8- INDISTINÇÃO ENTRE TRATAMENTOS OUTORGADOS A RÉUS DE COMPORTAMENTOS DIFERENCIADOS
É importante que se saiba diferenciar o posicionamento que o réu pode adotar, e, consequentemente, o tratamento devido a ele de acordo com sua conduta processual, ou seja: no processo penal, a disposição do réu em colaborar mais ou menos com o desenvolvimento da instrução criminal para o esclarecimento da verdade dos fatos e circunstâncias; sua conduta durante e após a prática delituosa - neste último momento estão contidos os momentos do inquérito policial e do processo. Ou seja, o bom ou mau comportamento do suspeito, depois indiciado, depois acusado, depois réu, depois pronunciado deve influenciar a decisão do juiz sobre a necessidade ou conveniência da aplicação de alguma medida processual constritiva, ademais a prisão.
Sendo assim, porque a lei processual penal e, consequentemente o juiz, não levam em consideração tal dualidade - o bom e o mau - de comportamentos, geradores da necessidade de constrição, quando do pronunciamento do réu? O réu de bom comportamento que, durante todo o processo, compareceu a todos os atos processuais para os quais fora intimado, colaborou com todas as investigações policiais e judiciais, em momento algum se comportou com o menor intuito de fraudar o devido processo legal, merece gozar da confiança do magistrado; este que motivo nenhum tem para desconfiar da boa vontade do réu para o esclarecimento dos fatos.
Não é de bom senso que se dê a dois comportamentos processuais diferentes e até opostos, o mesmo tratamento, constritivo e desconfiado, que é dado quando se obriga que o réu de bom comportamento processual recolha-se à prisão, quando não à mesma cela em que se encontram outros presos que ali estão em virtude de não colaborarem com o desenvolvimento da persecução punitiva estatal, para que possa recorrer da decisão de pronúncia. Imagine a situação em que dois réus de um mesmo processo, porém um com e outro sem antecedentes criminais, um réu primário e o outro não, um colaborando em tudo para a realização da persecução penal e o outro não comparecendo a certos atos processuais ou recusando-se a ajudar no esclarecimento da verdade, respectivamente. Em resumo, o réu de bons antecedentes e primariedade não colabora para o desenvolvimento do processo; o de maus antecedentes, ao contrário, sempre colaborando com o processo. Conforme o CPPB, no antigo § 2º do art. 408, ao primeiro, o juiz não decretaria a prisão ao pronunciá-lo; com relação ao segundo, ser-lhe-á decretada a prisão processual, tendo que se recolher à jaula, enquanto recorre da decisão de pronúncia. Lembre-se que a reforma provocada na lei adjetiva penal pela lei 11.689/08 não modificou a dinâmica da prisão decorrente da pronúncia. Esta lei apenas deslocou a regulamentação desta prisão do antigo art. 408 para o atual art. 413 do CPPB. De modo que vigem os mesmos requisitos para a decretação da prisão em virtude da pronúncia, a saber: prolação de decisão de pronúncia; e maus antecedentes criminais do pronunciado.
Dispensar o mesmo tratamento processual a réus de comportamentos opostos seria como aplicar a mesma pena base a condenados de graus de culpabilidade diferentes [36]. De modo que ao réu que a todo o tempo se dispôs materialmente - comparecimento ao interrogatório, às oitivas das testemunhas, etc. - colaborando com a administração da Justiça, restaria a angústia de ver todo o seu esforço, de manter uma conduta processual de dignidade, honestidade e retidão, escarneado e reduzido, ao mesmo tempo em que equiparado, ao comportamento torto e fraudulento daquele que, na tentativa de furtar-se à persecução punitiva estatal ou de não arcar com a responsabilidade de seus atos, prefere não colaborar com a instrução, tentando cada vez mais esconder as provas que o desabonam, fugir do poder penalizador do estado-juiz e do rigor da lei penal.
A prisão decorrente da pronúncia, no caso dos crimes inafiançáveis, tal qual estava positivada no art. 408 do CPPB e continua na redação do art. 585, na nova redação do art. 413 e parágrafos e em outros dispositivos da lei adjetiva, fecha os olhos para o tipo de réu contra o qual ela é decretada. E é devido, entre outros, ao fato de não conseguir distinguir um tipo de réu de outro que tal prisão processual presta sua parcela de contribuição para o anacronismo em que se encontra a lei processual penal brasileira.
