6.1.3 O PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 103 DA LEI Nº 8.213/91
O dispositivo legal em epígrafe tem redação herdada do antigo artigo 103, no texto original da Lei nº 8.213/91, o qual sancionava a ausência de decadência de direito a benefício previdenciário, fixando, por outro lado, o prazo de decadência de cinco anos das parcelas não pagas nem reclamadas na época própria. E, por sua vez, tal preceptivo originário condensava toda a tradição legislativa anterior, consoante posto no tópico 7.1.1, que sempre deixava a salvo o direito ao benefício, ainda que o interessado deixasse, por vários anos, de requerê-lo perante a Administração. Esse parágrafo único está escrito da seguinte maneira:
Prescreve em cinco anos, a contar da data em que deveriam ter sido pagas, toda e qualquer ação para haver prestações vencidas ou quaisquer restituições ou diferenças devidas pela Previdência Social, salvo o direito dos menores, incapazes e ausentes, na forma do Código Civil.
No entanto, a palavra “ação”, posta no seio do preceptivo dificulta a interpretação, pois poderia possibilitar que esse dispositivo legal teria rompido a tradição, não guardando nenhuma relação com o originário artigo 103. E foi assim que entendeu Kravetz (2007, p. 603), ao plasmar as seguintes palavras:
Neste caso, o legislador apropriadamente rotulou o prazo como prescricional. Cuida-se, de fato, do direito a uma prestação que, violado, faz nascer para o segurado/dependente a pretensão (actio nata), que será veiculada por meio de uma ação condenatória.
Discorda-se do pensamento da articulista. Com efeito, o ordenamento jurídico — pela própria etimologia da palavra — é um sistema, devendo as leis e demais espécies normativas que o compõem formar um todo harmônico.
De fato, o sistema legal previdenciário não pode prescindir de norma disciplinadora de prazo decadencial. A falta dessa regra retiraria o caráter sistêmico do regramento legal previdenciário. E esse dispositivo confere a nota de não caducidade do direito ao benefício previdenciário, visto que, ao fixar decadência apenas das parcelas, permite que, a contrario sensu, chegue-se à interpretação de que o interessado pode requerer, a qualquer tempo, seu benefício.
Por outro lado, não se pode confiar na destreza técnico-jurídica do legislador, que, como já dito, não tem conservado uma linguagem devidamente sincronizada com a Ciência do Direito. Assim é que o vocábulo “ação” do indigitado parágrafo único foi empregado em seu sentido vulgar, significando movimento, atuação.
Com efeito, é evidente a sintonia desse parágrafo único com a redação original do artigo 103. Sem dúvida, a vontade do legislador foi assinalar a caducidade de parcelas não reclamadas na época oportuna, deixando sempre a salvo o direito ao benefício. Como ressaltado, mais uma vez, trata-se de imprecisão e anfibologia do legislador, pois o termo “ação” está empregado no sentido de postulação, de requerer, de solicitar, de interessar-se, de agir, isto é, embora que o interessado aja, perderá as parcelas anteriores aos cinco anos.
Apesar de equívoco terminológico, há fundamento nas ponderações feitas por Dias e Macêdo (2010, p. 327), ao dizer que “o marco temporal inicial da contagem desse prazo é a data em que as prestações devidas deveriam ter sido pagas, e não o da negativa do direito”.
Realmente, o prazo para contagem das parcelas não é fixado pela decisão final na via administrativa, e sim pela data em que deveriam ter sido pagas, reforçando, assim, a ausência de lesão, pois o que de fato ocorreu foi mero descuido do interessado em buscar seu direito.
6.1.2 A REGULAÇÃO DA PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA EM BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS DECORRENTES DE ACIDENTE DO TRABALHO
Também se faz necessário falar de prescrição de benefícios previdenciários relacionados com acidente de trabalho. Com efeito, foi o Decreto-Lei nº 7.036, de 10 de novembro de 1944, que cuidou de forma sistemática e detalhada do tema acidentário, mas tinha o empregador como o único responsável pelo socorro financeiro do obreiro. Daí por que as regras de prescrição (ou decadenciais) traçadas nesse diploma normativo tinham indisfarçáveis conotações civilistas e trabalhistas, não se aplicando a lides previdenciárias.
