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Da necessidade do prévio exaurimento do procedimento administrativo fiscal como justa causa para a persecução penal pelos crimes materiais destacados na Lei nº 8.137/90.

Uma visão do tema à luz de algumas recentes decisões dos tribunais superiores

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31/12/2011 às 08:01
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3.DA CARACTERIZAÇÃO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO FISCAL PRÉVIO COMO JUSTA CAUSA E NÃO COMO CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE OU CAUSA EXTINTIVA DA PUNIBILIDADE

3.1 Do conceito da justa causa

Antes de ser aqui explicado que o processo fiscal prévio nos crimes contra a ordem tributária é a justa causa para a ação penal, adotando a posição seguida pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça Napoleão Nunes Maia Filho (2003) e pelo Supremo Tribunal Federal, deve-se conceituar este instituto.

A justa causa pode ser conceituada como uma das condições da ação no processo penal, significando o lastro probatório mínimo necessário para o exercício da ação penal.

Não significa que deva o titular do direito de ação, logo no momento da sua propositura, demonstrar cabalmente que o acusado deva, num juízo preliminar, ser condenado. Longe disso.

A justa causa consagrada pelo nosso ordenamento jurídico se traduz nos elementos probatórios capazes de demonstrar que o direito de ação está sendo regularmente exercido. Não é um suporte probatório hábil à condenação, mas sim elementos que indiquem no sentido da viabilidade do processo.

Afrânio Silva Jardim (1990, p. 147 e 148), citado por Rogério Greco (2005, p. 768), aduz:

Esse suporte probatório mínimo se relaciona com os indícios da autoria, existência material de uma conduta típica e alguma prova da antijuridicidade e culpabilidade. Somente diante de todo este conjunto probatório é que, a nosso ver, se coloca o princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal [...]. Uma coisa é constatar a existência da prova no inquérito e peças de informação e outra coisa é valorá-la, cotejá-la. É preciso deixar claro que a justa causa pressupõe um mínimo de lastro probatório, mas não prova cabal. É necessário que haja alguma prova, ainda que leve. Agora, se esta prova é boa ou ruim, isto já é questão pertinente ao exame do mérito da pretensão do autor, até porque as investigações policiais não se destinam a convencer o juiz, tendo em vista o sistema acusatório e a garantia do contraditório, mas apenas viabiliza a ação penal.

Vale acrescentar que, alguns autores, levando em conta a adequação do direito processual penal à nova ordem constitucional, de feição humanista, tendo como núcleo o princípio da dignidade da pessoa humana, vão ainda mais além, afirmando que a justa causa não seria apenas o lastro probatório mínimo apto a embasar a ação penal, mas que seria "provas preliminares suficientes para a probabilidade de condenação efetiva" (FEITOZA, 2010, p. 256).

Deveriam, deste modo, essas provas ser capazes de levar a uma condenação do réu, sob pena deste ser submetido, vexatória e injustamente, a um processo que muito provavelmente não chegará a uma condenação. Destituído, assim, de efetividade.

Encabeçando essa linha de pensamento, cabe aqui transcrever algumas palavras da lição do professor Denilson Feitoza (2010, p. 254 e 256):

O processo penal não pode se prestar a ser um lugar de retórica. A simples instauração de um processo penal gera conseqüências graves para a liberdade do réu. Para exemplificar, o réu pode estar sujeito a buscas domiciliares, conduções coercitivas, prisão temporária, prisão preventiva, recolhimento à prisão para apelar etc. Uma viagem programada para outro estado ou país pode acabar acarretando uma prisão preventiva do réu, pelo simples fato de a autoridade competente não ter tido ciência de que se tratava de uma viagem corriqueira. A simples mudança de residência para outro estado também pode ter o mesmo resultado.

Pela perspectiva probatória, podemos dizer que deve haver provas preliminares suficientes para a probabilidade de condenação efetiva. [...]. Por esse ângulo, a tônica está sobre as "provas", cuja finalidade é formar a convicção de probabilidade de condenação efetiva. Pela perspectiva condenatória, a probabilidade de condenação efetiva deve estar baseada em provas preliminares. A tônica, aqui, está sobre a probabilidade condenatória.

Prosseguindo, a justa causa, em síntese, segundo o entendimento mais tradicional, deve indicar indícios da autoria e da materialidade já no momento da propositura da ação. Deve haver a prova apta a apontar no sentido da existência do crime, sob pena de estar sendo o acusado processado por algo que nem sequer sabe ser ou não um ilícito penal.

O próprio Código de Processo Penal prevê, em alguns dispositivos (v. art. 12 e 46, parágrafo 1º) a necessidade de base para a denúncia, estando claro que esta base é probatória.

