A dinâmica comercial dos últimos anos tem proporcionado um acréscimo considerável no número de brasileiros e estrangeiros que buscam os serviços de companhias aéreas para deslocaram-se (com maior celeridade e por preços cada vez mais acessíveis) entre cidades do território brasileiro. Diante desse aumento no número de voos e passageiros, amplia-se a possibilidade de ocorrência de casos incomuns nos procedimentos operacionais adotados pelas companhias aéreas. Como exemplo, iremos abordar nesse artigo o procedimento simples e usual de embarque de passageiros em voo doméstico.
Costumeiramente, a apresentação de documento (com foto) de identidade ou a carteira de habilitação viabiliza o procedimento de embarque. É o que se verifica diariamente nos aeroportos brasileiros. Entretanto, pensemos na possibilidade de passageiro de nacionalidade brasileira trazer consigo, no momento do embarque em voo doméstico, como documento de identificação apenas passaporte nacional válido, e nenhum outro documento que possibilite seu reconhecimento, isto é, no caso prático relatado, o passageiro não possui documento de identidade (RG) ou carteira de habilitação, portando apenas o passaporte nacional válido.
Diante das condições elencadas, questiona-se: a companhia aérea poderá opor óbice ao embarque deste passageiro?
De acordo com a leitura inequívoca do artigo 2º, Capítulo I do Anexo do Decreto 1.983/1996, norma esta que regulamenta os documentos de viagem, o passaporte é reconhecido como um documento de identificação. Documento é uma declaração escrita que serve como prova, isto é, é objeto material existente no plano concreto, e que serve como prova. Identificação, por outro lado, é o ato de reconhecimento de uma coisa ou de um indivíduo. Conjugando-se os temos, conforme faz a lei, um documento de identificação é uma declaração escrita, existente no mundo, que serve para reconhecer um indivíduo. Outrossim,o mesmo decreto expressamente elencou, no inciso I, do artigo 1º, que o passaporte é um documento de viagem, ou seja, é uma declaração escrita que torna apto, qualquer cidadão que o possua, realizar operação de embarque em aeroporto nacional.
Ressalta-se que o mesmo decreto expressou, em seu artigo 2º, que o passaporte é documento de identificação exigível de todos os que pretendem realizar viagem internacional. Entretanto, permaneceu o ato normativo, in albis, em relação à possibilidade de utilizar-se de passaporte como documento de identificação para viagens nacionais. Nesse ponto e, consubstanciado no decreto supracitado, nosso questionamento permanece sem resposta.
Entretanto, em 05 de Dezembro de 2002, através da Instrução da Aviação Civil (IAC) 107, a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), nos itens 3.1.a e 3.2.a, declarou expressamente que são documentos legais de identidade o passaporte nacional, para passageiros de nacionalidade brasileira, e o passaporte estrangeiro, para passageiros de outras nacionalidades. Essa Instrução foi revogada em 2008 pela Resolução nº 52, da própria ANAC. No ano seguinte, a Resolução nº 52 foi revogada pela Resolução nº 130, da mesma autarquia especial, que no inciso I do artigo 2º, e inciso I do artigo 3º, dispôs, com o mesmo entendimento, sobre a possibilidade de utilização de passaporte, nacional ou estrangeiro, como documento de identificação de passageiro, nacional ou estrangeiro, respectivamente. E não deveria ser diferente. Analisemos os fundamentos jurídicos.
O passaporte nacional, emitido pelo Departamento da Polícia Federal (Polícia Judiciária da União), teve os seus elementos caracterizadores uniformizados e padronizados mediante a instituição, no âmbito do Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça, o Programa de Modernização, Agilização, Aprimoramento e Segurança da Fiscalização do Tráfego Internacional e do Passaporte Brasileiro (PROMASP).
Esse programa acrescentou ao passaporte nacional diversos padrões de segurança, de forma a dificultar a sua adulteração, viabilizar sua aceitação em embarques aeroviários e torná-lo mais confiável, e com menor risco de ser declarado como falso, perante as autoridades competentes, o que caracteriza um aumento da confiabilidade e da praticidade da utilização desse tipo de documento na identificação de pessoas. Sendo assim, resta claro que temos uma autoridade competente (integrante do Ministério da Justiça), com atribuições e poderes para emitir documento nacional válido e apto a prover o reconhecimento de pessoas. E não poderia ser diferente, senão vejamos.
Comparativamente à possibilidade de identificação e reconhecimento de pessoas através do uso de passaporte nacional válido, nosso ordenamento jurídico contempla outros exemplos semelhantes em que se possibilita a utilização de documentos (diversos ao de identidade – RG e carteira de habilitação) como meios de identificação.
Primeiramente, temos as carteiras emitidas pelos órgãos criados por lei federal, controladores do exercício profissional, v.g., OAB, CRC, CRO, CRM, que são consideradas como documentos de identificação válidos, conforme preceitua o artigo 1º da lei 6.206, de 7 de maio de 1.975. Percebemos, então, que se esses documentos, com validade e utilização apenas em território nacional, podem ser utilizados como documento de identificação, porque se teria entendimento diverso em relação a um documento com validade e utilização tanto em âmbito nacional como internacional? Seria contraditório entender-se de modo diverso.
Enfatizando o que expomos, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em decisão unânime no Processo Administrativo 245.835/2010 - DF, decidiu que o passaporte é documento válido para fins de identificação do eleitor no dia da votação.
Dessa forma, não resta dúvida que o fundamento legal e jurisprudencial (utilizado pela ANAC) para permitir a utilização de passaporte como documento de identificação válido para embarque em voos domésticos, tanto por passageiros nacionais como de outras nacionalidades, é pertinente aos avanços tecnológicos, jurídicos e sociais e uma forma de facilitar a utilização do meio de transporte aeroviário por brasileiros e estrangeiros, bem como um modo de desburocratizar um país, em suas raízes, burocrático.