Uma norma que favorece o bandido, uma vez que o equipara [37] ao cidadão de bem que contribui com o desenvolvimento do seu país em todos os sentidos, e que, não diferentemente, contribui também para o desenrolar do processo em que acusado é, certamente não fora recepcionada pela nova ordem constitucional de 1988; e sua presença no ordenamento jurídico repugna e, se não expurgada logo, acaba contaminando, no sentido de a confundirem com outras normas consentâneas com a nova ordem constitucional, a comunidade jurídica que pesquisa, cria e influencia o Direito através de suas novas ideias. Em contraprestação, tal cidadão de bem só implora que sua liberdade não lhe seja tolhida, para que possa plenamente se defender da acusação contra si imputada. Tal pleito é totalmente cabível e justo, haja vista, os princípios da presunção de inocência e da não culpabilidade em seu favor positivados constitucionalmente.
9- INUTILIDADE E PREJUDICIALIDADE DA PRISÃO
Como bem acentuou Cesare Beccaria [38]: "Quando o delito é constatado e as provas são certas, é justo que se conceda ao acusado o tempo e os meios para se justificar, se isso lhe for possível..."
Transportando-se o pensamento do autor acima para os dias de hoje e aplicando-o ao processo penal brasileiro, o que me parece é que, em face da constatação da materialidade e dos indícios de autoria relatadas na decisão de pronúncia, cabe ao juiz facilitar ao réu a realização de sua defesa, concedendo-lhe tempo e meios eficazes para promovê-la. De modo que, a decretação da prisão provisória do réu só implicaria dificuldade quanto à proximidade que este necessitaria de ter em relação ao trabalho desenvolvido por seu advogado.
De certo que alguns poderiam afirmar que o prejuízo para o réu inexiste em função de seu advogado estar livre e, plenamente, em condições de promover-lhe a defesa. Porém, aqueles mesmos hão de convir que nem sempre o advogado desempenha com toda a presteza, que o réu entende merecida para o seu caso, o mister de defensor. De modo que a prisão do réu acabaria privando-o dos meios necessários para exercer a devida fiscalização sobre a atividade patrocinadora de seu causídico.
Tal prejuízo se aquilataria ainda mais, quando da desídia entre réu preso e advogado; quanto à vontade de um, oposta à do outro, em interpor recurso da decisão de pronúncia acompanhada, ato contínuo, da decretação de prisão provisória do réu.
A prisão em virtude de pronúncia, precipuamente neste caso, tolhe do réu o tempo e os meios necessários à hábil promoção de atos de defesa pelos quais se procura derrubar a decisão declaratória e evitar os efeitos gerados por esta no mundo jurídico. Pois, ao mesmo tempo em que tolhe a liberdade de locomoção do réu, tolhe, também, a possibilidade da realização de ágil e livre fiscalização da atividade patrocinadora sobre seu advogado, tolhe a plena concentração e calma do réu na ágil e hábil formulação da melhor estratégia de defesa e probatória, junto a seu defensor, para o enfrentamento da nova fase do rito escalonado do júri que se inicia, no caso de ineficácia do recurso contra a decisão de pronúncia.
Também, devido ao alarde que sua prisão causará na sociedade através da veiculação polemizada que a imprensa não hesita em realizar dos crimes de grande comoção, a prisão pronuncial se mostra inútil e prejudicial à imagem e, precipuamente, ao exercício da ampla defesa do pronunciado. O que, sem dúvida, perturbará a cabeça do réu e o submeterá a maiores dificuldades [39], para não dizer impossibilidade, em encontrar os meios mais eficazes de justificar-se da pronúncia contra si prolatada.
