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Licença compulsória de medicamentos usados no combate ao vírus HIV/AIDS

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As questões relativas as patentes e acessos aos medicamentos essenciais e, especificamente, aos anti-retrovirais utilizados no tratamento da AIDS é temática constante na agenda da OMC e da OMS.

As questões relativas as patentes e acessos aos medicamentos essenciais e, especificamente, aos anti-retrovirais utilizados no tratamento da AIDS (Acquired Immunodeficiency Syndrome) é temática constante na agenda da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da Organização Mundial de Saúde (OMS).

As concepções das agendas da OMC e OMS são evidentemente diversas. Na OMC destaca-se a visão econômica e na OMS consagra-se a visão consubstanciada em interesses da saúde publica. Destarte, em sede de OMS, o acesso aos medicamentos e a questão das patentes não são consideradas apenas na dimensão econômica. A ótica da discussão na OMS versa, essencialmente, sob o aspecto do acesso universal aos medicamentos, a promoção à saúde e ao bem estar. As perspectivas da OMS se consubstanciam na premissa que consagra o acesso a medicamentos essenciais como parte do direito fundamental à saúde. Destarte, para a OMS, o sistema de patentes deve ser administrado de uma maneira imparcial: protegendo os interesses do proprietário da patente e salvaguardando os princípios de saúde pública. A OMS tem defendido que a garantia ao acesso aos medicamentos essenciais é considerado um direito fundamental e uma das responsabilidades essenciais do Estado, responsabilidade que independe de orientação política ou econômica.

Em sede de OMC, a discussão versa, em essencial, a respeito do Trade Related Aspects of Intelectual Property Rights - TRIPS Agreement (Acordo TRIPS - Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), a questão das patentes, o impacto da globalização e o acesso aos medicamentos.

A OMC vem sendo palco de inúmeras discussões relativas a patentes e Acordo TRIPS, essencialmente no que tange ao impacto da globalização e o acesso aos medicamentos.

Uma das temáticas suscitadas refere-se ao fato do Acordo TRIPS poder representar uma barreira para o acesso a medicamentos. Segundo dados da OMS, mais de um terço da população mundial não tem acesso regular a medicamentos essenciais. Adicionalmente, nas ultimas décadas tem se evidenciado significativo aumento de gastos nacionais com saúde, impulsionado, essencialmente, pelos altos custos dos medicamentos.

Por outro lado, na visão da competitividade de comércio nem sempre se enquadram legítimas preocupações sanitárias e ambientais.

A visão de competitividade pode inspirar regulamentações internas e acabam por atingir relações comerciais e, regra geral, de forma restritiva e podem configurar barreiras não tarifárias ao comércio internacional.

A conformidade ou não dos regulamentos sobre propriedade industrial, marcas e patentes do Brasil em relação ao Acordo TRIPS é questão freqüentemente discutida. Destarte, a legislação brasileira já foi alvo de “panel” na OMC que resultou em acordo entre os EUA e o Brasil em 2001.

Em maio de 2007 o governo brasileiro tomou decisão inédita ao optar pelo licenciamento compulsório (quebra de patente) do Efavirenz - anti-retroviral produzido pelo Laboratório Merck Sharp & Dohme, detentor da patente , usado no combate ao vírus HIV/AIDS.

Em dezembro de 2000 os EUA obtiveram junto a OMC uma rodada de consultas, que culminou, em 8 de janeiro de 2001, em um pedido de “panel” a OMC para discutir a questão do licenciamento compulsório, previsto nos artigos 68 e 71 Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996 (Lei de Propriedade Industrial) - regulamentada pelo Decreto n. 3.201, de seis de outubro de 1999, que dispõe sobre a concessão, de ofício, de licença compulsória nos casos de emergência nacional e de interesse público de que trata o art. 71da Lei nº 9.279/96.E ainda nos termos do artigo 68 da mesma normativa, a licença compulsória pode ser concedida sempre que a empresa dona da patente aplicar preços abusivos. A exegese que emana das normativas retro-mencionadas, permite que, em casos de emergência nacional e interesse público, faculta-se a concessão de licença compulsória. Inobstante tal medida, o laboratório farmacêutico, detentor da patente, receberia, a título de royalties um quantum considerado justo pelo Brasil. Tal concessão de licença compulsória vem sendo denominado de "quebra de patente", pelos laboratórios internacionais.

Para os EUA, o dispositivo em questão feria frontalmente regras internacionais e não garantia que uma patente seria respeitada.

No primeiro semestre de 2000 foram realizadas consultas entre os dois países. Os reclamantes embasavam suas consultas nos artigos 27 e 28 do TRIPS, que dizem respeito, respectivamente, à matéria patenteável e aos direitos conferidos. Em síntese preconiza o art. 27 do TRIPS que qualquer invenção, de produto ou de processo, em todos os setores tecnológicos, será patenteável, desde que seja nova, envolva um passo inventivo e seja passível de aplicação industrial.