A propósito, vale conferir o art. 18 do CPP:

Art. 18. Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia. (o destaque é nosso).

Ademais, a nossa jurisprudência pátria é repleta de julgados que já consagraram este elemento, vejam-se ilustrativamente os seguintes:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 155 C/C ART. 14, II DO CP. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA. LASTRO PROBATÓRIO MÍNIMO. INEXISTÊNCIA.

I – [...]

II - Assim, no processo penal, a exordial acusatória deve vir acompanhada de um fundamento probatório mínimo apto a demonstrar, ainda que de modo indiciário, a efetiva realização do ilícito penal por parte do denunciado. Se não houver uma base empírica mínima a respaldar a peça vestibular, de modo a torná-la plausível, inexistirá justa causa a autorizar a persecutio criminis in iudicio. Tal acontece, como in casu, quando a situação fática não está suficientemente reconstituída.

III - No presente caso, imputa-se ao paciente, na proemial acusatória, um crime de furto tentado. Contudo, tal acusação é rechaçada pelo acusado, a vítima não o reconheceu como sendo o autor dos fatos, e, além do mais, os policiais que teriam efetuado sua prisão e seriam as únicas testemunhas, sequer foram ouvidos no inquérito policial. Tudo a evidenciar, portanto, a ausência de justa causa. Ordem concedida. (HC 91614 MG; 2007/0232167-9; Relator(a): Ministro FELIX FISCHER; Julgamento: 10/12/2007; Órgão Julgador: T5 - QUINTA TURMA; Publicação: DJ 26.05.2008 p. 1). (grifo nosso).

PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. AÇÃO PRIVADA. INJÚRIA. FALTA DE JUSTA CAUSA. LASTRO PROBATÓRIO MÍNIMO. AUSÊNCIA.

I - A queixa-crime, embora descreva conduta típica, não se encontra acompanhada do mínimo embasamento probatório apto a demonstrar, ainda que de modo indiciário, a efetiva realização do fato típico por parte da querelada.

II - Sem que haja o mínimo lastro probatório a acompanhar a exordial acusatória, não há justa causa autorizativa da instauração da persecução penal. (Precedentes) Recurso provido. (RHC 14235 RS 2003/0045666-0; Relator(a): Ministro FELIX FISCHER; Julgamento: 15/12/2003; Órgão Julgador: T5 - QUINTA TURMA; Publicação: DJ 09.02.2004 p. 192 RT vol. 826 p. 535). (destaque nosso).

É nessa linha de raciocínio que deve ser encarada a justa causa como condição da ação no processo penal, justamente como uma base mínima de provas capaz de viabilizar o regular exercício do direito de ação.

Veja-se, adiante, a aplicação prática desta conceituação na seara dos crimes contra a ordem tributária.

3.2 Do prévio esgotamento da via administrativa fiscal como a própria justa causa (materialidade do crime) para a persecução penal dos delitos contra a ordem tributária

O propósito do presente subitem é apenas deixar claro que a jurisprudência e a doutrina majoritária entendem que a fase administrativa aqui exaustivamente debatida é necessária para a caracterização da própria materialidade do delito fiscal, constituindo, desta forma, a sua justa causa.

Afirma-se isto pelo fato de que, segundo foi acima analisado, o art. 1º da lei federal nº 8.137/90 destaca que para a consumação da infração penal por ela prevista de haver uma "supressão" ou "redução" indevida do tributo, por intermédio de uma – no mínimo – das cinco condutas previstas em seus incisos.

Ocorre que o Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966), em seu art. 142, atribuiu à autoridade administrativa competente, em caráter privativo, o lançamento tributário.

Desta feita, se apenas este agente público pode efetuar este procedimento tributário, como se poderia afirmar se um determinado tributo é ou não devido? Ademais, como saber se, sendo a exação legítima, teria ou não havido a sua supressão ou redução? Todas essas conclusões apenas poderiam ser alcançadas através do procedimento fiscal anterior, que, ressalte-se, é de competência privativa da autoridade administrativa fiscal.

As infrações meramente tributárias e as penais tributárias são, em sua essência, muito semelhantes. A diferença reside no fato da maior gravidade de uma perante a outra, da maior lesão ocasionada ao bem jurídico protegido de uma frente à outra, o que acarretou como consequência uma maior ou menor reprimenda por parte do aparelhamento estatal, utilizando-se da força do Direito Penal nas hipóteses que o legislador considerou verdadeiramente necessária.

Sobre o tema, interessantes são as palavras do Ministro do Superior Tribunal de Justiça Napoleão Nunes Maia Filho (2003, p. 132 e 138):

É inevitável a coincidência entre o ilícito fiscal e a materialidade do crime contra a ordem tributária, pois, se assim não for, poder-se-á chegar ao absurdo de dizer que poderá ter havido crime (de sonegação, por exemplo), mesmo que não tenha havido a falta de recolhimento do tributo devido; ora, é evidente que uma coisa (o crime) depende ontologicamente da outra (o ilícito fiscal).

