Resumo
O trabalho municia-se da do esquema teórico da Escola de Copenhagen com a tentativa de compreender e explicar a construção da "razão de Estado" – a justificativa de ameaças à existência do Estado para o uso do poder político em um arquitetado estado de exceção. Partindo desse quadro teórico geral, o trabalho inventaria os instrumentos normativos vigentes no período (1934-1938) e neles identifica questões e temáticas que eram percebidas como ameaças à Ordem Política e Social. Assim, tenta contribuir para a interpretação política da formulação de medidas e leis de Segurança Nacional àquela época.
Palavras-chave: Escola de Copenhagen; Segurança Nacional; Ordem Política e Social; Razão de Estado; Ciência Política.
1.Introdução
De acordo com a linha argumentativa do presente trabalho, os grupos sociais dominantes alteraram suas agendas e discursos com a intenção de formatar um novo arranjo político que pudesse reforçar sua permanência no poder. Buscamos apreciar o ato discursivo que objetivava a consecução de uma nova hegemonia por meio da implementação de legislações dispondo sobre a segurança nacional. O trabalho apropria-se do esquema teórico da Escola de Copenhagen, detendo-se às concepções de "objeto de referência" e "ameaça", identificando-os em textos constitucionais e na legislação de Segurança Nacional em apreço (Constituições de 1934 e 1937, Lei n. 38, de 1935 e Decreto-Lei 431, de 1938).
A proposta foi (i) inventariar o temário transformado em questões de segurança e (ii) compreender o ato de securitização realizado, tentando compreender quais grupos sociais sairiam beneficiados.
2.Apresentação das categorias analítico-conceituais
Como mencionado, a estrutura analítico-conceitual da pesquisa é baseada nas premissas da Escola de Copenhagen, incorporando alguns elementos da teoria de Antonio Gramsci. Inicialmente iremos delinear o esquema de análise da Escola de Copenhagen e, posteriormente, apresentar os conceitos adotados dos demais autores.
A Escola de Copenhagen propõe um questionamento, desafiando as tradicionais noções de segurança. Enfrentando o Realismo na Teoria das Relações Internacionais, que define a segurança em termos estritos de defesa, preservação e a sobrevivência do Estado contra ameaças externas, a Escola de Copenhagen reconceitua e redefine a agenda dos Estudos de Segurança (Security Studies) perquirindo e demonstrando como uma "ameaça" é criada e por meio de quais processos político-culturais esse elemento desestabilizador obtém consenso em uma sociedade. Essa abordagem rejeita os métodos mais restritos e o velho paradigma do Realismo, bem como sua percepção de ameaça/insegurança em termos de violência militar exterior (Buzan, Waever & De Wilde, 1998; Emmers, 2007).
O diagnóstico do Realismo identifica a insegurança como resultado estrutural da política internacional. Nesse juízo do Realismo, todos os Estados são atores unitários constrangidos por um estado permanente de insegurança (como o bélico estado de natureza hobbesiano) em decorrência da inexistência de uma autoridade superior capaz de afiançar padrões de regularidades e legalidade. Em se emergindo situações de conflito ou disputa, na carência de um poder organizado para assegurar a sobrevivência dos Estados/atores, a situação de imprevisibilidade de comportamentos dos outros agentes remete à conjuntura de que cada um percebe os outros como uma ameaça em potencial. Assim, o Realismo remete a um vetor externo, ao invés de averiguar a dinâmica interna, ainda que em interação com fatores extra-nacionais, como ensejo de instabilidade/insegurança (Baylis & Smith, 2006; Burchill, Devetak & Linklater, 2001).
De outro modo, a Escola de Copenhagen indica que as percepções de ameaça como puramente "estruturais", "externas" ou "sistêmicas" são de difícil comprovação. Apresentam a "segurança" como culturalmente produzida e formulada dentro de cada Estado-Nação, em interrelações sociais entre as forças políticas nessas escalas subnacionais. Portanto, em suma, a ameaça é produto e parte da dinâmica política (Buzan, Waever & De Wilde, 1998). Dessa feita, a segurança/insegurança é socialmente manufaturada: uma ameaça não é naturalmente observável, é, sim, elaborada como um entendimento coletivo. Perceber um fenômeno como ameaçador não é algo evidente, mas criado e como tal apresentado e, só em ulterior estágio, largamente aceito.
