3. DA CARACTERIZAÇÃO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO FISCAL PRÉVIO COMO JUSTA CAUSA E NÃO COMO CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE OU CAUSA EXTINTIVA DA PUNIBILIDADE
3.1. Do conceito da justa causa
Antes de ser aqui explicado que o processo fiscal prévio nos crimes contra a ordem tributária é a justa causa para a ação penal, adotando a posição seguida pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça Napoleão Nunes Maia Filho (2003) e pelo Supremo Tribunal Federal, deve-se conceituar este instituto.
A justa causa pode ser conceituada como uma das condições da ação no processo penal, significando o lastro probatório mínimo necessário para o exercício da ação penal.
Não significa que deva o titular do direito de ação, logo no momento da sua propositura, demonstrar cabalmente que o acusado deva, num juízo preliminar, ser condenado. Longe disso.
A justa causa consagrada pelo nosso ordenamento jurídico se traduz nos elementos probatórios capazes de demonstrar que o direito de ação está sendo regularmente exercido. Não é um suporte probatório hábil à condenação, mas sim elementos que indiquem no sentido da viabilidade do processo.
Afrânio Silva Jardim (1990, p. 147. e 148), citado por Rogério Greco (2005, p. 768), aduz:
Esse suporte probatório mínimo se relaciona com os indícios da autoria, existência material de uma conduta típica e alguma prova da antijuridicidade e culpabilidade. Somente diante de todo este conjunto probatório é que, a nosso ver, se coloca o princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal [...]. Uma coisa é constatar a existência da prova no inquérito e peças de informação e outra coisa é valorá-la, cotejá-la. É preciso deixar claro que a justa causa pressupõe um mínimo de lastro probatório, mas não prova cabal. É necessário que haja alguma prova, ainda que leve. Agora, se esta prova é boa ou ruim, isto já é questão pertinente ao exame do mérito da pretensão do autor, até porque as investigações policiais não se destinam a convencer o juiz, tendo em vista o sistema acusatório e a garantia do contraditório, mas apenas viabiliza a ação penal.
Vale acrescentar que, alguns autores, levando em conta a adequação do direito processual penal à nova ordem constitucional, de feição humanista, tendo como núcleo o princípio da dignidade da pessoa humana, vão ainda mais além, afirmando que a justa causa não seria apenas o lastro probatório mínimo apto a embasar a ação penal, mas que seria "provas preliminares suficientes para a probabilidade de condenação efetiva" (FEITOZA, 2010, p. 256).
Deveriam, deste modo, essas provas ser capazes de levar a uma condenação do réu, sob pena deste ser submetido, vexatória e injustamente, a um processo que muito provavelmente não chegará a uma condenação. Destituído, assim, de efetividade.
Encabeçando essa linha de pensamento, cabe aqui transcrever algumas palavras da lição do professor Denilson Feitoza (2010, p. 254. e 256):
O processo penal não pode se prestar a ser um lugar de retórica. A simples instauração de um processo penal gera conseqüências graves para a liberdade do réu. Para exemplificar, o réu pode estar sujeito a buscas domiciliares, conduções coercitivas, prisão temporária, prisão preventiva, recolhimento à prisão para apelar etc. Uma viagem programada para outro estado ou país pode acabar acarretando uma prisão preventiva do réu, pelo simples fato de a autoridade competente não ter tido ciência de que se tratava de uma viagem corriqueira. A simples mudança de residência para outro estado também pode ter o mesmo resultado.
Pela perspectiva probatória, podemos dizer que deve haver provas preliminares suficientes para a probabilidade de condenação efetiva. [...]. Por esse ângulo, a tônica está sobre as "provas", cuja finalidade é formar a convicção de probabilidade de condenação efetiva. Pela perspectiva condenatória, a probabilidade de condenação efetiva deve estar baseada em provas preliminares. A tônica, aqui, está sobre a probabilidade condenatória.
Prosseguindo, a justa causa, em síntese, segundo o entendimento mais tradicional, deve indicar indícios da autoria e da materialidade já no momento da propositura da ação. Deve haver a prova apta a apontar no sentido da existência do crime, sob pena de estar sendo o acusado processado por algo que nem sequer sabe ser ou não um ilícito penal.
O próprio Código de Processo Penal prevê, em alguns dispositivos (v. art. 12. e 46, parágrafo 1º) a necessidade de base para a denúncia, estando claro que esta base é probatória.
A propósito, vale conferir o art. 18. do CPP:
Art. 18. Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia. (o destaque é nosso).
Ademais, a nossa jurisprudência pátria é repleta de julgados que já consagraram este elemento, vejam-se ilustrativamente os seguintes:
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 155 C/C ART. 14, II DO CP. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA. LASTRO PROBATÓRIO MÍNIMO. INEXISTÊNCIA.
I – [...]