Contudo, o acidente de trabalho vai tomando, pouco a pouco, conotação de benefício previdenciário, visto que, quanto ao socorro de invalidez ou morte, não há diferença ontológica com os benefícios normalmente outorgados pela Previdência. A distinção reside apenas na causa.
De fato, a Lei nº 5.316, de 14 de setembro de 1967, inseriu no âmbito do antigo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) a responsabilidade pelo seguro obrigatório de acidentes do trabalho. Como se disse acima, as prestações devidas ao obreiro, por força de infortúnios decorrentes de acidente de trabalho, eram de exclusiva responsabilidade do empregador, sendo que o Decreto-Lei nº 293, de 28 de fevereiro de 1967, dizia: “O risco de acidente do trabalho é responsabilidade do empregador, o qual fica obrigado a manter seguro que lhe dê cobertura” (artigo 2º), abrindo possibilidade para que todo esse risco fosse transferido a uma entidade seguradora, mediante o pagamento de prêmio. Evidentemente, que tudo era regido por normas de Direito Privado, sobretudo aquelas aplicáveis às empresas seguradoras.
Desse modo, as sucessões de diplomas legais, depois da edição do Decreto-Lei nº 7.036/44, sobretudo o Decreto-Lei nº 293, de 28 de fevereiro de 1967, a Lei nº 5.316, de 14 de setembro de 1967, a Lei nº 6.367, de 19 de outubro de 1976 e a própria Lei nº 8.213/91, possibilitaram que emergisse concessão de benefícios previdenciários em virtude de acidente do trabalho.
Por fim, para fechar essa questão de disciplinamento legal, deve-se mencionar o § 10 do artigo 201 da Constituição, o qual diz: “A lei disciplinará a cobertura do risco de acidente do trabalho, a ser atendida concorrentemente pelo regime geral da previdência social e pelo setor privado”. Logo, a natureza previdenciária ou os efeitos previdenciários do acidente de trabalho têm status constitucional, não havendo mais discussão, sobretudo no âmbito do Direito Positivo, quanto a isso.
Essa etiologia dos benefícios de acidente do trabalho fez com que se mantivessem normas calcadas apenas na tradição, sem que se levasse em consideração a verdadeira revolução copernicana por que esses benefícios passaram, que, na atualidade, não têm mais conotação de Direito Privado, mas são verdadeiros benefícios previdenciários, submetidos às normas de Direito Público, sobretudo às de direito administrativo e maiormente aos princípios que regem a Seguridade Social e a Previdência Social.
No entanto, permaneceu o disciplinamento separado, só justificado pela repetição acrítica da legislação anterior, sem nenhuma razoabilidade técnica ou mesmo pragmática. Aliás, do ponto de vista prático, o lado previdenciário de acidente do trabalho é um verdadeiro pandemônio2, sem nenhuma razão plausível, decorrente de desatenção do legislador. Com efeito, não há justificativas para tratamento legal diferenciado entre benefício previdenciário propriamente dito e benefício acidentário, principalmente no que toca à atribuição de competência jurisdicional.
Pois bem, no que tange à matéria referente a prazos prescricionais ou decadenciais também não é diferente: há igualmente uma regulação segregada sem motivos para tanto, já que deveria seguir a regra geral de benefício previdenciário. O assunto é tratado nos diplomas legais acima mencionados, inclusive no que concerne à postulação judicial de benefício previdenciário, cujo fato gerador seja acidente de trabalho. Desse modo, deixando de lado as leis ou instrumentos normativos equivalentes, que cuidaram do tema prescricional na sede acidentária, é interessante analisar a questão à luz da Lei nº 6.367/76. O artigo 18 dessa lei tinha a seguinte redação:
As ações referentes a prestações por acidente do trabalho prescreverão em 5 (cinco) anos contados da data:
I - do acidente, quando dele resultar a morte ou a incapacidade temporária, verificada esta em perícia médica a cargo do INPS;
II - da entrada do pedido de benefício no Instituto Nacional de Previdência Social - INPS ou do afastamento do trabalho, quando este for posterior àquela, no caso de doença profissional, e da ciência, dada pelo Instituto acima mencionado ao paciente, de reconhecimento de causalidade entre o trabalho e a doença, nos demais casos de doenças do trabalho. Não sendo reconhecida pelo Instituto essa relação, o prazo prescricional aqui previsto se iniciará a partir do exame pericial que comprovar, em juízo, a enfermidade e aquela relação:
III - em que for reconhecida pelo INPS a incapacidade permanente ou sua agravação.
