1.1.4 Sistemas de Valoração da Prova
O sistema de valoração da prova, assim como todo o direito probatório, passou por uma profunda evolução histórica até chegar ao sistema atual. Inicialmente a prova era banhada de superstição e o conceito de delito estava intimamente ligado à idéia de ofensa a uma divindade (juízos dos deuses). Nesses tempos mais remotos eram utilizados os meios de prova mais estapafúrdios e cruéis (água fervente, fogueira), pois se acreditava que o acusado, caso fosse inocente, estaria protegido pela divindade.[9]
Depois se evoluiu para um sistema da prova legal em que a norma atribuía a cada tipo de prova um valor de forma que o resultado do processo era mais uma aplicação de uma regra matemática. Dessa forma, ao final do processo, restava com a razão aquele que obtivesse uma maior pontuação, vencia aquele que fosse o melhor estrategista.[10]
Superada essa fase, chegou-se ao sistema da íntima convicção em que o juiz podia decidir a causa de acordo com o seu convencimento utilizando quaisquer elementos, inclusive impressões pessoais e extraprocessuais.[11]
Atualmente, com raras exceções (tribunal do júri), adota-se o sistema do livre convencimento (livre convencimento motivado ou ainda, da persuasão racional) que se caracteriza pela liberdade do juiz em formar o seu convencimento, desde que baseado em elementos constantes dos autos.[12]
Vale acrescentar que nesse sistema, embora o juiz tenha liberdade para apreciar o conjunto probatório trazido aos autos, deverá o magistrado ao proferir a decisão judicial motivá-la – demonstrar os fundamentos que o levou a tomar a decisão bem como, o substrato jurídico em que se apóia a mesma – caso contrário, infringirá o preceito constitucional que dispõe que toda decisão judicial deve ser motivada. Assim dispõe o art. 93, inciso IX, da Constituição da República, in verbis:
todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes.
Nesse diapasão, traz-se à colação a decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal que acolhe esse entendimento e afirma a necessidade do magistrado fundamentar o seu decisum e, ainda, que o mesmo deve ater-se aos elementos de prova constantes dos autos.
PENAL E PROCESSO PENAL – ROUBO QUALIFICADO TENTADO (ARTIGO 157, § 2º, INCISOS I E II, C/C ARTIGO 14, INCISO II, AMBOS DO CÓDIGO PENAL) – ROUBO QUALIFICADO (ARTIGO 157, § 2º, INCISOS I E II, DO CÓDIGO PENAL) – LATROCÍNIO TENTADO (ARTIGO 157 § 3º, IN FINE, C/C ARTIGO 14, INCISO II, AMBOS DO CÓDIGO PENAL) – PROVAS – VALORAÇÃO – PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO – CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS – PRIMARIEDADE – RECONHECIMENTO – ANIMUS NECANDI – AUSÊNCIA – DESCLASSIFICAÇÃO – PROVAS – INVIABILIDADE – O magistrado forma sua convicção pela livre apreciação da prova, sendo, da mesma forma, livre em sua escolha, aceitação e valoração. O juiz fica adstrito às provas constantes nos autos, mas é livre para buscar a verdade real, fundamentando a decisão. A sentença reconheceu a primariedade do réu, contudo, não é hábil a afastar a gravidade dos delitos, tampouco as circunstâncias judiciais desfavoráveis. O réu disparou a arma de fogo contra a vítima em região letal, evidenciando sua intenção homicida. O resultado da conduta foi objetivamente previsto pelo réu, as lesões eram suscetíveis de levar a vítima a óbito, caracterizando o início da execução de crime de latrocínio tentado. Negou-se provimento ao recurso. Unânime. (TJDF – APR 20010510071430 – DF – 2ª T.Crim. – Rel. Des. Vaz de Mello – DJU 04.02.2004 – p. 53)[13]
A razão da exigência de fundamentação de todos os julgamentos do Poder Judiciário deve-se, primeiro, à maior possibilidade de controle da atividade judicial e, segundo, possibilitar que o jurisdicionado tome conhecimento dos motivos que levou o magistrado a decidir e possa, ainda, exercer o seu legítimo direito de contraditório e ampla defesa confrontando, caso necessário, a decisão judicial.