10- INCOMPETÊNCIA RELACIONADA À DECRETAÇÃO DA PRISÃO PRONUNCIAL
Partindo do pressuposto já arrimado na lei, doutrina e jurisprudência de que o juiz ao pronunciar o réu não prolata um veredicto, mas apenas sua opinião acerca de determinado fato e circunstâncias; se não há motivo algum ensejador da prisão preventiva, então, o que justifica a decretação da prisão do pronunciado, única e exclusivamente, por força de uma mera decisão interlocutória não terminativa, na qual o magistrado expressa, apenas, mero juízo de prelibação acerca do objeto da causa, antes do início da nova fase do rito escalonado do júri [40]?
Tal ato de pronunciar não contém a decisão de um juiz natural [41] para recomendar a prisão ao réu por causa de características pessoais (maus antecedentes criminais [42]) deste que somente deverão ser analisadas quando da aplicação da pena pelo presidente do júri e após a prolação do veredicto pelos juízes naturais, detentores da competência constitucional para a decisão sobre a culpa ou inocência, que são os jurados constituintes do conselho de sentença.
Em outras palavras, a decisão da pronúncia e o juiz singular que a prolata, não detêm a competência constitucional necessária para decidir sobre o veredicto ou a aplicação da pena nos processos de competência do tribunal do júri [43], ou seja, dos crimes dolosos contra a vida. Ou seja, o juiz singular não pode fazer as vezes do conselho de sentença, usurpando a competência outorgada a este pelo inciso XXXVIII e alíneas do art. 5º da Constituição Federal [44].
É certo que na fase acusatória do rito escalonado do júri vige o princípio do "in dúbio pro societate", porém tal princípio direciona-se, apenas, para a questão de se pronunciar ou não. De forma que na dúvida, a regra é pronunciar. Toda via, o mesmo não se aplica para a questão da prisão decorrente da pronúncia, posto que, no atual Estado Democrático de Direito em que se encontra o ordenamento jurídico penal brasileiro, a liberdade é a regra, enquanto a prisão é exceção. Ou seja, na dúvida, não se deve decretar prisão. É o que diz o brocardo jurídico: "é melhor um culpado livre que um inocente preso". Desta feita, o réu, no momento da pronúncia, é, como qualquer outra pessoa, plenamente, inocente [45] da imputação contra-si levantada na denúncia e corroborada na decisão pronunciante. Então, qual a justificativa para encarcerar um réu de bom comportamento processual que possui maus antecedentes e que, caso condenado pelo júri, terá sua pena devidamente dosada de acordo com a valoração que a gravidade do ato criminoso e seus antecedentes merecerem.
Seria o caso de encarar-se a prisão decorrente da pronúncia como uma antecipação da pena, antes do exaurimento da instância ordinária, o que violaria o princípio constitucional do devido processo legal.
Além do mais, o juiz da pronúncia, ao decretar prisão cautelar baseado em fatores que competem ser apreciados, a título de juízo, apenas pelo tribunal do júri, usurpa a competência constitucional deste, além de arrepiar o princípio constitucional do juiz natural.
Do exposto, depreende-se, a título de hipótese, pela inutilidade, incompetência e inconstitucionalidade da prisão decorrente da decisão de pronúncia. Isto porque, ao menos em tese, nenhuma serviência tem esta segregação cautelar do réu para a continuidade do desenvolvimento do processo em sua nova fase, desta vez, perante o tribunal do júri. Também, por causa de não ser tal decisão, e juiz prolator desta, detentores da competência constitucional para pronunciar veredicto ou prisão fulcrado em características ou dados que só interessam e competem julgamento ao tribunal do júri. Finalmente, tal prisão processual, viola, descaradamente, os princípios constitucionais da reserva de plenário, da presunção da inocência, do juiz natural, do devido processo legal e da ampla defesa, entre outros, conforme demonstrado está ao longo deste trabalho monográfico.
Mas, o problema da prisão decorrente da pronúncia não é um mero problema legal, é, sobretudo, um problema de aplicação do direito na medida em que se demonstrar o juiz absolutamente resignado à lei, mesmo quando esta, flagrantemente, prejudica o réu, quando deveria o magistrado agir de maneira contrária, aplicando a lei segundo interpretação ao réu mais favorável e conforme a constituição na medida em que isto for possível, conforme as palavras sapientíssimas da insigne doutrinadora e magistrada, desembargadora do Tribunal de Justiça do RS, Drª Maria Bernice Dias, em artigo seu publicado na 228ª edição da revista jurídica "Consulex" do dia 15 de junho de 2006, pgs. 44 a 46:"Os juízes, não são meros aplicadores da lei de maneira automática e impensada. Têm sempre de atentar para o efeito concreto que o julgado vai produzir."