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A questão, como se vê, veio a ser enfrentada e decidida como se fosse relativa à condição de procedibilidade da ação penal, quando na verdade o seu verdadeiro conteúdo diz respeito à materialidade do crime contra a ordem tributária, que somente se define quando se formula a declaração administrativo-fiscal da sua existência. (grifo nosso).

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Destaque-se ainda que as afirmações aqui presentes receberam a adesão maciça da jurisprudência dos tribunais superiores, valendo-se destacar, preliminarmente, o teor dos seguintes julgados:

HABEAS CORPUS. CRIME TRIBUTÁRIO. PENDÊNCIA DE PROCESSO ADMINISTRATIVO. AUSÊNCIA DE CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL.

A sonegação fiscal, sendo crime material, somente se consuma com a constituição definitiva do crédito tributário. Demonstrada, no caso, a existência de processo administrativo tributário pendente de decisão definitiva, não há justa a causa à ação penal. Ordem concedida. (HC 91725 SP; Relator(a): Min. EROS GRAU; Julgamento: 10/11/2009; Órgão Julgador: Segunda Turma; Publicação: DJe-223 DIVULG 26-11-2009 PUBLIC 27-11-2009 EMENT VOL-02384-02 PP-00330). (destaque nosso).

QUESTÃO DE ORDEM NA AÇÃO PENAL. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. AUSÊNCIA DE CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO: IMPEDIMENTO DA PERSECUÇÃO PENAL DOS CRIMES MATERIAIS CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. PRECEDENTES. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ANULAÇÃO DA DECISÃO DE RECEBIMENTO DA DENÚNCIA.

1. A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que a ausência de constituição definitiva do crédito tributário impede a persecução penal dos crimes materiais contra a ordem tributária. Precedentes.

2. [...]

3. Questão de ordem resolvida para trancar a ação penal. (AP-QO 422 SP; Relator(a): CÁRMEN LÚCIA; Julgamento: 27/03/2008; Órgão Julgador: Tribunal Pleno; Publicação: DJe-070 DIVULG 17-04-2008 PUBLIC 18-04-2008 EMENT VOL-02315-01 PP-00012). (grifo nosso).

O que se pretende reforçar e deixar claro neste trabalho é que não pode a instituição do Ministério Público ser utilizada como um mero órgão arrecadador de tributos, exercendo as atribuições privativas de uma autoridade fiscal e banalizando o processo penal.

Não pode o cidadão contribuinte ter sua liberdade afrontada desta maneira, sem nem mesmo ter a certeza de que a suposta conduta pela qual está sendo acusado corresponde a um ilícito tributário, quem dirá a um ilícito penal.

O ordenamento jurídico pátrio, por se tratar de um sistema, deve guardar uma coerência lógica entre os seus diversos ramos normativos, não se podendo, por amor a uma suposta aplicação teórica destituída de praticidade, se afirmar, cegamente, que a independência entre as instâncias administrativa e penal autorizaria uma atuação precipitada do ente ministerial.

Como acima já foi afirmado pelo professor Denilson Feitoza (2010, p. 254 e 256), a persecução criminal envolve um dos bens mais valiosos do cidadão que é a liberdade, não podendo esta ser amesquinhada a ponto de o Estado a ameaçá-la sem uma causa justa para isso, com a finalidade de cobrar os seus tributos.

Todas as facetas do poder estatal possuem limites e estes residem justamente na razão de ser de uma sociedade organizada: a proteção à dignidade da pessoa humana e aos direitos humanos fundamentais. Deve, pois, haver uma maior racionalização na utilização da severa ferramenta de perseguição penal.

Ressalte-se, por fim, que o presente assunto será minudenciado no capítulo subseqüente, quando o tema da exigência do prévio exaurimento da via administrativa fiscal para a instauração do procedimento penal será analisado em conjunto com um comparativo da evolução jurisprudencial.

São esses, sucintamente, os conceitos de Direito Penal que se pretendia que fossem destacados.

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Sobre o autor
Saulo Gonçalves Santos

Procurador do Município de Caucaia (CE). Advogado. Pós-graduando em Direito Tributário pela Faculdade Sete de Setembro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Saulo Gonçalves. Da necessidade do prévio exaurimento do procedimento administrativo fiscal como justa causa para a persecução penal pelos crimes materiais destacados na Lei nº 8.137/90.: Uma visão do tema à luz de algumas recentes decisões dos tribunais superiores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3104, 31 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20751. Acesso em: 26 abr. 2024.

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