No que tange à limitação do juiz de ficar restrito às provas constantes dos autos, deve-se essa assertiva ao direito ao contraditório, pois caso assim não fosse, seriam produzidos elementos aos quais as partes não teriam a oportunidade de conhecer e se manifestar, o que vulneraria a garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa.
1.1.5 Limitações à Prova e ao Livre Convencimento do Juiz
Em que pese a liberdade para produção da prova assegurada pelo princípio do contraditório e decorrente de um substancial direito de ação e de defesa e, ainda, ao princípio do livre convencimento motivado do juiz, a liberdade tanto na produção quanto na apreciação da prova não é absoluta.
No que se refere ao estudo em pauta, interessa-nos a limitação à prova disposta no art. 5º, inciso LVI da Constituição da República que dispõe serem inadmissíveis, no processo, as provas obtidas com a vulneração de algum direito substancial previsto em normas e princípios Constitucionais e das Leis. É o que se passará a tratar no Capítulo seguinte.
CAPÍTULO II – DAS PROVAS ILÍCITAS
2.1 AS PROVAS ILÍCITAS E O PROCESSO PENAL
Como afirmado anteriormente, no processo penal a prova é indispensável para formar o convencimento do juiz.
Aduziu-se ainda que, diferentemente do que ocorria nos tempos mais remotos, vigora atualmente, o sistema do livre convencimento motivado ou ainda da persuasão racional em que, o magistrado, tem a ampla liberdade para avaliar os elementos trazidos aos autos e que irão contribuir para o seu ofício de julgar.
No entanto, com relação aos meios ou espécies de prova, encontra-se no ordenamento jurídico algumas limitações para a sua utilização, pois a liberdade de produção e valoração da prova não é absoluta. Essas limitações são impostas com o objetivo tanto de garantir as liberdades fundamentais dos indivíduos quanto para regrar a atividade persecutória do Estado, pois, como dito, no Estado Democrático de Direito as regras impostas pelo Estado garantem os direitos do jurisdicionado, mas também limitam a própria atividade estatal que deve sempre se pautar pela legalidade e moralidade.
Tendo em vista que o objeto desse estudo é o problema atinente a inadmissibilidade das provas ilícitas no processo penal cabe, nesse ponto, distinguir as provas ilícitas, ilegítimas e ilegais. As provas ilícitas são aquelas colhidas com violação do direito substancial previsto em normas e princípios da Constituição e das Leis; ilegítimas são as que violam a norma processual; e ilegais são o gênero das quais são espécies as provas ilícitas e as provas ilegítimas.[14]
Logo, depreende-se dos conceitos trazidos à colação que esse ensaio trata da vedação, no processo penal, das provas que violam algum direito substancial tutelado pela Carta Magna ou nas normas infraconstitucionais.
2.1.1 Provas ilícitas e a Constituição
Dita a Carta Política de 1988 serem inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, inciso LVI). Esse mandamento está esculpido no título que trata dos direitos e garantias fundamentais e trata-se de importante garantia contra a vulneração dos direitos individuais e ainda uma limitação à atividade persecutória do Estado.
Desse dispositivo extrai-se que o poder constituinte originário traçou as fronteiras limítrofes da atuação do Estado contra o indivíduo e deste em relação ao seu semelhante, dando prevalência aos direitos e garantias fundamentais. Logo, é inadmissível todo elemento de prova quando vulnera um direito ou garantia previsto na Constituição, tendo em vista tratar-se de uma prova ilícita.
O aludido dispositivo guarda estreita relação com outras garantias previstas no mesmo art. 5º da Constituição. A título de ilustração pode-se citar o direito à intimidade (X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação), a inviolabilidade do domicílio (XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial), a inviolabilidade do sigilo da correspondência e das telecomunicações (XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal), entre outros.
Do exposto, infere-se que, sempre que a prova colidir com um direito ou garantia previsto em uma norma dessa magnitude, deverá ser vedado o seu uso no processo penal.
2.1.2 Disciplina no Direito Processual Penal Brasileiro
O CPP não tem nenhuma regra que reproduza com tamanha elasticidade o mandamento previsto no art. 5º, indico LVI, da CRFB. Ainda assim, a liberdade de prova no processo penal não é absoluta de modo a permitir todas e quaisquer espécies de meios probatórios.
No plano das normas infraconstitucionais, tanto no Código de Processo Civil (CPC) quanto no Código de Processo Penal Militar (CPPM), há regras que ditam inadmissíveis os meios de prova moralmente ilegítimos e que atentam contra a moral e a segurança individual ou coletiva.
