4.1 O Abuso de Greve
Diante de todo exposto entende-se que a greve é sim um instrumento dos trabalhadores, protegido constitucionalmente, que pode ser utilizado pelos mesmos coletivamente desde que não importe em excesso, afronte a ordem pública, não cause danos a terceiros, tenha motivo justo e obedeça ao procedimento definido em Lei, em tese, necessário para todas as categorias com permissão de exercer este direito, mesmo que por via de mandado de injunção. Para Nóbrega (2003, p.3), entende-se como abuso de direito:
[...] negar o direito e fundamentalmente afrontar a própria ordem jurídica, criando uma situação de exceção que não pode ser tolerada sob pena de acarretar a subversão da própria ordem jurídica. O abuso de direito é usualmente definido como o exercício anormal ou irregular do direito, isto é, sem que assista a seu autor motivo legítimo ou interesse honesto, justificadores do ato, que, assim, se verifica e se indicado como praticado cavilosamente, por maldade ou para prejuízo alheio.
A própria Constituição Federal já traz uma determinação legal para aqueles que venham a cometer abusos no exercício do direito de greve, ou seja, o Art. 9º, § 2º, que sujeita as penas previstas em Lei para os responsáveis.
Todavia, a Constituição não fala especificamente em abuso do direito de greve, simplificando no que tange a proposição do texto em abusos, no plural, abrindo espaço para a compreensão de qualquer tipo de abuso, inclusive aqueles que ensejam ações violentas que repercutem no Código Penal ou danos que adentram à esfera cível ou trabalhista. Trata-se de uma norma geral, que dada sua subjetividade e abertura abre-se margem para interpretações distintas.
Santos (1993, p.95) traz uma interessante teoria que distingue abuso do direito de greve dos abusos periféricos, como exemplo das possíveis interpretações daquela norma constitucional. Em suas palavras:
[…] sustento que a Constituição não fala em “abuso de greve de direito”, mas em “abusos cometidos” simplesmente (§ 2º do art. 9º). Assim, são puníveis todos os ilícitos – civis, trabalhistas e penais – praticados por ocasião da greve, mas a greve em si constitui um direito protegido e enquanto tal não deve ser punida, não pode reputar-se abusiva.
Encontra-se nos ensinamentos de Santos (1993, p.98) que a Constituição determinou aos trabalhadores o direito de definir o momento e o objeto a ser defendido por via de greve, mas o Art. 14 da Lei nº 7.783 de 1989 impõe que tal momento não pode seguir-se a uma decisão da justiça do trabalho, pondo o direito de greve abaixo do poder normativo dos tribunais. Segundo o autor o artigo específico da Lei de greve é inconstitucional, visto que constitui-se uma impossibilidade jurídica quando uma norma infraconstitucional sobrepõe-se à lei maior, sendo incompetentes os tribunais para declararem a abusividade de uma greve, limitando-se aos abusos gerais que o autor denomina excessos periféricos. Ademais, para Santos (1993, p.99) deve-se ter em mente o brocardo jurídico latino abusus non tollit usum, ou seja, o abuso não prejudica o uso do direito.
Em conclusão, o art. 14 da Lei da Greve, segundo creio, é inconstitucional. A declaração de greve abusiva pelos tribunais constitui, à luz da Carta Magna, uma impossibilidade jurídica. A petição inicial que tiver por fim tão-só aquela declaração deverá ser indeferida in limine pelo Presidente do Tribunal, porque, não sendo juridicamente possível seu objeto, inepto se torna o pedido (art. 295, parágrafo único, inc. III, do CPC). Se o pedido de decretação de abuso de greve chegar ao colegiado, por conter também proposta concreta de norma coletiva oferecida à parte contrária, deverá o Tribunal apreciar a proposta, cláusula por cláusula, e arbitrar as divergências; mas, em relação à abusividade da greve, deve declarar extinto o processo sem julgamento do mérito da questão correspondente, com fundamento no art. 267-VI do mesmo Código. Por seu turno, a dispensa de trabalhadores e a retenção de seus salários com base na chamada “greve abusiva” não podem ser admitidas. Do contrário, estaremos ressuscitando, com outros rótulos, a prática autoritária de declarar a “ilegalidade” da greve, adotada sob a Constituição antiga, com prejuízo das categorias de trabalhadores mais fracas ou mais tímidas e com completa ineficácia prática no caso de categorias fortes e de grande militância. (SANTOS, 1993, p.99).
