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Algumas notas sobre a Lei de Procriação Medicamente Assistida portuguesa e os “bebês fora da lei”

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15/12/2011 às 16:26
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O acesso das técnicas de procriação medicamente assistida por celibatárias, homossexuais e, ainda, a autoinseminação e a maternidade de substituição estão fora do âmbito de proteção da lei em Portugal?

SUMÁRIO: Considerações prévias: existe um direito à reprodução? 1. Os beneficiários da PMA; 2. Os "desvios à lei"; 2.1 Autoinseminação e procriação natural 2.2 As mulheres celibatárias; 2.3. Os casais de lésbicas; 2.4 A maternidade de substituição; 3. O problema da presunção de paternidade; 4. Considerações finais; Referências.

RESUMO

Recentemente, uma reportagem de um suplemento do jornal português "Correio da Manhã" [01] trouxe a lume uma questão aparentemente afastada do mundo jurídico, mas presente no "mundo real": o acesso das técnicas de procriação medicamente assistida por celibatárias, homossexuais e, ainda, o recurso à autoinseminação e à maternidade de substituição por portugueses. O artigo do jornal só veio a reforçar uma realidade conhecida por todos: ignorância ou impedimento legislativo não faz com quer certos situações deixem de ser uma realidade factual. Já havia-se previsto [02] que artifícios e manobras poderiam ser utilizados, restando que a lei se adapte à realidade social, normatizando de forma adequada situações que existem no mundo fático, mas quem insistem em ser apartadas do mundo jurídico.

Inicialmente pensadas para auxiliar tão somente casais que sofressem de infertilidade, o acesso das técnicas de reprodução assistida se alargou em diversos países. O presente artigo visa mostrar até que ponto – em Portugal –, as situações descritas estão, de fato, fora do âmbito de proteção legislativo ou se existe alguma lacuna que possa levar a outro entendimento.

Palavras chave: PMA – Beneficiários – Celibatários – Casais homossexuais– Autoinseminação – Maternidade de Substituição

ABSTRACT

Recently, an article of a supplement of the Portuguese newspaper "Correio da Manhã" brought to light an issue apparently removed from the legal world, but present in the "real world": the access to assisted reproduction techniques by celibatarians, homosexuals and also the appeal to self-insemination and surrogacy by Portuguese people. The newspaper´s article only came to reinforce a known fact by all: ignorance or legislative impediment does not make certain situations cease to be a factual reality. It had been predicted that stratagems and maneuvers could be used, while the law adapts to the social reality, regulating appropriately situations that exist in the factual world, but that insist of being detached from the juridical world.

Initially created to help only couples who were suffering from infertility, the access of assisted reproduction techniques was extended in many countries. This article aims to indicate how far – in Portugal – the situations described are, in fact, outside of the scope of legislative protection, or if there is any legislative lack that may lead to another opinion.

Key-words: ART – Recipients – Celibatarians – Same-sex couples – Self-insemination – Surrogacy


Considerações prévias: existe um direito à reprodução?

Em uma época de tantas discussões éticas, legais e práticas em relação às técnicas de reprodução assistida, onde ainda se assiste uma heterogeneidade de opiniões por todos os lados, emerge uma questão basilar, ainda que adjacente à matéria: antes de se pensar nos pontos práticos – beneficiários, técnicas a utilizar, consequências no plano médico e no âmbito jurídico, etc. – há que se responder a uma pergunta que pode parecer simples, mas é o sustentáculo de tudo o que se disser a seguir: existe efetivamente um direito do ser humano a reproduzir-se?

Note-se que a esterilidade ou infertilidade é um dos problemas de saúde mais comuns que existem no âmbito da medicina. E mais: é a questão número 1, que leva que os indivíduos procurem clínicas e centros de saúde para se socorrer das técnicas de reprodução assistida. [03] Mas é de se lembrar que essa é a motivação principal, mas não a única, para que pessoas busquem o uso da procriação medicamente assistida. Além dos casais heterossexuais acometidos por algum mal que os impede de reproduzir-se entre si, pessoas solteiras e homossexuais [04] tampouco podem se reproduzir naturalmente, por razões óbivas. Quid faciendum?