OS EUA questionavam a lei brasileira em diversos aspectos. Primeiramente, face à exigência de que os detentores das patentes comecem a produzir seus medicamentos no Brasil num prazo de três anos. Caso a determinação não seja cumprida, a empresa perde sua proteção de patente.

Sustentavam os reclamantes que os dispositivos em questão do Acordo Multilateral estariam em desacordo com a legislação brasileira, principalmente no tocante ao art. 68.1.I da Lei de Propriedade Intelectual, que dispõe sobre licença compulsória, em especial a respeito da possibilidade de licenciamento compulsório quando o objeto de matéria das patentes não for produzido em território brasileiro. Ademais, concomitantemente, fundamentava-se a reclamação no art. 3 do GATT 94, que dispõe sobre o princípio do tratamento nacional.

Os EUA exigiam supressão da regra que permite o licenciamento obrigatório de produtos em casos de ‘emergência nacional’ ou de ‘interesse público’na temeridade de que o Brasil proceda à aplicabilidade desta norma no caso de preços abusivos de remédios (por considerar caso de interesse público), por considerar abusivas as exigências de venda da patente para outras empresas em caso de emergência nacional, e a obrigação de produzir os medicamentos no país para garantir a patente.

A preocupação dos reclamantes centrava em especial à obrigatoriedade dos titulares das patentes a transmitir as informações necessárias e suficientes à efetiva reprodução do objeto protegido, supervisão de montagem e os demais aspectos técnicos e comerciais aplicável ao caso em espécie. Atacando a forma genérica da redação legal, pretendiam que a legislação brasileira restringisse o conceito de emergência nacional, para que a indústria farmacêutica soubesse exatamente quando o governo poderá exigir a venda dos segredos de fabricação de medicamentos.

Em contrapartida, o Brasil alegava que os Estados Unidos estariam assumindo atitude excessivamente protecionista, no intuito de proteger os lucros de sua indústria farmacêutica, postura que prejudicaria os esforços do governo brasileiro - em especial na sua campanha contra a AIDS, que se baseia na produção de remédios genéricos mais baratos.

Defendia o Brasil que a legislação atendia aos interesse do país, ao evitar que haja desabastecimento de remédios ou prática de preços abusivos no setor, considerando que a Lei de Patentes está em conformidade às regras da OMC. O princípio geral do licenciamento compulsório faz parte dos acordos internacionais sobre o assunto.

O art. 31do Acordo permite o licenciamento compulsório, mediante o preenchimento de certas condições inobstante reiteradas críticas em torno das expressões genéricas que abrem margem a variadas interpretações pelas partes, como por exemplo ‘condições comerciais razoáveis’, ‘emergência nacional’, ‘adequadamente remunerado’. O dispositivo em questão visa garantir o fornecimento ao mercado de produtos essenciais em casos extremos, nos quais as companhias donas das patentes não conseguem suprir o mercado, não fabriquem o produto ou se neguem a licenciá-lo.

Em relação ao Art. 68, §1, I da Lei brasileira, o Brasil sustentava que os Estados Unidos estariam interpretando de forma errônea visto estarem procedendo à leitura do inciso deslocado do caput do artigo. A leitura combinada dos dois dispositivos demonstraria não existe incompatibilidade com o acordo de TRIPS.

Em junho de 2001, foi anunciado, em Genebra um acordo entre Brasil e EUA a respeito da discussão da lei de patentes sobre a produção e comercialização de medicamentos.

Os Estados Unidos decidiram retirar as queixas no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) desistindo do pedido de investigação contra o artigo 68 da Lei de Propriedade Industrial do Brasil. Em contrapartida, o Brasil se comprometeU a comunicar com antecedência qualquer intenção de ‘quebra de patente’, ou seja, de concessão de licença compulsória.

A temática da legislação brasileira e o mecanismo de licença compulsória volta ao cenário e poderá novamente repercutir de forma incisiva no cenário internacional tendo em vista recente medida do governo brasileiro através do Decreto nº 6108 de 04 de maio de 2007 em determinar a licença compulsória, medida prevista no Acordo de Propriedade Industrial (Trips) da Organização Mundial do Comércio (OMC) e popularmente designada “quebra de patente” do medicamento Efavirenz produzido pelo laboratório norte-americano Merck Sharp & Dohme, detentor da patente, usado no combate ao vírus HIV/AIDS.

No Brasil, já foram identificados cerca de 433 mil casos de Aids. O primeiro caso foi identificado em 1980 e em 1982 foram realizados os primeiros diagnósticos de AIDS no Brasil.

Em 1986 o Ministério da Saúde criou o Programa Nacional DST/AIDS com a missão de reduzir a incidência de doenças sexualmente transmissíveis e implementar medidas face ä nova epidemia.

Em 1996, a Lei 9.313 preconiza e determina a distribuição gratuita de medicamentos para tratamento de AIDS, cumprindo diretrizes constantes da Constituição Federal de 1988 que consagra ser a saúde direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

O programa anti-AIDS brasileiro vem sendo considerado um dos melhores do mundo e atende milhares de infectados que recebem os medicamentos gratuitamente através do SUS (Sistema Único de Saúde).