Como mencionou Waever (1995, p. 177), "a (in)segurança não é uma condição objetiva (...)", estar em segurança é uma situação subjetiva e não tangível. A realidade pode facilitar certas condições, predispondo uma audiência/sociedade a perceber um tema particular como ameaçador, mas será uma prática discursiva que irá catalisar o repertório de ideias constantes no imaginário social e produzir um senso de urgência sobre o objeto. De acordo com essa abordagem construtivista, a segurança possui um significado social, podendo ser inquirida, encontrando a genealogia de como uma sociedade se organizou, ordenando relações sociais em termos de objetos a serem protegidos e apartados daqueles que representam ameaças.
Quadro 1: Divergências entre a Escola Realista e a Escola de Copenhagen
Realismo |
Escola de Copenhagen |
|
Objeto de referência / Componentes vulneráveis às ameaças |
Primazia do Estado enquanto objeto de referência a ser tutelado contra outros atores estatais. |
Outros objetos de referência podem ser elaborados, incluindo ideologias e setores econômicos, contra ameaças não-estatais. |
Natureza da ameaça |
A ameaça é resultante de elementos exógenos, produto do sistema/estrutura das relações internacionais. |
A ameaça é socialmente constituída, em escala subnacional e internacional. |
Fonte: Elaboração própria.
A Escola de Copenhagen elaborou o seguinte modelo de securitização: um tema é convertido em uma questão de segurança por/para atores de securitização da sociedade civil ou organismos estatais). A securitização é uma versão extrema de (des)politização, retirando um assunto da dimensão pública/democrática e transportando-o às mãos de poucos especialistas. Esse procedimento se inicia quando atores de securitização percebem, interpretam e representam certos temas como ameaças. Posteriormente, a audiência/o público é convencido da existência do tema como um perigo para suas existências ou a prevalência de seus valores sociais (esse objeto a ser protegido da ameaça é o objeto de referência) (Emmers, 2007; Buzan, Waever & De Wilde, 1998; Knudsen, 2001). A ameaça e o objeto de referência são constituídos por meio de atos de fala [01], práticas e representações discursivas definindo e delineando a ameaça/o inimigo. O ato completo de securitização é realizado em duas etapas: (1) o ato discursivo, com a construção de uma nova hegemonia e, (2) as práticas não-discursivas, consistindo na implementação de políticas de securitização (Emmers, 2007). Essas categorias de entendimento serão sumariadas em seguida.
Os atores de securitização são aqueles que criam uma agenda com assuntos que se compõem como ameaças e objetos de referência, produzindo argumentos sobre a ameaça. Tipicamente esses atores são lideranças políticas, elites políticas, grupos de interesses, burocracias, partidos políticos, forças armadas ou, lato sensu, governos. Como o trabalho demonstrará, os atores de securitização não podem ser delineados exclusivamente como entidades governamentais ou instituições oficiais. Ao invés disso, existem, nos variados Estados, múltiplos atores de securitização, incluindo aqueles em aparelhos privados de hegemonia na sociedade civil.
Ademais, os agentes de securitização/aparelhos privados de hegemonia (na terminologia de Gramsci) falam para uma audiência, denotando que um objeto é vulnerável e carece de proteção. A securitização é tecida em um processo comunicativo, ansiando obter uma reação de sua audiência, em termos de aprovação e formulação de consenso por meio do compartilhamento das teses enunciadas. Um ator de securitização ambiciona, destarte, obter espaços institucionais de modo a imprimir suas visões sobre um objeto referente/uma ameaça, formulando políticas e impondo suas próprias agendas, excluindo ou criminalizando outros grupos.
Os objetos de referência podem ser indivíduos, grupos, áreas geográficas ou temáticas (Estados, ideologias, setores econômicos e ambientais ou grupos culturais) cuja existência será apresentada e/ou percebida como sob ameaça por uma dada audiência. É um tópico cuja continuidade é demonstrada/tida como em risco. Essa condição de vulnerabilidade demanda uma reorganização política, econômica ou social com fins de preservá-lo da ameaça. Assim, ativam-se mecanismos socioculturais e político-institucionais para eliminar a ameaça e resguardar o objeto de referência.