Por isso, antes decretar a prisão do pronunciado, deve o juiz checar a real necessidade [46] processual para tanto. Em havendo tal necessidade processual, que seja decretada a prisão preventiva [47], agora, em havendo a necessidade de prisão em virtude de fatores ou características pessoais do réu, tal prisão só deverá ser recomendada a título de pena e depois de exaurida toda a instância do tribunal do júri, quando será o condenado passível de penalização, conforme redação do art.59, CPB. Pena esta aplicada pelo juiz presidente do júri, uma vez que detentor da competência constitucional para tanto, ao passo que o juiz pronunciante e sua decisão são incompetentes para aplicar tal medida penal constritiva.
11- CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todo o esforço, exposições de ideias, informações e argumentos despendidos ao longo deste trabalho monográfico é no sentido de, finalmente, chegar aqui.
Vimos que, no âmbito legal, ou seja, no ordenamento jurídico brasileiro, a prisão cautelar em virtude de pronúncia encontra-se chancelada pelas redações de vários dispositivos do Código de Processo Penal Brasileiro, tais como: art. 282; § 3º do art. 413; art. 585. Tais dispositivos encontram-se em plena vigência normativa, mesmo depois da entrada em vigor das leis 11.719/08 e 11.689/08, as quais promoveram profundas mudanças no processo penal comum brasileiro.
O que se conclui é que o legislador contemporâneo não quis erradicar da lei adjetiva penal brasileira facetas e resquícios legislativos de um Brasil de outrora. Quando este era governado por um poder autoritário, antidemocrático, onde imperava a vontade do soberano e não vontade de um povo soberano.
Também vimos que o arcaísmo processual penal em que hodiernamente se encontra o ordenamento jurídico brasileiro não se restringe apenas às instituições legislativas. Estende-se pelas instituições judiciais, haja vista, o pronunciamento de um ministro (juiz) da mais colenda e suprema corte judicial deste país. Trata-se de voto do Excelentíssimo senhor doutor ministro Celso de Mello, pronunciado no HC 97.035-4 [48], conforme se verifica através dos fraguimentos a seguir:
MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 97.035-4 PIAUÍ
RELATOR : MIN. CELSO DE MELLO
"...A PRISÃO DECORRENTE DE DECISÃO DE PRONÚNCIA, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe - além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência material do crime e presença de indícios suficientes de autoria) - que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu..."
"...A PRISÃO DECORRENTE DE DECISÃO DE PRONÚNCIA - que não deve ser confundida com a prisão penal - não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal..."
"...- A prisão cautelar – qualquer que seja a modalidade que ostente no ordenamento positivo brasileiro (prisão em flagrante, prisão temporária, prisão preventiva, PRISÃO DECORRENTE DE DECISÃO DE PRONÚNCIA ou prisão motivada por condenação penal recorrível) –somente se legitima, se se comprovar, com apoio em base empírica idônea, a real necessidade da adoção, pelo Estado, dessa extraordinária medida de constrição do ‘status libertatis’ do indiciado ou do réu. Precedentes.(HC 95.464/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO)"
Brasília, 25 de março de 2009.
(185º aniversário da primeira Constituição Política do Brasil)
Ministro CELSO DE MELLO
Relator.
Do exposto acima, depreende-se que é a segregação cautelar decorrente da pronúncia uma realidade também das instituições judiciais do Brasil, aqui representadas pelo próprio Supremo Tribunal Federal, através do voto do min. Celso de Mello.
Já no âmbito doutrinário, vimos através de inúmeras citações de autores os mais variados, uns conhecidos outros nem tanto, que a questão da persistência da prisão em virtude da decisão de pronúncia é duvidosa e divergente.