II - Assim, no processo penal, a exordial acusatória deve vir acompanhada de um fundamento probatório mínimo apto a demonstrar, ainda que de modo indiciário, a efetiva realização do ilícito penal por parte do denunciado. Se não houver uma base empírica mínima a respaldar a peça vestibular, de modo a torná-la plausível, inexistirá justa causa a autorizar a persecutio criminis in iudicio. Tal acontece, como in casu, quando a situação fática não está suficientemente reconstituída.
III - No presente caso, imputa-se ao paciente, na proemial acusatória, um crime de furto tentado. Contudo, tal acusação é rechaçada pelo acusado, a vítima não o reconheceu como sendo o autor dos fatos, e, além do mais, os policiais que teriam efetuado sua prisão e seriam as únicas testemunhas, sequer foram ouvidos no inquérito policial. Tudo a evidenciar, portanto, a ausência de justa causa. Ordem concedida.
(HC 91614 MG; 2007/0232167-9; Relator(a): Ministro FELIX FISCHER; Julgamento: 10/12/2007; Órgão Julgador: T5 - QUINTA TURMA; Publicação: DJ 26.05.2008 p. 1). (grifo nosso).
PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. AÇÃO PRIVADA. INJÚRIA. FALTA DE JUSTA CAUSA. LASTRO PROBATÓRIO MÍNIMO. AUSÊNCIA.
I - A queixa-crime, embora descreva conduta típica, não se encontra acompanhada do mínimo embasamento probatório apto a demonstrar, ainda que de modo indiciário, a efetiva realização do fato típico por parte da querelada.
II - Sem que haja o mínimo lastro probatório a acompanhar a exordial acusatória, não há justa causa autorizativa da instauração da persecução penal. (Precedentes) Recurso provido.
(RHC 14235 RS 2003/0045666-0; Relator(a): Ministro FELIX FISCHER; Julgamento: 15/12/2003; Órgão Julgador: T5 - QUINTA TURMA; Publicação: DJ 09.02.2004 p. 192. RT vol. 826. p. 535). (destaque nosso).
É nessa linha de raciocínio que deve ser encarada a justa causa como condição da ação no processo penal, justamente como uma base mínima de provas capaz de viabilizar o regular exercício do direito de ação.
Veja-se, adiante, a aplicação prática desta conceituação na seara dos crimes contra a ordem tributária.
3.2. Do prévio esgotamento da via administrativa fiscal como a própria justa causa (materialidade do crime) para a persecução penal dos delitos contra a ordem tributária
O propósito do presente subitem é apenas deixar claro que a jurisprudência e a doutrina majoritária entendem que a fase administrativa aqui exaustivamente debatida é necessária para a caracterização da própria materialidade do delito fiscal, constituindo, desta forma, a sua justa causa.
Afirma-se isto pelo fato de que, segundo foi acima analisado, o art. 1º da lei federal nº 8.137/90 destaca que para a consumação da infração penal por ela prevista de haver uma "supressão" ou "redução" indevida do tributo, por intermédio de uma – no mínimo – das cinco condutas previstas em seus incisos.
Ocorre que o Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966), em seu art. 142, atribuiu à autoridade administrativa competente, em caráter privativo, o lançamento tributário.
Desta feita, se apenas este agente público pode efetuar este procedimento tributário, como se poderia afirmar se um determinado tributo é ou não devido? Ademais, como saber se, sendo a exação legítima, teria ou não havido a sua supressão ou redução? Todas essas conclusões apenas poderiam ser alcançadas através do procedimento fiscal anterior, que, ressalte-se, é de competência privativa da autoridade administrativa fiscal.
As infrações meramente tributárias e as penais tributárias são, em sua essência, muito semelhantes. A diferença reside no fato da maior gravidade de uma perante a outra, da maior lesão ocasionada ao bem jurídico protegido de uma frente à outra, o que acarretou como consequência uma maior ou menor reprimenda por parte do aparelhamento estatal, utilizando-se da força do Direito Penal nas hipóteses que o legislador considerou verdadeiramente necessária.
Sobre o tema, interessantes são as palavras do Ministro do Superior Tribunal de Justiça Napoleão Nunes Maia Filho (2003, p. 132. e 138):
É inevitável a coincidência entre o ilícito fiscal e a materialidade do crime contra a ordem tributária, pois, se assim não for, poder-se-á chegar ao absurdo de dizer que poderá ter havido crime (de sonegação, por exemplo), mesmo que não tenha havido a falta de recolhimento do tributo devido; ora, é evidente que uma coisa (o crime) depende ontologicamente da outra (o ilícito fiscal).
............................................................................................
A questão, como se vê, veio a ser enfrentada e decidida como se fosse relativa à condição de procedibilidade da ação penal, quando na verdade o seu verdadeiro conteúdo diz respeito à materialidade do crime contra a ordem tributária, que somente se define quando se formula a declaração administrativo-fiscal da sua existência. (grifo nosso).
Destaque-se ainda que as afirmações aqui presentes receberam a adesão maciça da jurisprudência dos tribunais superiores, valendo-se destacar, preliminarmente, o teor dos seguintes julgados:
HABEAS CORPUS. CRIME TRIBUTÁRIO. PENDÊNCIA DE PROCESSO ADMINISTRATIVO. AUSÊNCIA DE CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL.