Quadro 2: Categorias da Escola de Copenhagen
Agentes de Securitização |
Indivíduos (lideranças políticas), grupos sociais de vinculação voluntária (elites políticas, grupos de interesses, partidos políticos, think tanks e demais aparelhos privados de hegemonia) ou burocracias e organismos estatais (Forças Armadas, instituições públicas, governos subnacionais) que produzem a noção de ameaça e de objetos de referência. |
Objetos de Referência |
Indivíduos, grupos, áreas geográficas ou temáticas (Estados, ideologias, setores econômicos e ambientais ou grupos culturais) percebidos/demonstrados como vulneráveis e passíveis de tutela. |
Fonte: Elaboração própria.
3.Contextualização político-sociológica
No período de 1910, as propostas anarquistas pululavam entre os trabalhadores do país. Essa proposta de organização operária e sindical foi se alargando até o período de 1919 e 1920, quando obteve grande visibilidade. É nesse momento que se dá uma demorada fase repressiva, modificando o movimento operário. Em fins da década de 1920, há a criação do "Bloco Operário-Camponês", idealizado pelo Partido Comunista Brasileiro, com o objetivo de liderar as pressões dos trabalhadores (GOMES, 1988; MENDONÇA, 1986). Na década de 1930, instala-se o sindicalismo burocrático, baseado, sobretudo, na cooptação de trabalhadores de origem rural, pouco afeitos à organização sindical e à resistência ao enfrentamento. O nacionalismo, propagandeado oficialmente com todo o seu charme, convencia os trabalhadores da existência de um "povo", sem contradições entre si e opinava pela necessidade de unidade contra um inimigo (IANNI, 1991; VIANNA, 1978).
O período de 1930 foi, certamente, um dos mais conturbados da história política do país, resultante de drásticas transformações de ordem interna e externa. Se a movimentação operária anarquista tentava colocar em xeque a própria ideia de Estado, a crise econômica de 1929 havia solapado as bases do liberalismo (político e econômico) presentes na Constituição de 1891, então em vigor. A crise no sistema financeiro mundial minou os grupos econômicos associados à produção do café, abrindo espaço para os reclames de novas elites industriais, com propostas modernizantes (FAUSTO, 1970; MENDES et al., 2007).
Essa recomposição dos grupos de interesses com compromissos distintos, fatos consolidados na Revolução de 1930 e decorrentes da transição demográfica e econômica (aumento da migração rural-urbana, ascensão de grupos de industrialistas sobre a até então predominante oligarquia cafeicultora paulista e ruptura com o Estado liberal de versão clássica), levaram à promulgação da Constituição de 1934 (FAUSTO, 1970; MENDONÇA, 1986). Esse documento constitucional de curta vida (findou-se apenas três anos depois de sua promulgação), constitucionalizou as contradições sociais existentes. Foi a primeira Carta Maior a criar o capítulo sobre a "Ordem Econômica e Social", açoitando o antigo liberalismo que prevalecera e atribuindo ao novo Estado Social a função de produzir algum consenso entre as incongruências do modelo oligárquico/agroexportador e o industrial-nacionalista (GONÇALVES, 2005; MENDES, 2007). A Carta de 1934, por impossibilitar a reeleição, logo se mostra um estorvo para Vargas (GONÇALVES, 2005). Em suas próprias palavras, em 10 de novembro de 1937:
"A organização constitucional de 1934, vazada nos moldes clássicos do liberalismo e do sistema representativo, evidenciava falhas lamentáveis, sob esse e outros aspectos. (...) Conformada em princípios cuja validade não resistira ao abalo da crise mundial, expunha as instituições por ela mesma criadas à investida dos seus inimigos, com o agravante de enfraquecer e anemizar o poder político" (VARGAS, G. apud MENDES et. al., 2007).
