) que possibilitem (estribados nas particularidades de cada caso concreto) sejam feitos ajustes em regras, procedimentos, rotinas administrativas e práticas recorrentes, a fim de que tais adaptações a viabilizem a inclusão no seio da sociedade de (e o exercício isonômico dos direitos fundamentais por) segmentos historicamente marginalizados (a exemplo de portadores de deficiência física e vítimas de discriminação de gênero ou de preconceito étnico, racial, religioso ou cultural), nem que isso importe maiores dispêndios de recursos e o enxerto, em normas jurídicas, de cláusulas de exceção (bem como a alvorada de expressa previsão de devido procedimento jurídico para se pleitear o deferimento de uma exceção à determinada restrição de liberdade), por intermédio das quais se possam atenuar situações de desigualdade e vulnerabilidade sociais (acórdão do caso CCT 51/06, §§ 38, 72 a 80 e 100, 108, 110 e 111).

13 No caso CCT 83/08 (Hassam v Jacobs N.O. and Others), a Corte de Johanesburgo alicerçou-se na proibição a discriminações religiosas contida na seção 9(3) da Constituição sul-africana de 1996, ao plantear interpretação extensiva da seção 1º da Lei da Sucessão Legítima de 1987 (Intestate Succession Act 81 of 1987), com o fito de inserir no raio de alcance do referido diploma legislativo o resguardo a mulheres que enviuvaram no bojo de casamento muçulmano poligínico, de maneira que, na sucessão legítima decorrente da morte do esposo poligínico, (a) o quinhão do filho do de cujus seja calculado dividindo-se o valor monetário do espólio pelo número de filhos sobreviventes ou que possuam descendentes vivos, somado ao número de esposas do morto, (b) o quantum máximo do quinhão de cada esposa sobrevivente ao falecido marido poligínico corresponda ao valor do quinhão do filho ou à importância fixada periodicamente pelo Ministro da Justiça e do Desenvolvimento Social da África do Sul, mediante ato publicado na imprensa oficial, e (c), se o quinhão for insuficiente para contemplar o quantum estipulado pelo indigitado Ministro, o espólio seja igualitariamente dividido entre as esposas sobreviventes (acórdão do caso CCT 83/08, § 57, nº 3.1, nº 3.2 e nº 3.3, alíneas a, b e c, c/c § 49).

14 No acórdão em testilha, o Pretório Excelso da África do Sul atinou com a situação de vulnerabilidade socioeconômica da viúva cujo casamento muçulmano transcorrera sob a égide da poliginia, uma situação de desigualdade, em comparação com o status jurídico das demais viúvas sul-africanas (acórdão do caso CCT 83/08, §§ 17 e 49). Nesse lanço, a Corte Constitucional da África do Sul frisou que o histórico preconceito social contra a comunidade islâmica, sua cultura e religião, dificultava que fosse propiciado a esse grupo de viúvas muçulmanas a suficiente e igualitária proteção da legislação infraconstitucional (acórdão do caso CCT 83/08, §§ 25, 31, 33 e 36).

15 No mencionado precedente, notou a Corte Constitucional que se conferia às viúvas em sede de matrimônio islâmico poligínico disciplina legal mais restritiva do que o estatuto jurídico das demais viúvas (inclusive das viúvas em sede de casamento muçulmano monogâmico), a reforçar o estado de desigualdade das islâmicas casadas sob o regime da poliginia, as quais sofriam discriminação não apenas em virtude do histórico preconceito social contra o matrimônio islâmico poligínico (discriminação quanto ao status marital) e o credo muçulmano (discriminação de natureza religiosa e cultural) como também em razão da desigualdade de gênero a elas sujeita (acórdão do caso CCT 83/08, §§ 31, 33, 34, 36, 37, 39, 42 e 43).

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Sobre o autor
Hidemberg Alves da Frota

Especialista em Psicanálise e Análise do Contemporâneo (PUCRS).Especialista em Relações Internacionais: Geopolítica e Defesa (UFRGS). Especialista em Psicologia Clínica Existencialista Sartriana (Instituto NUCAFE/UNIFATECPR). Especialista em Direito Público: Constitucional, Administrativo e Tributário (PUCRS). Especialista em Ciências Humanas: Sociologia, História e Filosofia (PUCRS). Especialista em Direitos Humanos (Curso CEI/Faculdade CERS). Especialista em Direito Internacional e Direitos Humanos (PUC Minas). Especialista em Direito Público (Escola Paulista de Direito - EDP). Especialista em Direito Penal e Criminologia (PUCRS). Especialista em Direitos Humanos e Questão Social (PUCPR). Especialista em Psicologia Positiva: Ciência do Bem-Estar e Autorrealização (PUCRS). Especialista em Direito e Processo do Trabalho (PUCRS). Especialista em Direito Tributário (PUC Minas). Agente Técnico-Jurídico (carreira jurídica de nível superior do Ministério Público do Estado do Amazonas - MP/AM). Autor da obra “O Princípio Tridimensional da Proporcionalidade no Direito Administrativo” (Rio de Janeiro: GZ, 2009). Participou das obras colegiadas “Derecho Municipal Comparado” (Caracas: Liber, 2009), “Doutrinas Essenciais: Direito Penal” (São Paulo: RT, 2010), “Direito Administrativo: Transformações e Tendências” (São Paulo: Almedina, 2014) e “Dicionário de Saúde e Segurança do Trabalhador” (Novo Hamburgo: Proteção, 2018).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FROTA, Hidemberg Alves. O diálogo entre a liberdade religiosa e o direito à diversidade na jurisprudência da Corte Constitucional da África do Sul. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3056, 13 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20399. Acesso em: 18 abr. 2024.

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