A sonegação fiscal, sendo crime material, somente se consuma com a constituição definitiva do crédito tributário. Demonstrada, no caso, a existência de processo administrativo tributário pendente de decisão definitiva, não há justa a causa à ação penal. Ordem concedida.
(HC 91725 SP; Relator(a): Min. EROS GRAU; Julgamento: 10/11/2009; Órgão Julgador: Segunda Turma; Publicação: DJe-223 DIVULG 26-11-2009 PUBLIC 27-11-2009 EMENT VOL-02384-02 PP-00330). (destaque nosso).
QUESTÃO DE ORDEM NA AÇÃO PENAL. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. AUSÊNCIA DE CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO: IMPEDIMENTO DA PERSECUÇÃO PENAL DOS CRIMES MATERIAIS CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. PRECEDENTES. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ANULAÇÃO DA DECISÃO DE RECEBIMENTO DA DENÚNCIA.
1. A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que a ausência de constituição definitiva do crédito tributário impede a persecução penal dos crimes materiais contra a ordem tributária. Precedentes.
2. [...]
3. Questão de ordem resolvida para trancar a ação penal.
(AP-QO 422 SP; Relator(a): CÁRMEN LÚCIA; Julgamento: 27/03/2008; Órgão Julgador: Tribunal Pleno; Publicação: DJe-070 DIVULG 17-04-2008 PUBLIC 18-04-2008 EMENT VOL-02315-01 PP-00012). (grifo nosso).
O que se pretende reforçar e deixar claro neste trabalho é que não pode a instituição do Ministério Público ser utilizada como um mero órgão arrecadador de tributos, exercendo as atribuições privativas de uma autoridade fiscal e banalizando o processo penal.
Não pode o cidadão contribuinte ter sua liberdade afrontada desta maneira, sem nem mesmo ter a certeza de que a suposta conduta pela qual está sendo acusado corresponde a um ilícito tributário, quem dirá a um ilícito penal.
O ordenamento jurídico pátrio, por se tratar de um sistema, deve guardar uma coerência lógica entre os seus diversos ramos normativos, não se podendo, por amor a uma suposta aplicação teórica destituída de praticidade, se afirmar, cegamente, que a independência entre as instâncias administrativa e penal autorizaria uma atuação precipitada do ente ministerial.
Como acima já foi afirmado pelo professor Denilson Feitoza (2010, p. 254. e 256), a persecução criminal envolve um dos bens mais valiosos do cidadão que é a liberdade, não podendo esta ser amesquinhada a ponto de o Estado a ameaçá-la sem uma causa justa para isso, com a finalidade de cobrar os seus tributos.
Todas as facetas do poder estatal possuem limites e estes residem justamente na razão de ser de uma sociedade organizada: a proteção à dignidade da pessoa humana e aos direitos humanos fundamentais. Deve, pois, haver uma maior racionalização na utilização da severa ferramenta de perseguição penal.
Ressalte-se, por fim, que o presente assunto será minudenciado no capítulo subseqüente, quando o tema da exigência do prévio exaurimento da via administrativa fiscal para a instauração do procedimento penal será analisado em conjunto com um comparativo da evolução jurisprudencial.
São esses, sucintamente, os conceitos de Direito Penal que se pretendia que fossem destacados.
4. DA NECESSIDADE DO PRÉVIO EXAURIMENTO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO FISCAL COMO CONDIÇÃO PARA A PERSECUÇÃO PENAL PELOS CRIMES MATERIAL DESTACADOS NA LEI Nº 8.137/90 – UMA VISÃO DO TEMA À LUZ DE ALGUMAS RECENTES DECISÕES DOS TRIBUNAIS SUPERIORES
4.1. Uma breve evolução teórica do tema
Num primeiro momento, cumpre salientar que o tema objeto deste artigo científico se trata de uma discussão já antiga no Direito.
Abordando o assunto, o art. 7º, parágrafo 1º da Lei nº 4.729/65 (BRASIL, 1965) dispunha: Se os elementos comprobatórios forem suficientes, o Ministério Público oferecerá, desde logo, denúncia.
Interpretando o supramencionado dispositivo legal, o Supremo Tribunal Federal, ainda na década de 70, em reiterados julgamentos, vinha estabelecendo que as alegações quanto à falta de justa causa ou de condição de procedibilidade nos crimes de sonegação fiscal, considerando a inexistência da finalização do processo administrativo fiscal prévio não poderiam prosperar, visto que a persecução penal de tais crimes se faria por intermédio de uma ação penal pública incondicionada.
Com base nessa premissa, denegou inúmeros Habeas Corpus ali impetrados, destacando que a eventual inexistência de indícios de materialidade seria devidamente aferida na fase de instrução do procedimento penal iniciado.