No entanto, mesmo sendo um direito constitucional, a greve é sim submetida à justiça e à norma infraconstitucional regulamentadora, tendo como entendimento majoritário que os abusos definidos no Art. 9º, § 2º, da Constituição abarcam os definidos pela Lei de Greve.
Dentre os abusos definidos naquela Lei, Süssekind (2001, p. 477) destaca alguns:
O não atendimento das formalidades exigidas para instauração do movimento grevistas que devem ser observadas pela entidade sindical correspondente da classe interessada e à oportunidade da deflagração da greve;
O objeto da greve, ou seja, o interesse, as razões e motivos justos para viabilizar o movimento, não podem os trabalhadores considerar questões não fundamentadas para adentrarem em estado de greve;
A prática de atos ilícitos ou abusivos, por ação ou omissão dos dirigentes sindicais e dos próprios grevistas. Inferem-se daqui os excessos periféricos segundo Santos (1993, p.99), ou seja, questões pertinentes aos danos que podem ser causados, às questões penais, como o constrangimento ilegal promovido pelos piquetes[1011] que não permitem e coagem os colegas de trabalho a não adentrarem nos estabelecimentos, observando-se que ninguém é obrigado a aderir ao movimento, dentre outros pontos.
A Lei nº 7.783/89, ao regulamentar o preceito constitucional, estabelece que a inobservância de suas determinações, bem como a manutenção da paralisação após a celebração de acordo, convenção ou decisão da Justiça do Trabalho, são caracterizadas como abuso do direito de greve (Art. 14). Segundo essa orientação, haverá abuso de direito se não forem observadas as determinações da Lei de greve. (MARTINS, 2001, P. 764).
A questão da formalidade para instaurar o movimento grevista traz à tona a necessidade de se convocar uma assembléia com quorum suficiente para deliberar sobre o interesse de entrar em estado de greve, inclusive determinando o aviso prévio mínimo em caso positivo, de forma a dar oportunidade à correspondente categoria econômica de se preparar ou até mesmo chamar o específico sindicato obreiro para uma nova oportunidade de negociação.
O abuso de direito será formal se não forem observadas as formalidades previstas na Lei nº 7.783/89, como a não-concessão de aviso prévio de greve. Haveria abuso de direito material se a greve se realizasse em atividades proibidas. (MARTINS, 2001,p.764).
Percebe-se que não é possível a categoria simplesmente entrar em greve sem observar aquelas questões, configurando abuso essencialmente quando o empregador se encontrar surpreendido pela paralisação, como também a própria sociedade, que deve ser avisada em tempo hábil, evitando que a população acorde com as portas fechadas de importantes serviços, a exemplo, dos bancos no dia em que a maioria da população recebe salário.
Perante a questão da oportunidade e momento, a greve só deve ser a escolha da categoria depois de fracassada a negociação coletiva e terminada a vigência da convenção ou acordo coletivo de trabalho, ou, ainda, da sentença normativa da Justiça do Trabalho, como elucida Süsseking (2001, p.478), excepcionalmente quando um dos objetivos da greve é justamente fazer valer as cláusulas ou condições acordadas naqueles instrumentos.
Gonçalves (2009, p.2) aponta algumas sanções cabíveis para quem comete abuso de greve:
A responsabilidade pelo abuso de greve será imputada e apurada contra o autor do ato ilícito, trabalhista, civil, ou penal, enquadrando-se cada ato no âmbito legal respectivo. Na esfera trabalhista, especificamente, cometendo o obreiro ato ilícito, poderá ensejar não só a suspensão disciplinar, mas, também, a própria justa causa. Por outro lado, descumprindo o sindicato, por exemplo, obrigatoriedade de atender necessidades inadiáveis da comunidade, conforme prevê a Lei de Greve, poderá ser responsabilizado por danos daí oriundos.
4.2 A Responsabilidade Civil e Trabalhista
A Lei nº 7.783/89 traz em seu Art. 15 “a responsabilidade pelos atos praticados, ilícitos ou crimes cometidos, no curso de greve, será apurada, conforme o caso, segundo a legislação trabalhista, civil ou penal”, sendo, portanto o fundamento básico para o estudo da responsabilidade para quem cometer abusos durante o movimento.
