Artigo Destaque dos editores

A (im)penhorabilidade das benfeitorias voluptuárias com base no direito constitucional ao lazer

Exibindo página 1 de 3
Leia nesta página:

As benfeitorias voluptuárias são conceituadas pela doutrina como de simples deleite ou recreio. Propõe-se uma releitura das benfeitorias voluptuárias, a partir do direito constitucional ao lazer, para que possam ser consideradas bens impenhoráveis.

RESUMO: As benfeitorias voluptuárias, conceituadas como de simples deleite ou recreio, geralmente destinadas ao lazer dos ocupantes do bem principal, de regra são bens penhoráveis. Assim, este artigo faz uma releitura das benfeitorias voluptuárias, no sentido de, a partir do direito constitucional ao lazer, privilegiar mais o ser humano detentor dessas benfeitorias do que a valorização da própria coisa em si quando for objeto de penhora. Trata-se de pesquisa qualitativa, realizada por meio de método dedutivo e de procedimento técnico bibliográfico e documental. Dessa forma, as reflexões partem de noções sobre os princípios constitucionais, em especial a dignidade da pessoa humana. Em seguida, analisa-se o lazer como direito social previsto no art. 6° da Constituição Federal de 1988, em posição de igualdade com os direitos à vida e à saúde do indivíduo e da sua família. Por fim, examina-se a (im)penhorabilidade das benfeitorias voluptuárias com base no direito social constitucional ao lazer e suas interconexões. Nesse sentido, entende-se que as benfeitorias voluptuárias, tendo em vista o grau de subjetividade implícito em seu conceito, devem ser interpretadas pelo princípio da razoabilidade em razão dos valores em conflito, ou seja, quando se revestirem de bens sem serem supérfluos, suntuosos ou luxuosos por si, mas destinados a embelezar a coisa e a torná-la mais agradável para o lazer e a saúde do indivíduo e de sua família, não devem ser penhoradas. Assim, elas estarão concretizando os preceitos do lazer como direito social constitucional ligado à dignidade da pessoa humana.

Palavras-chave: Benfeitorias voluptuárias. (Im)penhorabilidade. Direito ao lazer. Dignidade da pessoa humana.


1 INTRODUÇÃO

O ritmo de vida experimentado atualmente pelos indivíduos na procura de satisfação profissional, econômica e cultural, acaba privando-os, por vezes, de realizar atividades e usufruir de bens/coisas que garantem uma melhor saúde, qualidade de vida e sua dignidade como pessoa humana.

A melhoria da saúde e da qualidade de vida e a concretização do princípio da dignidade da pessoa estão diretamente relacionadas com o direito social ao lazer, expresso no art. 6° da Constituição Federal de 1988 (CF/88). Por isso, diante dos desgastes físicos, emocionais, mentais decorrentes dos novos ritmos de vida e por ser o lazer um direito constitucionalmente garantido, entende-se relevante discutir a (im)penhorabilidade das benfeitorias voluptuárias, na medida em que se constituem de bens destinados ao lazer do indivíduo e da sua família.

As benfeitorias voluptuárias, conceituadas pela doutrina como de simples deleite ou recreio, que não aumentam o uso habitual do bem, ainda que o tornem mais agradável ou sejam de elevado valor, geralmente destinadas ao lazer dos ocupantes do bem principal, de regra, são bens penhoráveis. A penhora, ato de natureza executória, tem por escopo, por meio da apreensão de bens do devedor, garantir a posterior satisfação do direito do credor.

Nesse sentido, este artigo tem como objetivo geral reavaliar a leitura normalmente feita das benfeitorias voluptuárias, que é realizada a partir da própria coisa. O estudo discute como problema: qual a possibilidade de se fazer uma releitura das benfeitorias voluptuárias, no sentido de, a partir do direito constitucional ao lazer, privilegiar mais o ser humano detentor dessas benfeitorias do que a valorização da própria coisa quando esta for objeto de penhora?

Como hipótese para tal questionamento, entende-se que o lazer, como direito social constitucional, é essencial para a dignidade do ser humano. Por isso, as benfeitorias voluptuárias, ou seja, os bens destinados ao lazer, que envolvem embelezamento, agradabilidade, entretenimento, bem-estar do ambiente do imóvel para a pessoa e sua família não devem ser penhorados, uma vez que representam a válvula de escape das tensões que se operam no dia a dia atual, auxiliando na efetivação desse princípio fundamental.