Ilustrativamente, podemos apontar a ementa de alguns pronunciamentos que seguiram essa linha de pensamento, vejamos:
Delito de sonegação fiscal definido no art. 1º, incisos II e III da Lei 4.729/65. Infrutíferas são as alegações de falta de justa causa e extinção de punibilidade. Irrelevância de irregularidade no inquérito policial. Recurso ordinário a que se nega provimento
(STF; RHC 48.445 de 3 de novembro de 1970).
HABEAS CORPUS. Indiciamento em inquérito policial. Apuração de fato que, em tese, constitui crime. Inexistência de constrangimento ilegal. Sonegação fiscal. O fato de não achar-se esgotada a instância administrativa não impede que se façam desde logo, investigações sobre o delito noticiado. Recurso não provido.
(STF; RHC nº 50.522; 14 de novembro de 1972).
Crime de sonegação fiscal. A apuração do débito fiscal, na instância administrativa, não constitui condição objetiva de punibilidade. Precedentes do Supremo Tribunal. Recurso conhecido e provido.
(STF; Recurso Extraordinário Criminal nº 77.945; 30 de abril de 1974).
PENAL. Sonegação fiscal. Ação penal por crime de sonegação fiscal é publica incondicionada. A representação, aque alude o art. 494, parágrafo 1º do Decreto Estadual paulista nº 5.410, de 30-12-74, equivale a mera comunicação da autoridade, sem significado processual penal, constituindo simples regra de conduta administrativa. A exaustão do prazo de 15 dias fixado nesse dispositivo não tem o efeito sobre a viabilidade dos procedimentos policial ou judicial conseqüentes.
(STF; Recurso de Habeas Corpus nº 56.600-6; 29 de setembro de 1978).
Esse posicionamento, posteriormente, restou estabelecido no enunciado nº 609 das Súmulas do Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 1984), cuja aprovação ocorreu na sessão plenária do dia 17 de outubro de 1984, possuindo o seguinte teor: é pública incondicionada a condenação por crime de sonegação fiscal.
Essa tendência inicial, como já destacado na parte introdutória, recebeu inclusive o apoio de inúmeros doutrinadores, podendo ser destacado, em acréscimo aos ensinamentos do já mencionado professor Andreas Eisele, a lição de Edmar Oliveira Andrade Filho (1997, p. 146):
O art. 15. da Lei nº 8.137/90 consigna que a ação penal, nos crimes contra a ordem tributária, é pública, mas omite a qualificação de condicionada ou incondicionada.
Por atentarem contra o patrimônio da União, Estados e Municípios, a ação penal, em tais circunstâncias, será pública incondicionada, porquanto a lei não exige, expressamente, a representação do ofendido para que a mesma tenha início, na forma do art. 24. do Código de Processo Penal.
O próprio professor Andreas Eisele (1998, p. 193), contudo, argumenta que quando o fato debatido no procedimento administrativo fiscal fosse relevante a ponto de poder acarretar a própria declaração de inexistência da obrigação tributária, a melhor solução para o caso não seria considerar a fase prévia como condição de procedibilidade da ação penal.
Segundo ele, a saída ideal poderia ser alcançada por meio da aplicação do art. 93. do Código de Processo Penal, que possibilita ao magistrado suspender o feito criminal quando estiver pendente uma questão prejudicial capaz de influenciar no resultado do julgamento.
Ocorre que, a despeito do caminho inicialmente percorrido pela doutrina e pela jurisprudência, outra linha de pensamento ganhou força no meio jurídico, tendo sido traçado um raciocínio paralelo ao consubstanciado no enunciado n. 609. das súmulas do Supremo Tribunal Federal.
4.2 O surgimento do artigo 83 da lei federal nº 9.430/96 e o questionamento acerca da mitigação da independência das instâncias administrativa e penal – Da consolidação da jurisprudência dos tribunais superiores no sentido da exigência da constituição definitiva do crédito tributário para o início da ação penal
Em 27 de dezembro de 1996, nasceu a lei federal nº 9.430/96 (BRASIL, 1996), dispondo sobre modificações na legislação tributária federal, sobre contribuições para a seguridade social, sobre o procedimento administrativo de consulta, dentre outras providências.
Junto com a novidade instituída pelo seu artigo 83, inúmeros outros questionamentos surgiram abordando o real alcance deste dispositivo e sobre a sua influência na consagrada independência então existente entre as esferas administrativa e penal.
Vejamos os termos literais da norma (BRASIL, 1996):
Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária definidos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, será encaminhada ao Ministério Público após proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente.
Muitos doutrinadores argumentaram que este texto havia produzido uma clara mitigação da independência das instâncias administrativa e penal, uma vez que a citada representação fiscal apenas poderia ser encaminha após a decisão final na esfera administrativa sobre a exigência fiscal do crédito tributário.
Sobre a temática, Alessandro Prado Lemos (2010) destacou:
A referida norma foi objeto de diversas e tormentosas discussões, em relação ao seu alcance, surgiram duas posições ao referido artigo: a primeira no sentido de que a norma em comento estabelecia dependência entre as instâncias administrativa e penal (predominantemente doutrinária); e a segunda previa que a norma não estabelecia tal dependência (predominantemente jurisprudencial).