Dita o art 332 do CPC, in verbis: “Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou defesa”.
E o CPPM, no art 295 esclarece: “É admissível, nos termos deste Código, qualquer espécie de prova, desde que não atente contra a moral, a saúde ou a segurança individual ou coletiva, ou contra a hierarquia e a disciplina militares.”
Com a promulgação da Carta Política de 1988, coube ao poder constituinte originário traçar os contornos e limites da atuação estatal frente aos indivíduos. Talvez pelo momento histórico anterior à promulgação da Carta Magna (o regime ditatorial), o seu inciso LVI do art. 5º afirmou peremptoriamente que são inadmissíveis no processo as provas obtidas por meios ilícitos.
A norma sustentada na Constituição é um limite que deve ser observado tanto pelo legislador, que não pode produzir normas jurídicas que contrariem tal mandamento, quanto ao poder judiciário, que ao interpretar o direito deve fazê-lo sistematicamente à luz do que dita à Lei Maior.
É cediço que o Direito Processual Penal é uma ciência jurídica autônoma[15], tendo em vista que possui objeto e princípios que lhe são próprios. Todavia, embora os vários ramos do direito sejam didaticamente estudados de forma separada, não constituem compartimentos estanques. Logo se deve interpretar qualquer norma jurídica sistematicamente dentro de todo o ordenamento jurídico.
Ademais, o CPP é norma infraconstitucional e deve obedecer aos preceitos traçados na Lei das Leis que lhe é, na hierarquia das normas, superior. Retira-se dessa assertiva que os limites à produção da prova no processo penal derivam dos princípios constitucionais que, editados posteriormente ao CPP, servem de diretriz e fonte de interpretação para as normas subjacentes à Constituição por estarem em plano jurídico inferior.
2.1.3 Admissibilidade das provas ilícitas no processo penal: correntes doutrinárias
Através dos tempos, sempre houve dissenso doutrinário e jurisprudencial no que tange à admissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos. Mesmo após a promulgação da Constituição, persiste a dúvida, tendo em vista a indagação da possibilidade do descarte de prova relevante e eficaz que sustente a verdade no processo penal, por ter infringido à norma material.
Questiona-se, nesse ponto, o que deve prevalecer, a apuração da infração penal, ainda que fundada em prova ilícita ou a manutenção da impunidade do infrator com o privilégio dos direitos fundamentais esculpidos na Constituição.
A doutrina tem respondido a questão das formas mais variadas. Em apertada síntese, pode-se reduzi-las em duas vertentes[16], os que propugnam pela admissibilidade das provas ilícitas e, em corrente diametralmente oposta, os que sustentam a inadmissibilidade.
2.1.3.1 Pela admissibilidade das provas ilícitas no processo penal
Sustentam os defensores dessa corrente que a prova ilícita apenas deve ser repugnada no processo, quando o próprio ordenamento jurídico o determinar expressamente. Afirmam que o problema jurídico da admissibilidade da prova não diz respeito à forma pela qual ela foi obtida e frisa que o importante é verificar se a sua introdução no processo é consentida, em abstrato, sendo irrelevante a consideração dos meios utilizados para a sua colheita, em concreto.
Nesse sentido, Fernando de Almeida Pedrozo[17] dita que “se o fim precípuo do processo é a descoberta da verdade real, crível é que, se a prova ilegalmente obtida ostentar essa verdade, seja ela aceita, havendo de ser instaurada, entretanto, contra aqueles que a obtiveram de forma ilícita, a devida persecução penal, diante da infração de disposições penais e pela violação dos direitos do réu.”
Nesse sentido, comentou Vinícius Daniel Petry[18] que:
deve prevalecer o interessa da Justiça no descobrimento da verdade, sendo que a ilicitude na obtenção da prova não deve ter o condão de retirá-la o valor que possui como elemento útil para formar o convencimento do Julgador. Não obstante a validade e eficácia de aludidas provas, o infrator ficará sujeito às sanções previstas pelo ilícito cometido.
Em resumo, para essa corrente doutrinária, admite-se a prova ilícita que sustente a verdade dos fatos, em detrimento dos direitos e garantias individuais, com a punição daquele que realizou a sua colheita infringindo a norma jurídica.