Deveras, a Lei de Greve não cria nova tipificação, mas, reporta o cometimento de ilícitos criminais à regência do Código Penal, os quais, em embates coletivos mais exacerbados, podem, claro, causar lesões corporais, crime de dano, crimes contra a honra [...] No âmbito civil, podem, também, ocorrer perdas e danos, morais e materiais, “figurando como réu aquele que tiver dado causa ao dano, o sindicato, a comissão dos trabalhadores, um trabalhador ou, até mesmo, cabível o litisconsórcio passivo (GONÇALVES, 2010, p.1).
Contudo, deve-se ter em mente que estes atos ilícitos podem ser cometidos tanto pelos dirigentes sindicais, pela deflagração da greve não atendendo as formalidades ou pela prática daqueles atos ou omissão quanto às providências que impuser a lei, quanto pelos empregados participantes, pela prática de piquetes obstativos, agressão física ou moral, ocupação indevida de local de trabalho, depredação de patrimônio alheio ou das máquinas, equipamentos e do próprio estabelecimento empregador, ou simplesmente pela recusa de integrar turmas de emergência para a prestação de serviços considerados indispensáveis.
A responsabilidade seria tanto do trabalhador, como do sindicato. Em Campinas, o sindicato profissional foi condenado por abuso cometido durante a greve dos transportes coletivos daquela cidade, devendo pagar as passagens durante alguns dias às empresas de ônibus, que concederiam, em contrapartida, transporte gratuito para a população. A responsabilidade civil de ter causado prejuízo ao empregador, por exemplo, poderá ser indenizada pelo sindicato ou pelo trabalhador, dependendo de quem foi o culpado (MARTINS, 2001, p. 767).
Perante a responsabilidade civil prevalece a regra geral do Direito Civil quanto a reparação dos danos por aquele que ilicitamente deu causa. Segundo AROUCA (2008, p.35):
A responsabilidade civil já vinha tratada no Código Civil de 1916, dispondo seu art. 159 que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”. Em sua versão de 2000, o art. 927 é mais preciso: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causa dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. As remissões completam a garantia que se dá ao ofendido: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”; “Art. 187. Também comente ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Por outra via, o Art. 160 do Código Civil estabelece que no decorrer de uma greve pacífica, deflagrada atendendo todos os preceitos previstos em lei, os danos causados serão considerados exercício regular de um direito reconhecido, o que não geraria, em tese, responsabilidade civil.
A Procuradora LÉLIA GUIMARÃES CARVALHO RIBEIRO, depois de ressaltar que o sindicato, como pessoa jurídica de direito privado, sujeito ao princípio da legalidade, é administrado por uma diretoria que o representa em Juízo em todos os atos da vida civil, lembra que, no direito positivo brasileiro, responsabilidade civil se caracteriza pela “violação de um dever legal ou do direito e prejuízo a terceiro lesado”. E aduz: “No caso de atos abusivos individuais de cada trabalhador, no curso da greve, dirigentes sindicais podem responder solidariamente, ainda que não tenham participação in loco nos atos ilícitos. Uma vez provado que, por via oblíqua, os dirigentes sindicais tenham incentivado e fomentado os grevistas na prática de atos ilícitos, devem, pois, ser punidos de acordo com as áreas em que ocorreu o prejuízo, se penal, trabalhista ou civilmente (SÜSSEKING, 2001, p.488).
Sobre a responsabilidade trabalhista cabe elucidar que a simples adesão ao movimento grevista não aduz falta grave cometida pelos trabalhadores e mesmo quando aquela for declarada abusiva não necessariamente significará que seus participantes tenham cometidos atos ilícitos, especificamente ilícito trabalhista. Importa destacar este ponto, pois a própria Lei de greve traz em seu artigo 7º a possibilidade de rescisão de contrato de trabalho durante a greve, mas excetua determinando que tal possibilidade só deve ocorrer nas hipóteses previstas nos artigos 9º e 14º da mesma lei.
Desta disposição legal resulta que os contratos de trabalho dos grevistas permanecem suspensos, desde que a paralisação coletiva do trabalho tenha observado a lei e tanto os dirigentes sindicais, quanto os empregados em greve não hajam praticado abuso. Neste caso, será vedada a despedida dos grevistas, assim como a contratação de substitutos. Se, entretanto, a greve for ou se tornar ilícita ou abusiva, a empresa poderá penalizar os responsáveis, inclusive com a despedida, e contratar empresa prestadora de serviços ou outros trabalhadores (SÜSSEKING, 2001, p. 474).