Sob a alegação de que a dependência entre as duas instâncias violaria o art. 129, I da Constituição Federal de 1988, que teria previsto a ação penal pública como privativa do Ministério Público, nos termos da lei, o Procurador Geral da República ajuizou a ADI 1571-1 perante o Supremo Tribunal Federal.
A Corte Suprema, por sua vez, julgou a ação improcedente, alegando, em síntese, que o artigo sob exame é direcionado às autoridades fiscais e não aos membros do Ministério Público, podendo este ofertar a sua denúncia independentemente da representação fiscal, desde que tenha tomado conhecimento do prévio exaurimento do procedimento administrativo fiscal por outros meios.
Vejamos como ficou ementado o acórdão final da ADI 1571-1:
Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Art. 83. da Lei no 9.430, de 27.12.1996. 3. Argüição de violação ao art. 129, I da Constituição. Notitia criminis condicionada "à decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário". 4. A norma impugnada tem como destinatários os agentes fiscais, em nada afetando a atuação do Ministério Público. É obrigatória, para a autoridade fiscal, a remessa da notitia criminis ao Ministério Público. 5. Decisão que não afeta orientação fixada no HC 81.611. Crime de resultado. Antes de constituído definitivamente o crédito tributário não há justa causa para a ação penal. O Ministério Público pode, entretanto, oferecer denúncia independentemente da comunicação, dita "representação tributária", se, por outros meios, tem conhecimento do lançamento definitivo. 6. Não configurada qualquer limitação à atuação do Ministério Público para propositura da ação penal pública pela prática de crimes contra a ordem tributária. 7. Improcedência da ação.
A jurisprudência dos tribunais superiores, todavia, foi sendo estabelecida no sentido da efetiva necessidade de que o tributo houvesse sido tido como definitivamente devido no âmbito administrativo.
Foi deduzido que, antes desse momento preliminar, não existiria sequer tipicidade penal, já que, nos termos do artigo 142 do Código Tributário Nacional, a competência para a promoção do lançamento era privativa da autoridade administrativa.
E se apenas a esta autoridade caberia promover o lançamento tributário, o tributo apenas poderia ser considerado devido após a finalização deste procedimento administrativo fiscal, sendo, deste modo, incabível se falar na "redução" ou "supressão" do tributo previstas no art. 1º da lei nº 8.137/90 antes deste momento.
Assim, qualquer procedimento penal iniciado antes dessa fase não seria lícito, quer seja um inquérito policial, quer seja a própria ação penal.
Ora, se não havia a própria tipicidade material, o inquérito policial e a ação penal iniciados seriam prematuros, por ausência de justa causa.
Vejamos o que afirma o art. 142. do Código Tributário Nacional:
Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível. (o destaque é nosso).
O professor Ricardo Alexandre (2009, p. 352), ao tratar do assunto da competência para a promoção do lançamento tributário, traz valorosas lições ao temas em debate, aduzindo:
Consta do art. 142. do CTN que a competência para o lançamento é da "autoridade administrativa". O Código não define qual a autoridade administrativa possui tal poder legal, deixando para a lei de cada ente político a incumbência de fazê-lo.
(...)
A exclusividade da competência para a realização do lançamento vincula até mesmo o juiz, que não pode lançar, e tampouco corrigir, lançamento efetuado pela autoridade administrativa. Reconhecendo algum vício no lançamento realizado, deve o juiz proclamar-lhe a nulidade, cabendo à autoridade administrativa competente, se for o caso, novamente constituir o crédito.
Este é um dos fundamentos que justifica o entendimento do Supremo Tribunal Federal segundo o qual não se pode propor ação penal por crime de sonegação fiscal antes da conclusão do procedimento de lançamento (término do processo administrativo porventura instaurado), pois o juiz não tem competência para decidir acerca da existência ou não do crédito tributário cuja sonegação é alegada.
(o destaque é nosso).
Dessa forma, conclui-se que, segundo a própria doutrina tributarista, exemplificada nas palavras de Ricardo Alexandre, a consumação de uma das formas dos crimes materiais contra a ordem tributária apenas ocorrerá quando a autoridade competente chegar à conclusão, por meio de um processo administrativo próprio, que o tributo era, de fato, devido. Antes disso, qualquer instrumento penal iniciado será arbitrário e constrangerá ilegalmente o acusado.
O professor Hugo de Brito Machado (2008, p. 498), por sua vez, complementa, destacando que entendimento contrário ao que aqui vem sendo explanado não contribui para a boa formação de um Estado Democrático de Direito, já que poderia ser presenciada a anacrônica situação de um indivíduo ser condenado judicialmente pela prática de um crime contra a ordem tributária relacionado a um tributo que a própria administração tributária pode vir a considerar indevido.