Há autores que afirmam categoricamente a extinção dessa espécie de prisão processual. Senão vejamos fragmento do artigo "Mudanças no Tribunal do Júri" [49] de Marcos Bandeira, juiz de Direito do Tribunal de Justiça da Bahia:
A grande inovação e que deverá emprestar maior celeridade aos processos de competência do Tribunal do Júri é que a intimação da pronúncia poderá ser feita por edital ao acusado que estiver em liberdade e não for localizado pelo oficial de justiça. O libelo foi extinto, de sorte que operado o efeito ‘pro judicato’ da pronúncia, o juiz deverá inicialmente fundamentar a manutenção, revogação ou substituição de eventual prisão provisória anteriormente decretada, ou até mesmo deliberar sobre a necessidade de decretação de prisão preventiva ou medida cautelar ao acusado solto. Desta forma, a nova lei acaba expressamente com a prisão decorrente exclusivamente da pronúncia, de sorte que a prisão provisória só deve ser decretada com apoio em razões de ordem cautelar.
Doutra banda, autores há que afirmam a persistência da prisão em questão no código de processo penal brasileiro. É o caso de Francisco Afonso Jawsnicker, assessor de Desembargador do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, professor da Universidade Federal de Mato Grosso, coordenador regional do IBCCRIM, especialista em Direito Penal, autor da obra "Prescrição Penal Antecipada", editada pela Editora Juruá, já na 2ª edição, conforme fragmento extraído do artigo "A Reforma do Código de Processo Penal" [50] de sua autoria, senão vejamos:
A reforma foi positiva no tocante à prisão decorrente da pronúncia. Trata-se de espécie de prisão provisória e, como tal, medida de caráter excepcional. Assim, deve o juiz decidir, motivadamente, sobre a manutenção, revogação ou substituição da prisão anteriormente decretada ou, tratando-se de acusado solto, sobre a necessidade de decretação da prisão (art. 413, § 3º, CPP).
Do exposto, a outra conclusão não se pode chegar, senão à de que a prisão provisória decorrente da decisão de pronúncia existe em plena vigência no ordenamento jurídico brasileiro; e que tal prisão ainda é aplicada mesmo sendo um legado, e hoje, expressão, deixados como herança pelo regime autoritário de outrora. O que a revela, hipoteticamente, autoritária, tal qual a ordem constitucional que a criou. Época em que as decisões judiciais não precisavam ser fundamentadas, mas apenas chancelada pela mão pesada do Estado autoritarista.
Hoje, hipoteticamente, tal aberração não deveria, de maneira alguma, persistir, pois o contexto em que tal medida se encontra inserida é totalmente diferente em relação a antes. Hoje toda e qualquer decisão judicial necessita de ser devidamente fundamentada, trata-se de condição "sine qua non", ou seja, sem a qual tal decisão padecerá de nulidade insanável, quando não for considerada inexistente, questão que não pertine ao objeto deste trabalho.
E assim é. A prisão em virtude da pronúncia, ao menos em hipótese, não é capaz de encontrar, no ordenamento jurídico brasileiro atual, arrimo ou fundamentação legal capaz de justificar sua decretação, obrigando o aplicador do direito a usurpar fundamentos de outras medidas processuais constritivas para fundamentá-la, o que não a torna menos nula ou mesmo inexistente. Tal questão da fundamentação dessa prisão é assunto para os próximos parágrafos desta conclusão.
Em outro momento deste trabalho, vimos que toda decisão judicial deve ser devidamente fundamentada para que seja capaz de gerar os efeitos jurídicos a que se propõe, conforme mandamento constitucional esculpido no inciso IX do art. 93 da CF.
Sendo assim, uma análise da legalidade sobre os fundamentos ou requisitos fundamentadores da decretação da prisão decorrente da pronúncia fora feita. Deparamo-nos, então, num primeiro momento (antes da "reforma de 2008"), com a decisão de pronúncia e os antecedentes do pronunciado como requisitos específicos fundamentadores da prisão pronuncial. Num segundo momento, apesar deste quadro legal, referente aos requisitos fundamentadores desta prisão, antes mesmo da "reforma de 2008", já havia se tornado majoritária na jurisprudência dos tribunais, em especial do STF, a insuficiência daqueles requisitos específicos acima mencionados para fundamentação da prisão pronuncial. Neste diapasão, o próprio STF, através de suas turmas já vinha decidindo, reiteradamente, no sentido de que necessário se fazia, para a decretação da segregação em virtude da decisão de pronúncia, a concorrência dos requisitos fundamentadores da prisão preventiva esculpidos no art. 312 do CPPB.