Estava fundada a gramática do medo. O "inimigo" agora seria vocábulo comum. Em 1935, em resposta aos planos de ação da Aliança Libertadora Nacional, entra em vigor a Lei 38, instituindo o arranjo jurídico-penal persecutório de crimes contra a ordem política e social, logo modificada pela Lei 136/1935 e reforçada pela Lei n. 244, de 11/09/1936, que deu formato ao Tribunal de Segurança Nacional. Assim, montava-se uma arquitetura jurídica adequada à perseguição da oposição política, fosse ela manifesta por organizações sindicais autônomas, pelas propostas operário-comunistas ou pelos setores de partidos antagonistas.
Já o Estado Novo, estabelecido em 1937, permitiria a Vargas fundar uma ordem constitucional que lhe conferisse poderes ilimitados para enfrentar o sobredito inimigo, que se multiplicariam conforme as necessidades. O nacionalismo aglutinava em momentos de dissenso (IANNI, 1991). Mas não só de mecanismos ideológico-retóricos que perseverou a dominação no período. Como assentou Jorge Ferreira, "[n]ão há muitas dúvidas sobre a repressão policial que se abriu a partir de 1930, se acentuou em 1935 e tornou, a partir de 1937, inviável qualquer resistência ao regime" (FERREIRA, 2001, pp. 87). Assim, soma-se, ao convencimento [02], a prática de violência física contra a oposição, juridicamente transformada em inimigos do Estado.
O regime posto pela Constituição de 1937 levava à hipertrofia do Executivo, outorgando-lhe poderes típicos do Legislativo [03], com os Decretos-Leis que poderiam dispor sobre qualquer matéria. Ademais, o Chefe do Executivo poderia sobrepor inclusive a mais alta instância do Judiciário que houvesse declarado a lei inconstitucional, bastando, para tal, afirmar que a lei inquinada era "necessária ao bem-estar do povo" o "à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta", remetendo-a novamente ao Legislativo (MENDES et. al., 2007, p. 159).
4.Arquitetura Jurídica da Segurança Nacional: 1934-1936
O edifício jurídico-institucional da Segurança Nacional compõe-se de textos constitucionais e infraconstitucionais (leis e decretos leis).
Na Constituição de 1934, as questões precípuas de relações exteriores, vistas no paradigma da Teoria Realista como elementos de instabilidade à segurança interna, foram colocados no rol sumário de competências privativas da União. Nesse aspecto, foram colocados sob a guarida da União, a concessão ou negativa de autorização de passagem de forças estrangeiras pelo território nacional (art. 5º, II), a declaração de guerra ou celebração da paz (art. 5º, III), o delineamento dos limites territoriais nacionais (art. 5º, IV) e a organização da defesa externa e segurança das fronteiras (art. 5º, V). Nesse arranjo constitucional, coube ao Poder Legislativo [04] realocar, em caráter temporário, a sede do governo em caso de exigências de segurança nacional.
A temática da Segurança Nacional ganha, na Constituição de 1934, capítulo próprio. O Conselho Superior de Segurança Nacional é criado, sob a gerência do Presidente da República, contando com a participação dos Ministros de Estado e Chefes das três Forças Armadas. É consignada a hipótese de suspensão de garantias constitucionais que possam prejudicar a segurança nacional (art. 161). E formalizada a "faixa de fronteira", a zona limítrofe da soberania nacional, estipulada em cem quilômetros, sendo proibida a concessão de terras ou de vias de comunicação sem a prévia manifestação do Conselho Superior de Segurança Nacional. Alfim, a ocupação dessas áreas deveria ser feita com a prevalência de capitais e trabalhadores brasileiros, autorização sempre em caráter precário, podendo ser revogada a qualquer tempo, servindo essa colonização, fortalecida por "estradas de penetração", transportes e indústrias à defesa e no interesse da segurança nacional (art. 166, §§1º e 2º [05]).
Em 4 de abril de 1935 [06], é promulgada a Lei n. 38, dispondo sobre matéria penal e tipificando os "crimes contra a ordem política e social". Os tipos penais de crimes contra a ordem política [07] eram os mais variados, mas versavam, especialmente, sobre o uso da violência para alteração da Constituição ou o Governo, tentar obstar o funcionamento de um dos poderes, impedir servidor público de exercer suas funções por meio da ameaça ou uso da violência ou as práticas de incitamento, seja por parte de outros cidadãos, seja a propaganda de greve ou desobediência entre servidores públicos (art. 7º, 8º e 9º) ou entre militares/policiais (art. 10 e 11).