Nesse sentido, em julgado paradigmático sobre a matéria – Habeas Corpus 81.611/ DF – Distrito Federal – o Supremo Tribunal Federal sedimentou seu entendimento, tendo sido fielmente seguido pelo Superior Tribunal de Justiça.
Vale conferir, na íntegra, como ficou ementado o acórdão desse julgado:
I. Crime material contra a ordem tributária (L. 8137/90, art. 1º): lançamento do tributo pendente de decisão definitiva do processo administrativo: falta de justa causa para a ação penal, suspenso, porém, o curso da prescrição enquanto obstada a sua propositura pela falta do lançamento definitivo. 1. Embora não condicionada a denúncia à representação da autoridade fiscal (ADInMC 1571), falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da L. 8137/90 - que é material ou de resultado -, enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de lançamento, quer se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo de tipo. 2. Por outro lado, admitida por lei a extinção da punibilidade do crime pela satisfação do tributo devido, antes do recebimento da denúncia (L. 9249/95, art. 34), princípios e garantias constitucionais eminentes não permitem que, pela antecipada propositura da ação penal, se subtraia do cidadão os meios que a lei mesma lhe propicia para questionar, perante o Fisco, a exatidão do lançamento provisório, ao qual se devesse submeter para fugir ao estigma e às agruras de toda sorte do processo criminal. 3. No entanto, enquanto dure, por iniciativa do contribuinte, o processo administrativo suspende o curso da prescrição da ação penal por crime contra a ordem tributária que dependa do lançamento definitivo.
(grifo nosso).
Como se percebe, neste mesmo pronunciamento, a nossa Corte Constitucional tratou de esclarecer que, enquanto o procedimento administrativo fiscal estiver pendente, a prescrição penal não irá correr, uma vez que não teria sentido esta não ter seu transcurso obstado mesmo não podendo o órgão do Ministério Público sequer agir.
Tal posicionamento, inclusive, se amolda perfeitamente ao que dispõe o art. 111, I do nosso Código penal: A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr: I – do dia em que o crime se consumou; (...).
Compete aqui transcrever alguns pronunciamentos do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto:
HABEAS CORPUS - PENAL - CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA - DENÚNCIA - TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL - PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO FISCAL INCONCLUSO. CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE - INOCORRÊNCIA. ORDEM CONCEDIDA.
1. Carece de justa causa a ação penal quanto ao crime contra a ordem tributária, caso a denúncia não esteja lastreada em decisão administrativa conclusiva concernente à investigação de sonegação fiscal.
2. Concedida a ordem para trancar a ação penal.
(Processo: HC 48063 SP 2005/0155088-6; Relator(a): Ministra JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG); Julgamento: 22/08/2007; Órgão Julgador: T5 - QUINTA TURMA; Publicação: DJ 24.09.2007 p. 329). (o destaque é nosso).
HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. NÃO-INSTAURAÇÃO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO-FISCAL. PRESCRIÇÃO DOS CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS NO ÂMBITO ADMINISTRATIVO. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL. ORDEM CONCEDIDA.
1. A falta de decisão definitiva do processo administrativo, em tema de crimes contra a ordem tributária, porque condição objetiva de punibilidade, na luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, impede a propositura da ação penal, com suspensão do prazo prescricional.
2. Não há justa causa para a persecução penal relativamente ao delito tipificado no artigo 1º, inciso I, da Lei nº 8.137/90, se se encontravam prescritos, acaso existentes, os débitos tributários, de modo a impedir a própria instauração do procedimento administrativo fiscal.
3. Ordem concedida.
(Processo: HC 86864 CE 2007/0162405-8; Relator(a): Ministro HAMILTON CARVALHIDO; Julgamento: 30/10/2007; Órgão Julgador: T6 - SEXTA TURMA; Publicação: DJe 22/04/2008). (grifo nosso).
HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. DELITO MATERIAL. PROCEDIMENTO INICIADO SEM A CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DE CRÉDITO DECORRENTE DE TRIBUTO. PROCEDIMENTO QUE SE CINGE AO ILÍCITO DISPOSTO NO ART. 1º DA LEI 8.137/90. INTERRUPÇÃO DO PROCESSO PERTINENTE À INFRAÇÃO DE SONEGAÇÃO FISCAL QUE SE IMPÕE.
1. O trancamento de ação penal, em sede de habeas corpus, somente deve ser acolhido se restar, de forma indubitável, a ocorrência de circunstância extintiva da punibilidade, de ausência de indícios de autoria ou de prova da materialidade do delito e ainda da atipicidade da conduta.
2. Constatada a falta de constituição definitiva de crédito tributário perante a esfera administrativa, condição objetiva de punibilidade com relação ao delito material inserto no art. 1º da Legislação Especial, no caso, por ausência de justa causa, impõe a interrupção do processo pertinente ao crime contra a ordem tributária. Precedentes (STF e STJ).
3. Ordem concedida para trancar ação penal.
(Processo: HC 82423 SP 2007/0101320-7; Relator(a): Ministro JORGE MUSSI; Julgamento: 24/03/2009; Órgão Julgador: T5 – QUINTA TURMA; Publicação: DJe 04/05/2009). (o destaque é nosso).