Diante de tal quadro hipotético de usurpação descarada de requisitos fundamentadores alheios a outras espécies e subespécies de prisão [51], apenas a título de hipótese, pode-se concluir que a prisão decorrente da decisão de pronúncia não possui outro requisito específico fundamentador que não a própria decisão de pronúncia. Então, como justificar a segregação cautelar do pronunciado, atentando, assim, contra os princípios constitucionais da presunção de inocência e da não culpabilidade, apenas se utilizando de uma decisão de natureza meramente declaratória, tal qual é a decisão de pronúncia? A efetivação da segregação do pronunciado em tais circunstâncias é o que a comunidade jurídica conhece por "execução antecipada da pena" [52].
Fora exposto neste trabalho pensamento do insigne doutrinador Cesare Beccaria através de fragmento extraído de sua genial obra literária "Dos Delitos e Das Penas". Pensamento que evidencia a inutilidade e prejudicialidade da decretação de prisão cautelar após a pronúncia do réu, baseada apenas na constatação da materialidade do crime e de indícios de autoria. Tal opinião de Beccaria (2004) aliada às constatações que se procederam ao longo deste trabalho, dentre as quais a mais relevante, a de que a decisão de decretação da prisão em virtude da pronúncia não se adéqua ao preceito constitucional que preza pela fundamentação das decisões judiciais, evidenciam a hipotética inconveniência de tal medida processual constritiva sob vários aspectos, dentre os quais os da inutilidade, da prejudicialidade, da afronta a princípios e preceitos constitucionais favoráveis ao réu, o que denuncia a flagrante inconstitucionalidade da prisão em virtude da pronúncia.
Ficou, então, claramente demonstrado que a prisão processual decorrente da decisão de pronúncia, ao menos em hipótese, padece de vícios que a inquinam de inconstitucionalidade, entre outras inconveniências. Pois, se algum dia tal medida encaixara-se perfeitamente ao ordenamento jurídico brasileiro, esse tempo, sem dúvida alguma, já passou. Hoje, o contexto é outro, em que os direitos fundamentais jamais foram tão exaltados, ao ponto de não se permitir qualquer afronta, por mínima que seja, a estes direitos tão pleiteados e violados ao longo dos tempos.
No âmbito processual não deve ser diferente. Também os direitos e garantias fundamentais devem ser observados no processo, seja em âmbito judicial, seja no âmbito administrativo, seja nas relações entre Estado e cidadão (eficácia vertical dos direitos fundamentais), seja, em fim, nas relações entre particulares (eficácia horizontal dos direitos fundamentais).
Assim, a prisão decorrente da pronúncia, mais parecer ser, assim como outros institutos e dispositivos do atual CPPB, como um móvel velho cuja remoção se foi deixando para amanhã, mas que, todavia, foi ficando e se foi acostumando com sua presença, ainda que incômoda.
Enfim, não dá mais para tolerar a presença desta prisão processual no ordenamento jurídico brasileiro atual, ainda mais quando paira na comunidade jurídica, como um todo, uma atmosfera de constitucionalização do direito. Tal prisão merece ser expurgada ou extinta por que seu uso faz tremer as estruturas da ordem constitucional em que vivemos sem que tal vilipêndio seja necessário. Isto porque outras espécies de prisão processual, sobretudo a prisão preventiva, muito bem fazem as vezes da prisão decorrente de pronúncia, suprindo-a, sem afrontar a constituição federal para tanto. Tanto isso é verdade que, hoje, conforme farta jurisprudência e doutrina citada ao longo deste trabalho monográfico, a comunidade jurídica, majoritariamente, não admite a decretação da prisão decorrente da pronúncia sem que concorram os requisitos da preventiva esculpidos no art. 312 do CPPB.