Para Zangrando (1994, p. 80) existe uma preocupação com a possibilidade de dano irreparável em equipamento especial que não possa simplesmente ser parado, sendo necessário certa danificação do mesmo, a exemplo dos altos-fornos das indústrias siderúrgicas, o que levou a elaboração do Art. 9º da Lei de greve. Portanto, passou-se a ser critério para não abusividade da greve manter uma equipe de trabalhadores para assegurar a continuidade dos serviços, cuja total paralisação possa promover danos irreparáveis. Contudo, entende-se que esta responsabilidade pertence aos sindicatos e a sanção pelo descumprimento ao dispositivo legal, acima exposto, será a permissão ao empregador para, no curso da greve, contratar diretamente os substitutos dos grevistas, como elucida o parágrafo único do artigo supracitado.
Exemplo clássico é a dispensa por justa causa nos termos do artigo 482 da CLT. No tocante, Sérgio P. Martins indica a seguinte hipótese: “seria o caso de o trabalhador impedir os colegas de trabalharem, de empregar violência com os colegas durante a greve, de causar dano à propriedade do empregador etc”. Nesse caso, como assevera o ilustre professor, trabalhadores poderão, inclusive, ser responsabilizados por crime de dano, lesão corporal, homicídio, etc., nos termos da legislação penal, tal que, havendo indícios, o parquet requisitará, ex oficio, abertura de inquérito e oferecerá denúncia, nos termos do art. 15, parágrafo único, da Lei 7.783/89 (GONÇALVES, 2010, p.3).
Diante desta realidade torna-se de suma importância observar a critica feita por AROUCA (2008, p.48) sobre a imposição da responsabilidade sobre o contingente mínimo de trabalhadores recair apenas sobre o sindicato:
Que a greve nunca foi bem vista pela Justiça do Trabalho é sabença elementar. Prova disso, a imposição da responsabilidade apenas ao sindicato profissional (refere o autor ao sindicato obreiro, grifo nosso), mesmo quando o outro lado nada propõe ou pede, e o juiz instrutor determina cautelarmente ao primeiro que faça manter ativo, sob sua responsabilidade, um contingente por vezes elevadíssimo de trabalhadores, sem esclarecer quem os escalará. Nesse caso, deixa de lado a liberdade sindical individual e negativa, expondo o sindicato a pesadas multas, e, na hipótese, não poderá assegurar aos não-filiados o direito de oposição, presente e prestigiada, quando se trata de desconto em folha da contribuição impropriamente denominada assistencial. Já se viram situações inusitadas, como a determinação de manter 100% dos empregados em atividade, não restringindo, mas negando o direito de greve. Caso mais expressivo foi o dos petroleiros, que não cumpriram decisão do Tribunal Superior do Trabalho e tiveram de suportar durante longo tempo multa que não tinham como pagar e da qual se livraram graças à anistia que veio através de lei, mediante projeto de iniciativa do Poder Executivo.
Por fim, é interessante apontar o entendimento sobre a responsabilidade trabalhista perante o empregado com direito à estabilidade, ainda que de caráter condicional como ocorre com os dirigente sindicais, observando que a estabilidade provisória não gera maiores garantias do que os demais tipos de estabilidades, como bem deixa claro Süssekind (2001, p.486).
De acordo com Art. 543 da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), que consagra o entendimento jurisprudencial, ficou condicionado a resolução dos contratos de trabalho dos dirigentes e representantes sindicais à prática de falta grave devidamente apurada nos termas da Consolidação. Portanto, o empregador terá apenas a faculdade de suspender preventivamente o empregado por no máximo 30 dias e requerer à Justiça do Trabalho instauração de inquérito para apurar a falta, determinando ou não a resolução do contrato, com base no Art. 494 da CLT, de acordo com o autor supracitado.
Embora seja importante compreender todos os aspectos da responsabilidade civil resultante de abuso de direito de greve, a Emenda Constitucional 45 de 2004, determinou que a Justiça do Trabalho é competente para conhecer e julgar as causas fundadas na greve, em matéria de natureza sindical, dano moral ou patrimonial com origem na relação de trabalho, como foi posto nos incisos II, III e VI do artigo 114 do Diploma Político. De tal modo, não há razão para se falar em responsabilidade civil, mas sim em responsabilidade trabalhista, segundo Arouca (2007, p.1).