A Corte Suprema, inclusive, já teve a oportunidade de decidir que, tendo sido a denúncia ofertada antes do término do procedimento fiscal, o fato de ocorrer sua finalização ainda no transcorrer da ação penal não terá o condão de convalidar o procedimento criminal iniciado.
Vale transcrever este julgado:
HABEAS-CORPUS. PENAL TRIBUTÁRIO. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. SUPRESSÃO OU REDUÇÃO DE TRIBUTO DEVIDO (LEI 8.137/1990, ART. 1º, I e II). DENÚNCIA OFERECIDA ANTES DA CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DE CRÉDITO TRIBUTÁRIO. ANULAÇÃO POR VÍCIO FORMAL E SUBSTITUIÇÃO DO LANÇAMENTO DURANTE O CURSO DA AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. Antes da constituição definitiva do crédito tributário, não há justa causa para início da ação penal relativa aos crimes contra a ordem tributária (art. 1º da Lei 8.137/1990). Precedente do Plenário do Supremo Tribunal Federal (HC 81.611, rel. min. Sepúlveda Pertence, DJ 13.05.2005). A substituição, por novos lançamentos, dos autos de infração anulados por vício formal não convalida a ação penal ajuizada antes do lançamento definitivo, porquanto a constituição do crédito tributário projeta um novo quadro fático e jurídico para o oferecimento da denúncia. Durante a pendência do julgamento de recurso administrativo no âmbito tributário, não há o início do curso do prazo prescricional (art. 111, I, do Código Penal). Ordem de habeas-corpus concedida, para trancamento da ação penal, sem prejuízo do oferecimento de nova denúncia, com base em crédito tributário definitivamente constituído.
(HC 84345 / PR – PARANÁ; HABEAS CORPUS; Relator (a): Min. JOAQUIM BARBOSA; Julgamento: 21/02/2006; Órgão Julgador: Segunda Turma). (destaca-se).
Por fim, cumpre salientar que, como no início deste trabalho científico já restou definitivamente assentado, em 02 de dezembro de 2009 o Supremo Tribunal Federal pacificou definitivamente esse debate, editando a súmula vinculante nº 24, que possui o seguinte teor: Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.
É assim que se encontra, na atualidade, o debate jurisprudencial em torno do assunto.
Ocorre que, como adiante restará devidamente esclarecido, alguns julgamentos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça têm surgido mitigando a aplicação do entendimento acima pacificado, tudo isso em deferência às particularidades do caso concreto.
É sobre essa faceta deste pensamento jurídico que o próximo tópico tratará.
4.3. Da exigência da finalização do processo administrativo tributário para a consumação dos crimes materiais contra a ordem tributária e a sua mitigação por alguns julgados dos tribunais superiores
Contemporaneamente, o tema aqui em destaque se encontra amplamente pacificado no âmbito da jurisprudência dos tribunais superiores, havendo, inclusive, como acima já restou devidamente destacado, súmula de conteúdo vinculante do Supremo Tribunal Federal – enunciado nº 24 – sobre a temática.
Ocorre que, como naturalmente pode acontecer quando se observa o exercício da função jurisdicional – encarregada de aplicar o direito objetivo a uma situação particular – mesmo uma jurisprudência pacificamente estabelecida pode não ser integralmente aplicada a um determinado caso concreto, em decorrência de suas peculiaridades.
Tal fenômeno é perfeitamente cabível no âmbito da aplicação do Direito, uma vez que, sendo este um instrumento destinado a organizar uma sociedade estabelecida em determinado tempo, a situação fática subjacente regulada pode se modificar, devendo as normas objetivas acompanhar a evolução dos agrupamentos humanos.
No que tange ao tema sob exame, tanto o Supremo Tribunal Federal, quanto o Superior Tribunal de Justiça já tiveram a oportunidade de flexibilizar o entendimento pacificado no Habeas Corpus 81.611/ DF do STF.
A Corte Suprema, apreciando um caso no qual se discutia a possibilidade de instauração de um inquérito policial para a apuração de crimes materiais contra a ordem tributária, afirmou que o procedimento inquisitivo poderia ser validamente instaurado, neste caso, desde que tal posicionamento fosse imprescindível para a conclusão da fiscalização de uma empresa, para formalizar o pedido de quebra do seu sigilo bancário e para concluir se havia ou não débitos tributários.