As modernas técnicas da medicina romperam o liame – aparentemente indissociável – entre procriação e sexo, tornando viável a reprodução na ausência de qualquer ato sexual. E mais: avançaram de forma a permitir que uma situação, até então pensada para um par – invariavelmente de sexo diferente – pudesse ser pensada a um, ou por um casal do mesmo sexo. Em resumo: deixou de forçoso que para procriar, uma mulher tivesse que se unir – fisica ou emocionalmente – a um homem e vice-versa. [05]

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu art. XVI, 1, estabelece que "homens e mulheres, em idade adequada ao casamento têm direito de casar e constituir família". De tal disposição se pode extrair a ideia de que aí está situado o reconhecimento do direito à parentalidade, que deve ser vislumbrado como um direito personalíssimo, inalienável, indisponível, passível de proteção estatal [06]. E tal direito deve ser assegurado pelo Estado, em nome, inter alia, do atendimento aos mandamentos constitucionais da liberdade, da igualdade, da autonomia, da não-
discriminação e, por óbvio, da dignidade da pessoa humana, além do respeito aos direitos à privacidade, ao livre desenvolvimento da personalidade e a constituir família.

Um Estado que negue o direito à parentalidade a uma parte dos indivíduos – celibatários e/ou homossexuais, impedindo a realização pessoal dos mesmos viola seus direitos fundamentais à igualdade e à não-discriminação, obstrui o exercício da cidadania e coloca em xeque a própria democracia e dignidade das pessoas, ao deixar de promover positiva e igualitariamente as liberdades fundamentais de todos os seus cidadãos. [07]

Uma questão que se coloca é se esse direito à parentalidade se traduz também em um direito à reprodução. Como aponta a doutrina moderna [08], a vontade de ter uma descendência – não apenas juridicamente reconhecida, como no caso da adoção – mas uma aos quais se esteja biologicamente enlaçada é um dos mais primitivos desejos do ser humano.

Existem aqueles que acreditam que, de fato, existe um direito a ser pai ou mãe, constitucionalmente garantido. Para outros, inexiste tal direito, sob o fundamento de que se estaria "coisificando" a criança, tratando-a como um mero um objeto desejável. [09]

Ao se desdobrar os direitos fundamentais em gerações, é de se afirmar que os direitos reprodutivos – que alguma doutrina prefere denominar de direitos procreativos [10] – são direitos fundamentais de 4ª geração. Em outras palavras: é um direito fundamental do ser humano o direito a ter (direito positivo) e o direito a não ter (direito negativo) filhos. [11]

No âmbito das técnicas de reprodução assistida e da maternidade de substituição, o único fundamento viável para sustentar o seu óbice aos celibatários e homossexuais seria uma suposta lesão ao melhor interesse da criança que está por vir. [12] São utilizados argumentos como possíveis perturbações psicológicas que a criança poderia vir a sofrer quando tivesse conhecimento sobre a forma como foi gerada. A alegação é falaciosa. Ademais, já está mais do que provado que o modelo de família tradicional – pai, mãe, filho – nem sempre é o modelo ideal. Um ambiente saudável poderá ser formado por uma mãe, um pai, ambos, dois pais ou duas mães. [13] Para além disso, crianças geradas por meio de técnicas de PMA e até com auxílio da maternidade de substituição terão a certeza de terem sido muito desejadas. E mais: nunca padecerão dos traumas psicológicos dos "filhos acidentais". [14]

Como já referido, o direito à parentalidade, desdobrado no direito a reproduzir-se ou a gerar um filho, realça o direito à intimidade [15] e à autodeterminação dos indivíduos, que não deve ser limitado ou cerceado. Um país que imponha uma política arbitrária de reprodução humana obsta o direito inalienável – e fundamental – das pessoas em ter filhos. [16]

Para além disso, é mister salientar que a decisão sobre este problema não pode ser tomada isolando-o da questão da maternidade de substituição, que é a única forma de um casal homossexual masculino procriar. Assim, um sistema que admita às lésbicas o recurso às técnicas de reprodução assistida, deve admitir a maternidade de substituição para a procriação dos homossexuais masculinos. Em caso contrário, o princípio da igualdade é fortemente afetado. [17]


1. Os beneficiários da PMA

O art. 6º da Lei n. 32/2006, de 26 de Julho [18] estabelece explícitamente quem são os beneficiários das técnicas de reprodução assistida. O acesso às técnicas de PMA está restrito às pessoas (maiores e capazes) casadas que não se encontrem separadas judicialmente de pessoas e bens ou separadas de facto ou as que, sendo de sexo diferente, vivam em condições análogas às dos cônjuges há, pelo menos, dois anos.


2. Os "desvios à lei"

No escrito jornalístico supramencionado, algumas situações – supostamente tidas como fora do âmbito de aplicação da norma reguladora das técnicas de PMA – foram apontadas. A primeira questão que se coloca é: estão apartadas expressamente da Lei de Procriação Medicamente Assistida ou afastadas por meio de uma interpretação? A segunda questão a se levantar é: em tendo sido ocasionada por uma interpretação da legislação, terá sido essa a melhor solução? Essa é uma das respostas que o presente artigo pretende oferecer.