A pesquisa, quanto à abordagem, será qualitativa, que tem como característica o aprofundamento no contexto estudado e a perspectiva interpretativa desses possíveis dados para a realidade, conforme esclarecem Mezzaroba e Monteiro (2008). Para obter a finalidade desejada pelo estudo, será empregado o método dedutivo, cuja operacionalização se dará por meio de procedimentos técnicos baseados na doutrina, legislação e jurisprudência, relacionados, inicialmente, aos princípios constitucionais, passando pelo direito social ao lazer e suas interconexões, para chegar ao ponto específico da (im)penhorabilidade das benfeitorias voluptuárias e o direito constitucional ao lazer.


2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Os princípios constitucionais são aqueles que guardam os valores fundamentais da ordem jurídica e concretizam os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. A seguir, serão descritas noções básicas sobre evolução, conceito e conteúdo dos princípios, bem como particularidades do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

2.1 Evolução, conceito e conteúdo dos princípios

Os princípios gerais de direito passaram a ser chamados princípios constitucionais, revolucionando a fase hermenêutica das normas programáticas, após a sua introdução na Constituição Federal. A normatividade dos princípios passa por três fases distintas até serem efetivamente tratados como direito, conforme Bonavides (2006): a) o jusnaturalismo e a fase metafísica e abstrata dos princípios; b) o positivismo jurídico e o ingresso dos princípios nos Códigos como fonte normativa subsidiária, e, por fim, c) o pós-positivismo, quando as constituições aceleram a hegemonia valorativa dos princípios, os quais passam a ser tratados como direito.

Atualmente, há o reconhecimento dos pensadores da área jurídica quanto à normatividade dos princípios constitucionais, afirma Espíndola (2002). Destaca que os princípios possuem força vinculante com eficácia positiva e negativa sobre o comportamento público e privado, assim como na interpretação e aplicação de outras normas. Ressalta, ainda, que o reconhecimento da normatividade se estende não só aos princípios expressa e explicitamente contemplados na ordem jurídica, bem como àqueles observados na doutrina e descobertos no momento de sua aplicação ao caso concreto.

Para melhor entendimento dos princípios constitucionais no ordenamento jurídico, considera-se relevante traçar a diferenciação entre princípios e normas. A palavra princípio é equívoca, na medida em que aparece com diferentes definições, e Silva (2007, p. 91) sugere o sentido de começo, e a exemplo disso menciona norma de princípio, significando "norma que contém o início ou esquema de um órgão, entidade ou de programa, como são as normas de princípio institutivo e as de princípio programático". Contudo, ressalta que a palavra princípio presente no Título I da CF/88, ao se referir aos princípios fundamentais, não significa início ou começo, mas, sim, demonstra a noção de mandamento central de um sistema.

Nesse contexto, como ponto de partida para a compreensão do sistema jurídico do Estado Democrático de Direito, esclarece Canotilho (2002, p. 1.145) que este constitui um sistema normativo aberto de regras e princípios, porque "as normas do sistema tanto podem revelar-se sob a forma de princípios como sob sua forma de regra". Para entender esse sistema, defende que sejam classificadas as regras e os princípios como duas espécies de normas, sendo que a diferença entre regras e princípios é uma distinção entre duas espécies de normas. Em síntese, para o estudioso, o campo de atuação dos princípios é mais aberto que o das regras, pois quando colidem não se excluem como ocorre com as regras, podendo haver, em caso de conflito entre princípios, ponderação e harmonização entre eles.

Assim, pode-se afirmar que os princípios constitucionais fazem "[...] a congruência, o equilíbrio e a essencialidade de um sistema jurídico legítimo. Postos no ápice da pirâmide normativa, elevam-se, portanto, ao grau de normas das normas, de fontes das fontes" (BONAVIDES, 2006, p. 294).

Quanto ao conceito de princípio constitucional, Diniz (2008, p. 807) refere que é "norma, explícita ou implícita, que determina as diretrizes fundamentais dos preceitos da Carta Magna, influenciando sua interpretação". Por sua vez, Nunes (2002, p. 37) destaca que os princípios "[...] são o ponto mais importante do sistema normativo. [...] dão estrutura e coesão ao edifício jurídico. Assim, devem ser estritamente obedecidos, sob pena de todo o ordenamento jurídico se corromper".