Vale conferir, na literalidade, o entendimento deduzido no HC 95443/SC – STF:
HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO POLICIAL ANTES DO ENCERRAMENTO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO-FISCAL. POSSIBILIDADE QUANDO SE MOSTRAR IMPRESCINDÍVEL PARA VIABILIZAR A FISCALIZAÇÃO. ORDEM DENEGADA. 1. A questão posta no presente writ diz respeito à possibilidade de instauração de inquérito policial para apuração de crime contra a ordem tributária, antes do encerramento do procedimento administrativo-fiscal. 2. O tema relacionado à necessidade do prévio encerramento do procedimento administrativo-fiscal para configuração dos crimes contra a ordem tributária, previstos no art. 1°, da Lei n° 8.137/90, já foi objeto de aceso debate perante esta Corte, sendo o precedente mais conhecido o HC n° 81.611 (Min. Sepúlveda Pertence, Pleno, julg. 10.12.2003). 3. A orientação que prevaleceu foi exatamente a de considerar a necessidade do exaurimento do processo administrativo-fiscal para a caracterização do crime contra a ordem tributária (Lei n° 8.137/90, art. 1°). No mesmo sentido do precedente referido: HC 85.051/MG, rel. Min. Carlos Velloso, DJ 01.07.2005, HC 90.957/RJ, rel. Min. Celso de Mello, DJ 19.10.2007 e HC 84.423/RJ, rel. Min. Carlos Britto, DJ 24.09.2004. 4. Entretanto, o caso concreto apresenta uma particularidade que afasta a aplicação dos precedentes mencionados. 5. Diante da recusa da empresa em fornecer documentos indispensáveis à fiscalização da Fazenda estadual, tornou-se necessária a instauração de inquérito policial para formalizar e instrumentalizar o pedido de quebra do sigilo bancário, diligência imprescindível para a conclusão da fiscalização e, conseqüentemente, para a apuração de eventual débito tributário. 6. Deste modo, entendo possível a instauração de inquérito policial para apuração de crime contra a ordem tributária, antes do encerramento do processo administrativo-fiscal, quando for imprescindível para viabilizar a fiscalização. 7. Ante o exposto, denego a ordem de habeas corpus. (grifo nosso).
No presente feito, a fazenda de um determinado estado da federação estava fiscalizando uma sociedade empresária, quando esta lhe negou acesso a determinados documentos requisitados pela entidade estatal.
A fazenda em destaque, por sua vez, tendo concluído que os instrumentos solicitados eram indispensáveis à fiscalização do estabelecimento, requereu a instauração do inquérito policial, pois só assim conseguiria concluir a inspeção.
O Supremo Tribunal Federal, julgando o Habeas Corpus destinado a trancar o mencionado inquérito policial, concluiu que, especificamente neste caso, considerando as conjunturas fáticas, a instauração prematura do procedimento inquisitivo seria válida, já que imprescindível à finalização da fiscalização da fazenda estadual impetrada.
O Superior Tribunal de Justiça, na mesma linha, em sede de recurso ordinário em mandado de segurança, decretou a licitude de um inquérito policial instaurado com a finalidade de quebrar o sigilo bancário de investigados pela suposta prática de crimes contra a ordem tributária, falsidade ideológica e formação de quadrilha, mesmo tendo constatado a ausência do lançamento definitivo do crédito tributário.
Cabe, aqui, colacionar a ementa do RMS 26091/SP, decidido pelo Tribunal da Cidadania:
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. INQUÉRITO POLICIAL PARA APURAÇÃO DE CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA, DE FALSIDADE IDEOLÓGICA E FORMAÇÃO DE QUADRILHA. QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO AUTORIZADA JUDICIALMENTE. INVESTIGAÇÃO QUE OBJETIVA ELUCIDAR A PRÁTICA DE OUTROS DELITOS GRAVES. PRECEDENTES DO STJ. PARECER DO MPF PELO DESPROVIMENTO DO RECURSO. RECURSO DESPROVIDO.
1. Esta Corte, bem como o colendo STF, tem determinado o trancamento de Inquérito Policial que apura crimes contra a ordem tributária antes do lançamento definitivo do crédito tributário, o que conduziria à decretação de ilegalidade da ordem de quebra de sigilo bancário deferida no bojo da investigação.
2. Todavia, na hipótese, a quebra de sigilo bancário não visa a descortinar somente eventual prática do crime de sonegação fiscal, mas, e principalmente, o de falsidade ideológica e de formação de quadrilha. Nesses casos, não se afirma qualquer ilegalidade (RHC 19.083/SP, Relator o Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, DJ de 4.12.2006 e HC 48.822/SC, Rel. Min. PAULO GALLOTTI, DJe 23.06.2008).
3. Parecer do MPF pelo desprovimento do recurso.
4. Recurso desprovido.
Como se observa, a Superior Corte de Justiça levou em consideração o fato de que o inquérito policial, no caso em análise, não se destinava à apuração apenas dos crimes contra a ordem tributária, mas também e, principalmente, dos supostos delitos de formação de quadrilha e falsidade ideológica, qualificando estes, frente aos primeiros, de autônomos.
Tal qualificação foi marcante para que este egrégio tribunal decidisse que o inquérito em destaque continuasse.
Assim, o que ficou claro foi que, a despeito da consagrada orientação perfilhada pela súmula vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal, nada impede que, sopesando as circunstâncias fáticas em análise, possa o entendimento ser mitigado, tudo com a finalidade de bem adequar o direito ao caso concreto.