2.1 Auto-inseminação e procriação natural

É sabido que um casal homossexual – seja masculino ou feminino – é, atualmente, naturalmente infértil. Entretanto, é imperioso ressaltar que nada impede que os homossexuais recorram ao método natural de reprodução, com ou sem a presença da cópula. O casal é infértil, mas os indivíduos, em si, não.

A certa altura, o artigo do Correio da Manhã retrata a situação de um casal feminino, que recorre a um doador na internet e, depois de um encontro inusitado [19], fazem uma auto-inseminação em uma das parceiras. O jornal não declina o status do casal. Não refere se são unidas pelo casamento, por união de facto ou se são apenas namoradas. [20]

O exemplo, de uma lésbica se auto-inseminar, sem recorrer a qualquer centro de saúde já foi trazido há tempos pela doutrina. [21] Note-se que tal situação não é juridicamente controlável, nem está no âmbito de aplicação do art. 34º da LPMA, uma vez que não está em causa nenhuma situação médica. [22]

É certo que, legislativamente, se forem apenas namoradas ou unidas por união de facto, estão fora do âmbito de aplicação da Lei n. 32/2006. Entretanto, se forem casadas, poderiam perfeitamente ter recorrido aos Centros de Reprodução Assistida para se submeterem a um método artificial de fertilização. A problemática, neste caso, cinge-se tão somente à questão do estabelecimento da filiação, tema que foge ao objeto do presente estudo.

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2.2 As mulheres celibatárias

Uma mulher solteira e homossexual pode ter o desejo de levar a cabo o seu projeto parental, classificado vulgarmente como "produção independente". Mas o que diz a LPMA sobre a questão?

Como já mencionado, a Lei de Procriação Medicamente Assistida limita o acesso das técnicas de PMA aos pares unidos pelo matrimônio e a casais heterossexuais que vivam em união de facto, há pelo menos 2 anos, residindo aí o óbice a que mulheres solteiras – hetero ou homossexuais – tenham a possibilidade de recorrer a tais técnicas.

O que faz com que as pessoas que se encontrem em tal situação recorram a clínicas no Brasil [23], na Espanha [24] ou em outros países que permitam que mulheres celibatárias se submetam a técnicas de reprodução assistida.

Vera Lúcia Raposo [25] critica a solução trazida pela LPMA, fazendo uma analogia com uma outra situação de monoparentalidade ab initio, que é a parentalidade post mortem e o seu tratamento díspar, quando diz respeito à inseminação e à transferência póstuma de embriões. Na opinião da jurista, muito embora se tratem de situações com características diferentes – em uma o embrião já existe, na outra ele ainda será formado – se a monoparentalidade fosse uma condição tão danosa, as duas ocorrências deveriam ter o mesmo desfecho negativo. Alinhando-se por esse entendimento, é de se dizer que trata-se, no mínimo, solução curiosa e contraditória.

2.3. Os casais de lésbicas

De pronto, a lei aparta do seu campo de aplicação os casais homossexuais que vivam em união de facto. [26] Mas qual a situação dos casais homossexuais unidos pelo matrimônio, após a aprovação Lei n. 9-XI/2010, de 31 de maio, que passou a permitir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo?

É certo que a referida norma vedou expressamente a adoção por casais homossexuais quando estabeleceu em seu art. 3º, n.1 que "as alterações introduzidas pela presente lei não implicam a admissibilidade legal da adopção, em qualquer das suas modalidades, por pessoas casadas com cônjuge do mesmo sexo". E no n. 2 determina que "nenhuma disposição legal em matéria de adopção pode ser interpretada em sentido contrário ao disposto no número anterior". Mas o que dizer do acesso às técnicas de PMA pelos casais homossexuais?

A Lei n. 9-XI/2010 simplesmente foi silente a esse respeito, o que representa uma possível abertura das técnicas de PMA aos casais homossexuais. Pelo menos, automaticamente, aos casais de lésbicas, senão vejamos:

O art. 6º expressamente determina que são beneficiários das técnicas de procriação medicamente assistida as pessoas casadas [27], que não se encontrem separadas judicialmente ou de facto. Na lógica de um ordenamento onde o casamento era o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente, com a pretensão de constituir família, [28] e o casamento homoafetivo era tido por inexistente [29], não existia espaço para tal discussão ou entendimento, a não ser um juízo de que a LPMA, neste sentido, seria inconstitucional.