A questão da necessidade de licenciamento compulsório dos medicamentos Anti-AIDS vem sendo suscitada, especificamente, desde 2001.

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Em 2001 e 2003 o governo brasileiro já havia ameaçado aplicar a licença compulsória relativas aos medicamentos Nelfinavir, do laboratório Roche e ao Kaletra, do laboratório Abbot.

Antes da decretação da medida de licença compulsória pelo Brasil foram intentadas tratativas no intuito de resolver amigavelmente a questão relativa ao preço do medicamento Efavirenz.

O Brasil tentou desde novembro de 2006 negociar com o laboratório Merck a redução do preço do Efavirenz de US$ 1,59 para US$ 0,65 por comprimido de 600mg.

Foram evidenciados em 2006 que cerca de 200 mil soropositivos atendidos pelo Programa Nacional DST-AIDS, do Ministério da Saúde e estimativas do Ministério da Saúde demonstravam que cerca de 75 mil pacientes com Aids necessitariam de Efavirenz em 2007. Inobstante reiteradas tratativas, as tentativas de negociação se restaram infrutíferas.

Fracassada a tentativa de acordo com o laboratório Merck, o Ministério da Saúde declarou o medicamento de "interesse público" e anunciou a intenção de comprar a versão genérica da Índia por um preço de US$ 0,45 por comprimido.

Neste cenário, o governo brasileiro resolveu optar pela licença compulsória para possibilitar a aquisição de medicamentos genéricos pré-qualificados pela OMS de fabricantes da Índia,

A decisão do governo brasileira foi tomada visando manter a excelência e sustentabilidade do programa anti-AIDS e garantir o atendimento e fornecimento de medicamentos aos doentes.

Com efeito, o governo brasileiro considerou que a medida visa queda nos índices de mortalidade dos infectados, interesse que se suplanta, evidentemente, os interesses econômicos do laboratório norte-americano.

A decisão reduzirá em cerca de 72% o preço pago pelo Efavirenz e estima-se economia de US$ 30 milhões por ano para o governo brasileiro e US$ 237 milhões até 2012, valores que serão reinvestidos e garantirão a sustentabilidade do programa anti-Aids brasileiro no longo prazo no programa DST/Aids.

Atente-se, contudo, que o governo brasileiro continuará destinando 1,5% sobre o gasto com a importação do similar genérico de royalties do medicamento Efavirenz ao Merck Sharp & Dohme.

Especialistas vêm defendendo que a licença compulsória é inevitável para a sustentabilidade do Programa DST/AIDS e que o Brasil deve defender a autonomia nacional e da ampliação do acesso à prevenção e ao tratamento no país. Prepondera o entendimento que a decisão do governo brasileiro em proceder a licença compulsória do Efavirenz bem como de outros medicamentos anti-retrovirais, como o remédio anti-Aids Kaletra, do laboratório Abbott, tem perfeita base legal e não contraria o direito à propriedade intelectual e o Acordo TRIPS da OMC.

Além do Brasil, Tailândia, Moçambique, Malásia e Indonésia já se socorreram do mecanismo preconizado no Acordo TRIPS da OMC e procederam ao licenciamento compulsório de patentes de medicamentos. O Canadá, em 2001, aplicou licença compulsória ao remédio Cipro (contra o antraz, na época temido como possível arma terrorista), da Bayer

Consoante análises precedentes, a licença compulsória é medida prevista no Acordo de Propriedade Industrial (Trips) da Organização Mundial do Comércio (OMC).

No direito brasileiro, a questão do licenciamento compulsório, previsto nos artigos 68 e 71 Lei nº 9.279/96 regulamentada pelo Decreto n. 3.201/99 ampara a concessão, de ofício, de licença compulsória nos casos de emergência nacional e de interesse público de que trata o art. 71 da Lei nº 9.279/96. Efetivamente, o princípio geral do licenciamento compulsório é medida que pode ser suscitada em casos de um medicamento ser considerado de "interesse público", como foi propugnado pelo Ministério da Saúde no caso do medicamento Efavirenz.

Todavia, inobstante amparo normativo e respectivo pagamento de royalties ao laboratório Merck, detentor da patente, é possível, que ao iniciar as transações efetivas de compra do medicamento em questão com as empresas indianas, o Brasil venha a enfrentar nova polemica, inclusive em sede de OMC e possíveis, embora improváveis, retaliações da industria farmacêutica e em especial do laboratório Merck.


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Sobre a autora
Eliane Maria Octaviano Martins

Doutora pela USP, Mestre pela UNESP. Professora do Curso de Mestrado em Direito e Coordenadora do curso de Pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da Universidade Católica de Santos (UNISANTOS).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Eliane Maria Octaviano. Licença compulsória de medicamentos usados no combate ao vírus HIV/AIDS. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3074, 1 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20544. Acesso em: 27 dez. 2024.

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