Quanto ao conteúdo, Espíndola (2002) destaca as três funções cumpridas pelos princípios, que possuem relevância para a ordem jurídica: fundamentadora, interpretativa e supletiva. A primeira possui importância para o Direito Público e Constitucional, visto que, em caso de conflito de normas, exerce maior força jurídica aquela que tiver a sua interpretação assentada conforme os princípios constitucionais, sendo que a outra perderá sua validade ou vigência. Já por meio da função interpretativa, os princípios cumprem o papel de orientarem as soluções jurídicas a serem levados em conta diante dos casos submetidos à apreciação do intérprete; são verdadeiros vetores de sentido jurídico às demais normas. Ainda, há a função supletiva, por meio da qual os princípios fazem a tarefa de integração do Direito, suplementando as lacunas regulatórias da ordem jurídica ou ausências de sentido regulador constatáveis em regras ou em princípios de maior grau de densidade normativa, segundo o autor.

Compreende-se, assim, a importante função que os princípios constitucionais exercem frente ao ordenamento jurídico brasileiro, pois é por meio da sua aplicabilidade, no contexto ao qual se inserem, que as normas jurídicas são interpretadas, dando coerência e relevância ao sistema jurídico.

2.2 Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana

A obra de Immanuel Kant valorizou a dignidade humana do ponto de vista filosófico, defendendo a ideia de que o homem é dotado de dignidade ontológica e que o Estado precisa estar preparado para atendê-lo. Bernardo (2006, p. 234) refere a relevância da obra desse filósofo alemão, já que "[...] propôs o seu imperativo categórico, segundo o qual o homem é um fim em si mesmo, não podendo nunca ser coisificado ou utilizado como meio de obtenção de qualquer objetivo. As coisas, que podem ser trocadas por algo equivalente, têm preço; as pessoas, dignidade".

Verifica-se, pois, que a consagração da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, já no século XX, quando foram largamente divulgados os horrores vividos neste período. Nesta fase de pós-guerra, após verificar os efeitos da utilização da pessoa humana para satisfazer interesses políticos e/ou econômicos, foi que esse princípio passou a ser reconhecido na maioria das Constituições e também no art. 1° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas de 1948 [01]. Por conseguinte, a dignidade da pessoa humana fica destacada como conquista da razão ético-jurídica contra as atrocidades que marcam a humanidade no decorrer da história (MELO, 2007; BERNARDO, 2006; NUNES, 2002).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

No Brasil, o princípio da dignidade da pessoa humana está previsto no art. 1º, inc. III, da CF/88, dentre os direitos fundamentais da República Federativa. A doutrina atual o considera, dentre os princípios fundamentais constitucionalmente garantidos, o mais importante na preservação de direitos essenciais, independentemente de sua situação social, uma vez que a pessoa humana é titular de sua dignidade. Além do artigo citado, outros dispositivos o preveem expressa ou implicitamente: arts. 170, 226, § 7° e 227, do mesmo diploma legal.

Salientando a característica de princípio e valor fundamental da dignidade da pessoa humana, preceitua Sarlet (2009, p. 78) que esta constitui "autêntico ‘valor fonte que anima e justifica a própria existência de um ordenamento jurídico’, razão pela qual, para muitos, se justifica plenamente sua caracterização como princípio constitucional de maior hierarquia axiológico-valorativa". Além disso, a dignidade independe das situações concretas, ou seja, mesmo aqueles que cometem as ações mais indignas e infames não podem ter a sua dignidade desconsiderada, por ser esta predicado intrínseco do ser humano e expressar o seu valor incondicional. Assim, cabe ao Estado criar mecanismos para concretizar a dignidade da pessoa humana, seja por meio da abstenção da prática de atos que atentem contra a dignidade, seja por condutas positivas que resultem na efetivação e proteção à pessoa.

Por isso, quando se fala em direito à dignidade, pressupõe-se a realização dos direitos fundamentais ao respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, bem como a garantia de condições mínimas para uma existência digna, conforme o autor. Isso significa que, quando não houver reconhecimento mínimo a esses direitos fundamentais, não haverá também lugar para a dignidade da pessoa, podendo transformar o próprio ser humano em mero objeto de arbítrios e injustiças.