Os crimes contra a ordem social [08] merecem igual destaque. Os dois primeiros tipos introduzem a luta de classes como terminologia jurídica: "Art. 14. Incitar directamente o odio entre as classes sociaes" e "Art. 15. Instigar as classes sociaes á luta pela violência" (sic). As contradições trabalhistas também encontraram previsão legal entre os crimes contra a ordem. O art. 19 estipulou como crime "Induzir empregadores ou empregados á cessação ou suspensão do trabalho por motivos estranhos ás condições do mesmo".
Anote-se, finalmente, o teor do art. 31:
"Mediante requisição do Chefe de Policia do Districto Federal, dos Estados ou Territorios, encaminhada pelo Ministro de Estado da Justiça e Negocios Interiores, será cassado, por acto fundamentado e publico do Ministro de Estado do Trabalho, Industria e Commercio, o reconhecimento dos syndicatos e associações profissionaes que houverem incorrido em qualquer artigo da presente lei, ou, por qualquer fórma exercerem actividade subversiva da ordem política e social" (art. 31, Lei n. 38, de 1935).
Consignava-se expressamente a possibilidade de dissolução das associações e sindicatos de trabalhadores, parte da estratégia de Getúlio Vargas para cooptação e controle dos movimentos independentes. No plano oficial, vigorava a retórica/tese da colaboração de classes, tão típico do corporativismo-autoritário varguista. A proposta era incorporar as formas de organização sindical autônomas, enfraquecendo as reivindicações operárias (MENDONÇA, 1986). A luta de classes era atividade de subversão ao invés de manifestação das relações político-trabalhistas do capitalismo em emergência: estava configurado entre os crimes contra a segurança nacional.
Como mencionamos outrora, essa mística nacionalista colocava-se como fórmula de legitimação do novo Estado, passando pelo necessário controle da classe trabalhadora. O Estado nacional na década de 1930 se consolidava produzindo um discurso de colaboração e harmonia entre as classes – o conflito capital/trabalho seria mesmo antinacional. O projeto de Estado-Nação desenvolvido fez-se como o método adequado para neutralizar as tensões latentes, construindo um consenso de criminalização das reivindicações sociais (MENDONÇA, 1986). Se a cooperação entre as classes era a regra, os conflitos patronais/trabalhistas eram algo contra a nação, a lógica dos grupos dirigentes foi denunciar os agitadores sociais, fossem eles anarquistas ou socialistas, como anti-republicanos, anti-nacionais e estrangeiros:
As elites dirigentes do país, com lógica semelhante à utilizada para qualificar os socialistas de ameaça à República recém-proclamada, construíram uma estratégia política que identificava os anarquistas como estrangeiros e terroristas. Nesta posição de mal externo que corrói a nacionalidade, eles se tornaram os mais radicais inimigos da ordem constituída. Era secundário o fato de serem ou não uma ameaça real (...) (GOMES, 1988, p. 89-90).
Além da tentativa de cooptação dos movimentos e organizações dos trabalhadores, mesmo que ideológica, com a vasta utilização do discurso nacionalista, houve, para os casos de insucesso da produção desse consenso, a utilização do aparato policial e da intervenção governamental para embargar as pretensões de organização e de reivindicação das classes subalternas (VIANNA, 1976), do qual a Lei 38/1935 foi apenas mais um expediente. A nascente intervenção econômica do Estado começava a solapar o liberalismo da Constituição anterior e os jargões do nacionalismo econômico serviam para justificar o planejamento governamental. Um exemplo disso é a estipulação de progressiva nacionalização de minas, jazidas de minérios e fontes de energia hidráulica [09] e a exigência de capitais e trabalhadores nacionais em indústrias em zonas fronteiriças [10].