Por tanto, já está mais que na hora de dar um basta nesta situação. Ainda mais agora, que existe uma comissão elaboradora de um projeto do novo código de processo penal, formada pelo Senado Federal [53]. É o momento de falar bem alto para que um pleito constitucionalizador do direito chegue até o alto onde se encontra aquela câmara legislativa congressual. Fica, então, aqui depositada a esperança de que ideias tão pertinentes e sedentas de constitucionalização do direito, como esta aqui apresentada, cheguem lá no alto e de alguma forma influenciem os trabalhos dessa comissão elaboradora do novo projeto do novo código de processo penal.
Porém, até que o novo código seja elaborado, apresentado, pautado, discutido, votado, sancionado, editado, publicado e entre em vigência, teremos de engolir a presença nefasta de tal medida processual constritiva. Até sua extinção legislativa, permanecerá a possibilidade de sua aplicação mesmo num ambiente de alta antipatia a seu respeito. Isto porque existe e vigora no ordenamento jurídico brasileiro atual um princípio conhecido por "princípio do livre convencimento racional do juiz". A partir deste princípio, o magistrado pode decidir da forma que quiser, desde que sua decisão esteja fundamentada "na lei", grifo nosso. Então, se a prisão pronuncial está presente na lei, o que impediria qualquer juiz de aplicá-la. Fica, então, claro que não basta a doutrina e a jurisprudência posicionarem-se de uma forma ou de outra, porque tal posicionamento não vincula o livre convencimento do juiz sem que ele permita isso.
Deste modo, a solução para a inconstitucionalidade de que padecem os dispositivos da lei adjetiva penal que chancelam a prisão pronuncial necessita, antes mesmo da criação de um novo código de processo penal, o que se trata de uma processo muito demorado, de um paliativo até que esta prisão seja extinta pela via legislativa, conforme assevera Willian Alessandro Rocha [54]:
"Enquanto a correção pelo Poder Legislativo não se efetiva, cabe aos operadores e estudiosos do direito buscarem as melhores soluções, utilizando os dispositivos legais já existentes, evitando-se utilizar interpretação extensiva in malam parte".
Seria o caso, então, a título de hipótese, de uma súmula vinculante que vedasse a decretação desta medida processual constritiva.
Através de um processo judicial que culminasse em súmula baseada nas reiteradas sentenças de pronúncia, favoráveis aos réus, que os eximem da obrigação de recolher-se à prisão para recorrer da sentença de pronúncia, prolatadas todos os dias, mas não por todos os juízes, mesmo em casos semelhantes. Sentenças estas que, por favorecerem ao réu, deveriam ser respaldadas em nível sumular, o que evitaria a prolação de sentenças em sentido contrário ou mesmo daria ao réu subsídio maior em que fulcrar pedido de relaxamento; e, além do mais, evitaria novos atentados contra a segurança jurídica a que estão submetidos todos aqueles que enfrentam neste momento um processo penal, como também, aqueles que enfrentarão.
A edição de uma súmula vinculante neste sentido mostra-se pertinente e cabível, a meu ver, porque não se mostrou segura a ideia de deixar ao critério deliberativo, portanto subjetivo do juiz a necessidade ou não da decretação da prisão provisória decorrente da pronúncia [55]. Necessário se faz que tal decisão, constritiva da liberdade do réu como é, deva ser abalizada pela letra clara da lei uma vez que se trata da aplicação de medida processual constritiva capaz de tolher a liberdade de locomoção de um cidadão e, consequentemente, lesionar o direito à dignidade inerente a toda pessoa humana.
Tal pertinência sumular se mostra ainda mais incidente enquanto não se cria um novo código processo de penal que torne clara a letra da lei no sentido de extinguir a prisão pronuncial; letra clara que tolha do juiz a possibilidade de realizar interpretações, mas o possibilite apenas aplicar a lei tal qual redigida está. Bastando, para bem aplicar a lei, que o juiz analise o comportamento processual do réu através, tanto das provas inquisitoriais produzidas durante investigação policial [56] e que constam do inquérito policial, mas que podem ser novamente produzidas durante a instrução penal, como através das peças processuais constantes dos autos.
Comportamento este que já serve de condição sem a qual não deve se fazer uso das algemas, uma vez que o paciente não ofereça resistência à prisão. Se tal condição é observada no caso do uso de algemas, porque não é no caso da decretação da prisão decorrente da decisão de pronúncia.