Fala-se em garantia automática apenas aos casais de lésbicas porque o casal masculino [30], para realizar o projeto parental por meio da utilização das técnicas de reprodução assistida, invariavelmente, deve recorrer à denomidada "barriga de aluguel". Entretanto, o uso de tal técnica é expressamente proibida em Portugal, como se depreende do art. 8º, n.1 da LPMA, que estabelece que "são nulos os negócios jurídicos, gratuitos ou onerosos, de maternidade de substituição", questão que abordar-se-á detidamente no próximo tópico.

2.4 A maternidade de substituição

Com a proibição do recurso à maternidade de substituição, um universo de pessoas estão excluídas do direito de exercerem o seu direito à maternidade ou à paternidade. Não apenas os casais homossexuais masculinos, mas também as mulheres que, por um fato natural [31] ou uma fatalidade da vida – como um acidente ou um câncer que as tenham levado a se submeter a uma histerectomia, por exemplo. Ainda pode-se apontar a situação de um homem solteiro – hetero ou homossexual – que deseje exercer a sua parentalidade de forma unilateral.

Como foi indicado anteriormente, a maternidade de substituição está expressamente vedada em Portugal, em virtude do disposto no já mencionado art. 8º da Lei n. 32/2006. Não obstante a evidente postura legislativa de óbice, posicões favoráveis são encontradas na doutrina. [32] Neste sentido, Vera Lúcia Raposo assevera que o fato de uma mulher poder "oferecer um filho àqueles que o desejam, mas não o conseguem por si sós, representa uma oferta de valor inestimável, porquanto é uma dádiva de vida". Termina a referida jurista por vislumbrar – como há-de ser – o direito à vida como o mais básico dos direitos humanos, entendendo, assim, que "todas as acções que o fomentem ou favoreçam terão que ser legalmente admitidas" [33].

Nomeadamente em relação às famílias homoafetivas ou monoparentais, é de clareza e razoabilidade meridiana o entendimento de Vera Lúcia Raposo, para quem "as restrições impostas pelo Estado ao exercício do direito à reprodução não podem se fundar em qualquer tipo de valoração moral, ligada a pré-juízos sobre o comportamento sexual, familiar e social da pessoa, e suas refracções na consciência moral da sociedade". Acrescenta ainda a jurista que os estudos psicossociológicos não demonstraram que "este tipo de formações familiares obstrua efectivamente o crescimento saudável da criança. A argumentação apresentada, assentando embora em motivações legítimas (o bem-estar do novo ser) parte de uma petição de princípio: a definição daquilo que seja o interesse e o bem-estar da criança emerge demasiado conotada em concepções moralistas". [34]

E há que se alertar que o referido dispositivo da LPMA afronta patentemente o n. 2 do art. 13º da Constituição da República Portuguesa, que veda toda e qualquer discriminação fundamentada na orientação sexual dos indivíduos.

Diante de tal óbice, inúmeros casais – e indivíduos do sexo masculino – se deslocam ao estrangeiro para se socorrer das "barrigas de aluguel". Alguns vão para países do leste europeu ou para a Índia, onde o processo é menos oneroso e custa cerca de €15 mil euros, enquanto outros vão para os EUA, onde todo o processo – desde a seleção das doadoras temporárias de útero, passando pela fertilização em si e, culminando com o tratamento das autorizações legais pode chegar à vultuosa soma dos €100 mil euros. [35]

Questiona-se se a solução portuguesa estará sendo coerente com a realidade atual da sociedade. E por outro lado, não se estará estimulando uma mercantilização do corpo humano?


3. Considerações finais

Diante de todo o exposto, partindo da premissa que a reprodução constitui um direito fundamental, muito embora as justificativas para as limitações do acesso às técnicas reprodutivas não sejam absurdas, com fundamentos mais ou menos válidos, entende-se que nenhuma delas é suficientemente ponderosa para excluir uma – grande! – parcela dos cidadãos de um direito que, como já foi referido, deve ser entendido como fundamental. [36]

Uma dúvida primordial emerge com o surgimento da Lei 9-XI/2010: às mulheres casadas homossexuais está garantido o acesso às técnicas de reprodução medicamente assistida? A resposta parece ser positiva. A intersecção do silêncio do legislador a esse respeito, com o disposto do art. 6º, da Lei n. 32/2006, não pode levar a outro entendimento. A não ser que se faça uso de uma interpretação arbitrária, comprometida por concepções moralistas e preconceituosas, contrárias ao disposto na Constituição da República Portuguesa.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAVES, Marianna. Algumas notas sobre a Lei de Procriação Medicamente Assistida portuguesa e os “bebês fora da lei”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3088, 15 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20653. Acesso em: 16 abr. 2024.

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