Por sua vez, Rivabem (2005) destaca que o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana é constituído de um certo grau de vagueza e generalidade, e somado a isso possui um conteúdo ético e atual, características que admitem a sua concretização sobre diversas situações, acompanhando o ritmo apressado do desenvolvimento da sociedade sem provocar, contudo, rupturas sociais.

O respeito a esse princípio se traduz com a satisfação dos direitos sociais elencados no art. 6° da CF/88, juntamente com o art. 225, caput, do mesmo diploma legal, cujas normas garantem os direitos sociais à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à segurança, dentre outros. Assim, no próximo item, será abordado o lazer como um direito social constitucional, bem como sua ligação com a saúde e a vida digna do ser humano.


3 DIREITO SOCIAL CONSTITUCIONAL AO LAZER

Os direitos sociais são prestações positivas, inseridos no art. 6° da CF/88, com a finalidade de proporcionar melhores condições de vida aos hipossuficientes. Por isso que esses direitos estão ligados à igualdade, como pressuposto ao gozo dos direitos individuais, na medida em que criam condições materiais mais propícias para equiparar as situações sociais desiguais. Assim, para compreender a importância desses direitos, num primeiro momento, será identificado o que são eles, para depois ser abordado o direito ao lazer e, por fim, ser explicada a sua relação com os direitos sociais à vida digna e à saúde, como pressuposto para a concretização de tais direitos.

3.1 Direitos sociais

A CF/88 enumera os direitos sociais em seu art. 6º:a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.

Na concepção de Moraes (2006), os direitos sociais são direitos fundamentais do homem e devem ser observados como fundamentos em um Estado Social de Direito, pois, além de assinalarem liberdades positivas, possuem por desígnio a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes, tendo em vista a consolidação da igualdade social constitucionalmente assegurada.

Esclarecem Chimenti et al. (2005) que são direitos subjetivos da pessoa, oponíveis ao Estado, sendo que este deve fornecer as prestações diretas e indiretas que a Constituição garante, o que significa que esses direitos são mais do que normas programáticas. Sendo assim, explica Melo (2007), é por meio dessas prestações positivas do Estado, fundamentadas nos direitos sociais, que o ordenamento constitucional busca alcançar a igualdade material entre os indivíduos, visando a equilibrar as diferenças socioeconômicas existentes e garantir o mínimo necessário a uma vida digna.

Nas Constituição de 1934 e 1937, bem como na de 1946, os direitos sociais eram vinculados à relação de emprego; portanto, tais direitos equivaliam às garantias dos trabalhadores (NASCIMENTO, 1997), citando-se como exemplos o salário mínimo, limite máximo da jornada de trabalho, repouso semanal remunerado, dentre outros.

Contudo, na atual Constituição, os direitos sociais presentes no art. 6° não se destinam somente aos trabalhadores com vínculo de emprego, mas a todas as pessoas, já que toda pessoa humana merece viver com dignidade (CHEMIN, 2003). Dentre esses direitos, encontra-se o lazer, que será analisado a seguir, como forma de concretizar outros direitos, especialmente a saúde e a vida digna, com as quais ele tem relação.

3.2 Conceitos e conteúdos do lazer

O lazer, além de estar previsto na CF/88 dentre os direitos sociais fundamentais do ser humano, também está expresso na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu art. XXlV [02]. Durante a sua evolução, foram surgindo diversos significados; mesmo assim, não existe um consenso sobre o que seja lazer para a população, bem como para estudiosos no assunto ou técnicos que atuam nesta área.

O conceito utilizado como critério de referência no Brasil é o do sociólogo francês Dumazedier (1973, p. 34), que define lazer como:

[...] um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se, ou ainda, para desenvolver sua informação ou formação desinteressada, sua participação social voluntária ou sua livre capacidade criadora após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares ou sociais.

Também é nesse sentido o conceito que define lazer como ‘‘um conjunto de fatos e circunstâncias que, por sua natureza, apresentam-se como isentos das pressões e das tensões que, com certa frequência, podem afetar as atividades humanas individuais e grupais compulsivas opcionais’’ (ANDRADE, 2001, p. 21). Assim, o termo lazer é aceito como tempo livre, que se constitui em momentos sem a obrigatoriedade ou vinculação com o trabalho, em que o ser humano se dedica às opções pessoais, visando ao melhor aproveitamento do corpo, mente, tempo e espaço.