Novamente, o legislador não preza por clareza e precisão, sendo o dispositivo em destaque portador de várias dúvidas e equívocos. Primeiramente, não dá para saber, de forma inequívoca, se as normas prescricionais (ou decadenciais) são aplicáveis em relação jurídica do segurado com o Instituto de Previdência ou se é do trabalhador com o empregador ou se se aplicariam a ambos os casos.
Todavia, pela própria ementa da lei, que dizia “Dispõe sobre o seguro de acidentes do trabalho a cargo do INPS, e dá outras providências”, conclui-se que a prescrição ou decadência disciplinada era relativa a benefícios previdenciários emergentes de acidente de trabalho. Também roborava essa afirmação o artigo 1º que repetia redação da Lei nº 5.316, de 14 de setembro de 1967, a qual trazia para o então Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) a responsabilidade pelo seguro obrigatório de acidentes do trabalho, como já reportado acima.
Vencido isso, impende fazer análise desse preceptivo legal, que parecia ser draconiano, se comparado às normas prescricionais e decadenciais traçadas pela lei geral previdenciária (Lei nº 3.807/60).
Com efeito, não havia restrição quanto ao fim do direito ou da pretensão. Ao contrário da regra normal previdenciária, que sempre punha a salvo o direito ao benefício, decretando a impossibilidade de serem as parcelas, anteriores aos cinco anos, reclamadas pelo requerente, o referido artigo 18 permitia, à primeira vista, que, uma vez não vindicado o benefício, o interessado perdia, por completo, o direito à benesse previdenciária. Também digno de registro é a perversidade da literalidade da norma, referente à contagem do prazo inicial da prescrição, que, em conformidade com o inciso I, primeira parte, do mencionado artigo 18, tinha início na data do acidente, quando ocorresse morte. Ora, quando o acidente fosse mais grave, na hipótese de falecimento, o prazo de prescrição era na prática menor, já que nos outros casos tinha início sempre após pronunciamento da autarquia previdenciária. Na verdade, como se dirá a seguir, esse dispositivo legal reportava-se à decadência das parcelas. E a segunda parte do inciso I era bastante inusitada, porquanto a prescrição se iniciaria com o acidente, mas a incapacidade temporária deveria ser verificada pelo INPS. Ora, após o exame pericial feito na autarquia, o início da prescrição retroagiria para o dia do acidente. Na verdade, a melhor interpretação era ter isso como decadência, já que tudo ainda estava no âmbito administrativo, e sem resistência do instituto autárquico.
No que concerne à interpretação jurisprudencial, ainda impera a Súmula 230 do Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 1963), baseada no revogado Decreto-Lei nº 7.036/44, a qual afirma que “a prescrição da ação de acidente do trabalho conta-se do exame pericial que comprovar a enfermidade ou verificar a natureza da incapacidade”. Destaque-se que havia interpretação do dispositivo sumular no sentido de esse exame pericial ser o feito em juízo por especialista nomeado pelo magistrado.
Tal posicionamento não tinha lógica, como bem salienta Oliveira (1996, p. 59):
Inaceitável, outrossim, o entendimento de alguns segundo o qual o termo de início deva ser contado a partir do laudo pericial em juízo. O posicionamento é ilógico uma vez que, se o laudo foi realizado em juízo é porque já se encontra proposta e em andamento a ação, de tal forma que aí estaria consolidada a imprescritibilidade da ação, em contrariedade a lei.