Nas próprias palavras de Vargas, em discurso de 1930, o então presidente é enfático na associação de setores da economia à segurança nacional:
Não sou exclusivista nem cometeria o erro de aconselhar o repúdio do capital estrangeiro a empregar-se no desenvolvimento da indústria brasileira, sob a forma de empréstimos, no arrendamento de serviços, concessões provisórias, ou em outras múltiplas aplicações equivalentes... Mas quando se trata da indústria do ferro, do aproveitamento das quedas d’água, transformadas na energia que nos ilumina e alimenta as indústrias de guerra e de paz; das redes ferroviárias de comunicação interna; quando se trata, repito, da exploração de serviços de tal natureza, de maneira tão íntima ligados ao amplo e complexo problema da defesa nacional, não podemos aliená-los, concedendo-os a estranhos, e cumpre-nos previdentemente manter sobre eles o direito de propriedade e domínio (LIMA, 1995, pp. 20–21).
De resto, anote-se que o Tribunal de Segurança Nacional (criado pela Lei n. 244, de 11 de setembro de 1936, como reação à Intentona Comunista) também tinha entre suas competências o processamento e julgamento de crimes contra a economia popular, denotando a tese de que a economia nacional [11] era parte do rol de elementos vulneráveis às serem protegidos pela política de defesa nacional (BALZ, 2009; FREITAS, 2009).
Passamos a apresentar os quadros (3 e 4), repertoriando os objetos de referência (temas tidos como vulneráveis ou sob ameaça), os assuntos/sujeitos que eram apresentados como perigosos, bem como o dispositivo legal.
Quadro 3: Objetos de Referência e Ameaças na Constituição de 1934
Dispositivo Legal |
Objeto de Referência |
Ameaça |
CF (1934), art. 5º, inc. V |
"Fronteiras" |
Ocupação estrangeira do Território Nacional |
CF (1934), art. 166. |
"Cem quilômetros ao longo das fronteiras" |
Ocupação estrangeira do Território Nacional |
CF (1934), art. 166, §§ 1º, 2º e 3º. |
Fronteiras e terras públicas não ocupadas |
Ocupação estrangeira do Território Nacional |
CF (1934), art. 175, §2º. |
Estado |
"Agressão estrangeira" ou "insurreição armada" |
CF (1934), art. 119, § 4º, e art. 166 |
Economia nacional (minas, jazidas minerais, indústrias que deverão ter predomínio de capitais e trabalhadores nacionais) |
Desnacionalização econômica, vulnerabilidade territorial. |
Fonte: Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934); Elaboração do autor.
Quadro 4: Seleção de Objetos de Referência e Ameaças na Lei n. 38 de 4 de abril de 1935
Dispositivo Legal |
Objeto de Referência |
Ameaça |
Art. 1º |
Constituição da República e forma de governo |
Alteração legislativa por meio violento |
Arts. 7 e 8. |
Funcionamento do governo |
Greve de servidores públicos |
Arts. 14 e 15. |
Harmonia entre as classes e paz social |
"incitar o ódio" ou "instigar as classes sociais" à luta violenta |
Art. 22, §1º |
"Independência, soberania e integridade territorial da União, (...) organização e atividade dos poderes políticos" |
Processos violentos de subversão |
Art. 22, §2º |
"Direitos e garantias individuais e sua proteção civil e penal; ao regime jurídico da propriedade, da família e do trabalho; á organização e funcionamento dos serviços públicos e de utilidade geral; aos direitos e deveres das pessoas de direito publico para com os indivíduos e reciprocamente" |
Processos violentos de subversão |
Fonte: Lei n. 38, de 4 de abril de 1935; Elaboração do autor.
Ainda na década de 1930, mas antes da Constituição de 1937, importa assinalar que o aparato jurídico-institucional de segurança continuou a hipertrofiar-se: a Lei nº 136 (de dezembro de 1935) introduziu modificações na Lei nº 38, reforçando-a e dando maior celeridade aos trâmites processuais, de modo a apressar o processo semi-inquisitorial. Finalmente, a Lei n° 244 [12] (de 11 de setembro de 1936) criou o Tribunal de Segurança Nacional com competência específica para o processamento de crimes contra a Ordem Política e Social e a Economia Popular, como já versado.