Para Marcellino (2000a), a noção de lazer é identificada por meio de duas linhas de pensamento que podem conviver simultaneamente, que são: uma, baseada no estilo de vida que a pessoa leva, bem como na sua atitude de satisfação, de prazer, de bem-estar diante das diversas experiências da vida, sem se prender a um tempo determinado, denominada como atitude; outra, como tempo, na qual a pessoa pode optar por atividades neste período disponível, incluídos o tempo para as obrigações em geral e para o trabalho com fins lucrativos.

Entretanto, de acordo com o entendimento de que os momentos de lazer implicam a busca pelo prazer, este prazer nem sempre é alcançado, devido a problemas que eventualmente possam ocorrer durante as atividades de lazer, ou seja, o tempo, como indicador objetivo e de caráter social e o prazer, como indicador subjetivo e de caráter individual, podem ser utilizados como parâmetros para a definição das atividades de lazer:

• as atividades de lazer são atividades culturais, em seu sentido mais amplo, englobando os diversos interesses humanos, suas diversas linguagens e manifestações;

• as atividades de lazer podem ser efetuadas no tempo livre das obrigações, profissionais, domésticas, religiosas, e das necessidades físicas;

• as atividades de lazer são buscadas tendo em vista o prazer que possibilitam, embora nem sempre isso ocorra, embora o prazer não deva ser compreendido como exclusividade de tais atividades (MELO; ALVES JÚNIOR, 2003, p. 32).

De outra parte, há quem defenda que o lazer é sempre liberatório de obrigações, pois procura equilibrar ou substituir alguma situação desgastante vivida pelo trabalhador para sentir-se melhor no trabalho: "o lazer é compensatório na sua forma mais crua, de liberação da fadiga e de reposição das energias para o trabalho no dia seguinte" (CAMARGO, 1992, p. 14). Além disso, ressalta Marcellino (2000b, p. 28) que a busca desenfreada por produtividade observada na sociedade moderna "confina e adia o prazer para depois do expediente, fins de semana, período de férias, ou mais drasticamente para a aposentadoria".

Em resumo, o que se depreende é que o descanso e o divertimento são os valores comumente mais associados ao lazer (MARCELLINO, 2000b), e que ele não deve ser conceituado apenas como contraponto ao tempo de trabalho e nem apenas como direito do trabalhador que exerce atividades com objetivos econômicos, mas principalmente como tempo livre prazeroso e criativo para todos: "é tão importante como o direito à saúde, ao trabalho, à liberdade, à segurança e outros, todos fazendo parte da busca e da proteção da dignidade humana" (CHEMIN, 2003, p. 176).

Já quanto aos conteúdos do lazer, eles podem ser os mais variados, desde que a realização da atividade de lazer envolva a satisfação dos anseios dos seus praticantes, pois o que é prazeroso para certa pessoa pode ser desconfortável para outra. Por isso, a escolha das atividades de lazer deve ter como pressuposto a realização das pessoas no seu todo, sendo indispensável que elas conheçam as opções de lazer que satisfaçam aos seus interesses (MARCELLINO, 2000b).

Nesse sentido, Camargo (1992) classifica as atividades de lazer em seis grupos: atividades físicas/esportivas, manuais, artísticas, intelectuais, associativas e turísticas, salientando que em todas as áreas do lazer é possível observar três atitudes: praticar, sob a forma de lazer, assistir ou estudar o assunto, observando que existe a possibilidade de combinação entre elas.

3.2 Interconexões do lazer com os direitos à vida digna e à saúde

Os direitos à vida digna e à saúde possuem relação direta com o lazer. Esses direitos estão relacionados com a qualidade de vida das pessoas e fica difícil considerar um deles sem a existência do outro; por isso, pode-se dizer que estão interligados, ou seja, a satisfação de um depende da observância do outro, em igualdade de importância aos outros direitos sociais fundamentais e primordiais.

Como dispõe Loureiro (2009), vida é o primeiro de todos os direitos naturais do homem, ligado ao direito de viver com dignidade por toda a existência. Nesse sentido, por ser a vida fonte primária de todos os direitos fundamentais, há um duplo significado: o direito de continuar vivo e o direito de ter vida digna na sua subsistência, ou seja, direito a um nível de vida que seja adequado e coerente com a condição humana nas suas condições vitais, envolvendo alimentação, habitação, renda, cultura, lazer, educação, assistência médico-odontológica, dentre outras.