Contudo, esse entendimento seria afastado, pois contra legem, haja vista que, como se vê acima, a Lei nº 6.367/76 dizia, em seu artigo 18, incisos I, parte final, e III, que a prescrição começaria a correr a partir da verificação da incapacidade em perícia médica a cargo do INPS. Portanto, a melhor exegese da Súmula era ter o exame feito no INPS como marco inicial da “prescrição”.
Mesmo o STJ tem abonado a aplicação da referida Súmula 230, como se nota no voto vencedor dos Embargos de Divergência no Recurso Especial 21002 (BRASIL, 1995), apesar de a ementa do aresto, a seguir transcrita, registrar as seguintes palavras, um pouco dissonantes do voto:
AÇÃO ACIDENTÁRIA – PRESCRIÇÃO INOCORRÊNCIA – LEI 6.367/76, ART. 18 – CLPS ART. 98.
- A prescrição qüinqüenal fixada no Art. 18 da Lei 6.367/76 refere-se à ação para cobrança de prestações relativas aos benefícios resultantes do seguro de acidentes do trabalho.
- A ação declaratória do direito aos benefícios por acidente do trabalho é imprescritível (CLPS Art. 89).
Na verdade, o voto vencedor fez diferença entre a ação para cobrança de prestações decorrentes de acidente do trabalho e a ação para declaração de acidente do trabalho. Esta não seria imprescritível, aquela sim.
No entanto, como a Súmula 230 só poderia ser entendida tendo o exame pericial realizado na autarquia previdenciária como marco inicial da prescrição, há jurisprudência asseverando a existência de prescrição, e prescrição de fundo de direito. Eis a ementa de aresto do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco3 (BRASIL, 2009):
EMENTA: PREVIDENCIÁRIO – AUXÍLIO ACIDENTÁRIO – PRAZO PRESCRICIONAL – APLICAÇÃO DA SÚMULA 230 DO STF – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO – DECISÃO UNÂNIME.
1 – A parte autora após ser submetida a perícia médica em 1986, (sic) ingressou com a presente demanda mais de seis anos depois de ter sido cessado o recebimento do benefício, aplicação da Súmula 230 do STF.
2 – Os feitos jurídicos não podem pendurar eternamente.
3 – Prescrição do próprio fundo de direito.
4 – Recurso de Agravo improvido
5 – Decisão unânime.
Por fim, impende destacar que a Lei nº 8.213/91, repetiu, com algumas mudanças, os dispositivos da legislação acidentária pretérita, no que concerne às disposições prescricionais. E, desse modo, plasmou em seu texto o inciso I, anteriormente transcrito, do artigo 18 da Lei nº 6.367/76, preceptivo esse de difícil interpretação.
Com efeito, o artigo 104 da Lei nº 8.213/91 tem a seguinte redação:
Art. 104. As ações referentes à prestação por acidente do trabalho prescrevem em 5 (cinco) anos, observado o disposto no art. 103 desta Lei, contados da data:
I - do acidente, quando dele resultar a morte ou a incapacidade temporária, verificada esta em perícia médica a cargo da Previdência Social; ou
II - em que for reconhecida pela Previdência Social, a incapacidade permanente ou o agravamento das seqüelas do acidente.
Com essa redação, conclui-se que o prazo sancionado nesse dispositivo legal é de decadência, porquanto prescrição só pode surgir após a resistência da autarquia previdenciária. Desse modo, pode-se interpretar, sobretudo o draconiano inciso I, como sendo fixação de decadência parcial ou decadência de parcelas. O sentido perseguido seria aquele posto na redação original do artigo 103.
Pelo visto, não existem fundamentos razoáveis para que haja tratamento normativo diferenciado de benefícios advindos de acidente de trabalho, porquanto não há diferenças substanciais entre eles e os benefícios previdenciários não gerados de acidente de trabalho. Em matéria de decadência e prescrição, isso se faz mais presente, visto que tudo poderia ser disciplinado pela norma geral, sem essas regras específicas, repita-se mais uma vez, só justificadas pela tradição e pela desatenção do legislador.
Na verdade, a tendência é se normatizar de igual forma todos os benefícios previdenciários, quanto à prescrição, já que, como visto, a exegese do artigo 104 leva ao mesmo resultado interpretativo do parágrafo único do artigo 103.