Viver dignamente implica a concretização dos direitos fundamentais, então, "para começar a respeitar a dignidade da pessoa humana tem-se de assegurar concretamente os direitos sociais previstos no art. 6° da Carta Magna" (NUNES, 2002, p. 51). Dentre esses direitos, possuem relevância para a efetivação de uma vida digna a saúde e o lazer, como forma de valorizar o ser humano como indivíduo.

Para estabelecer esta relação entre saúde e lazer, destaca Chemin (2007, p. 105), que ‘‘[...] o lazer é identificado como instrumento de saúde – saúde pelo lazer, ou seja, o lazer como condição de saúde, como pressuposto de saúde. Claro que não menos importante é também entender o lazer como objeto de saúde, ou seja, ter saúde para desfrutar do lazer’’.

Foi no ano de 1947 que a Organização Mundial de Saúde (OMS) apresentou um conceito que veio superar o pensamento mecanicista defendido no século XVll. Segundo a OMS, agência vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU), que tem por objetivo elevar os padrões de saúde do planeta, saúde é não apenas a ausência de doenças, mas um completo estado de bem-estar físico, mental e social (MELO; CUNHA, 2007).

Por isso, definir um conceito de saúde não é fácil, pelo fato de ser complexo, amplo e diversificado; apesar disso, alguns pontos comuns costumam ser abordados, segundo Melo e Cunha (2007, p. 7): o primeiro "diz respeito à existência de uma estreita relação entre a saúde e a capacidade de trabalhar, de estudar, de desfrutar de determinado lazer ou de conviver socialmente. Outro ponto comum é a referência feita à doença". Portanto, saúde é um direito fundamental do homem, sendo reconhecida como "o maior e o melhor recurso para o desenvolvimento social, econômico e pessoal, assim como uma das mais importantes dimensões da qualidade de vida’’ (BUSS, 2003, texto digital).

Nesse contexto, vê-se que a obtenção de vida digna do homem se vincula à satisfação desses direitos, pois a qualidade de vida, além de ter boa saúde física e mental, também significa a pessoa estar de bem com ela própria, com a sua vida, com as pessoas queridas, ou seja, estar em equilíbrio. Estar em equilíbrio implica possuir hábitos saudáveis, qualidade nos relacionamentos com as pessoas, ter harmonia entre a vida pessoal e profissional e destinar, em meio à correria dos tempos modernos cheio de afazeres, um tempo ao lazer. Por conseguinte, para o autor, saúde e qualidade de vida "são dois temas estreitamente relacionados, fato que podemos reconhecer no nosso cotidiano e com o qual pesquisadores e cientistas concordam inteiramente. [...] a saúde contribui para melhorar a qualidade de vida e esta é fundamental para que um indivíduo ou comunidade tenha saúde" (BUSS, 2003, texto digital).

Pelo exposto, a saúde é um direito fundamental da pessoa humana, e é dever do Estado [03] por meio de ações positivas prover condições para o seu exercício. Nesse sentido, assevera Chemin (2007) é que o lazer se encontra em igualdade de condições com esse direito e com os demais direitos, destacando que a falta de tempo para o lazer e a baixa qualidade de vida contribuem para o surgimento de doenças, dentre elas o estresse que assola boa parte da população. Logo, o lazer tem estreita relação com a vida saudável e de qualidade.

A seguir, será feita uma releitura das benfeitorias voluptuárias, a fim de identificar sua relação com o lazer, além de serem analisadas as interconexões deste com a saúde e a qualidade de vida do ser humano com base na doutrina e na jurisprudência.

Assuntos relacionados
Sobre as autoras
Josiane Graciola

Advogada em Encantado (RS). Bacharela em Direito pelo Centro Universitário Univates.

Beatris Francisca Chemin

Professora dos Cursos de Direito e de Ciências Contábeis do Centro Universitário Univates, de Lajeado (RS). Especialista em Direito Civil. Mestre em Direito. Autora de livros, artigos e outras publicações. Residente na cidade de Lajeado (RS).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GRACIOLA, Josiane ; CHEMIN, Beatris Francisca. A (im)penhorabilidade das benfeitorias voluptuárias com base no direito constitucional ao lazer. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3102, 29 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20743. Acesso em: 18 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos