As questões sociais ganharam especial atenção por parte dos responsáveis pela elaboração do Código Civil de 2002. E também os negócios jurídicos foram encarados com os olhos voltados para os seus aspectos sociais.
Assim é que, quando das disposições finais e transitórias, foi inserida a norma do art. 2.035 e seu respectivo parágrafo único, com a específica atenção ao lado social dos negócios e atos jurídicos. Eis a redação dos referidos dispositivos legais:
"Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.
Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos."
O caput do artigo acima transcrito, diante de uma simples leitura inicial, já evidencia uma série de questões que caberiam perfeitamente no bojo de uma abordagem em separado, tamanha a complexidade dos temas polêmicos ali estampados.
No entanto, a preocupação no breve estudo que agora se faz restringir-se-á a algumas questões apresentadas no parágrafo único do art. 2.035, mormente sobre a retroatividade e constitucionalidade de tal norma, temas que também não vem encontrando águas tranqüilas em sua interpretação.
Os estudos desenvolvidos sobre o referido dispositivo legal sempre destacam aquele que seria o ponto principal do problema: é possível a retroação da norma contida da lei civil sem que tal fato agrida o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, garantias constitucionais estampadas no art. 5º, inciso XXXVI?
No entanto, a par de toda a discussão que vem sendo travada desde a entrada em vigor do atual Código Civil, um ponto parece não estar merecendo a devida atenção por grande parte dos doutrinadores – o que, de forma paradoxal, poderia fazer com que toda a discussão (ou quase sua totalidade) restasse desnecessária. Trata-se de saber se a regra contida no art. 2.035, parágrafo único trouxe efetivamente alguma inovação, a ponto de se falar em retroatividade, ou se, em verdade, se está diante de uma norma que apenas vem a confirmar preceitos já vigentes no ordenamento jurídico pátrio.
Todavia, em atenção a tudo o que já se debateu sobre o tema, mostra-se importante ser aqui feito em resgate do ponto que vêm causando certo reboliço na doutrina, qual seja, da possibilidade da retroação da norma do art. 2.035, parágrafo único, do CC, sem que isso afronte às garantias constitucionais do direito adquirido e do ato jurídico perfeito.
O primeiro aspecto envolve destacar a questão relativa à possibilidade de se ter a retroatividade de uma determinada norma, ainda que tal fato signifique atingir tão somente os efeitos de um negócio jurídico celebrado sob a égide de uma legislação anterior.
Sobre o tema, diversos foram os estudos já desenvolvidos, uns na defesa da impossibilidade de retroatividade em tal situação, outros, em sentido contrário, defendendo a hipótese de retroatividade, mormente quando se estiver diante de normas que envolvam preceitos de ordem pública e aspectos sociais.
Sempre visto como uma referência doutrinária nos debates travados acerca do direito intertemporal, Paul Roubier, citado por Eduardo Espinola e Eduardo Espinola Filho, destaca a absoluta impossibilidade de uma lei nova incidir sobre negócios jurídicos celebrados com base na antiga legislação, mesmo que a nova legislação venha a trazer regras de ordem pública (1943, p. 321).
No mesmo sentido seguiu o Supremo Tribunal Federal, no já clássico julgamento da ADIN nº 493-0/DF, cujo tema central envolvia a declaração de inconstitucionalidade da lei que instituiu a TR, em substituição da OTN e da UPC, como índice de atualização dos saldos devedores dos contratos celebrados com órgãos integrantes do Sistema Financeiro de Habitação.
Em tal julgamento – que, aliás, serviu de base para idêntico posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, quando entendeu que a legislação do plano real não poderia atingir os contratos firmados anteriormente à sua vigência – o Supremo Tribunal Federal, em acórdão da lavra do Min. Moreira Alves, sustentou que:
"Se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa (retroatividade mínima) por que vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado. O disposto no art. 5º, XXXVI, da CF, se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção ente lei de Direito Público e lei de Direito Privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva. Precedente do STF. Ocorrência, no caso, de violação ao direito adquirido" (ADIn nº 493-0/DF, relator Ministro Moreira Alves, DJU 04.09.92.).
Todavia, outras vozes igualmente importantes surgem em sentido oposto. Na verdade, são posicionamentos que sustentam, de forma geral, a necessidade de se avaliar – para se saber da possibilidade ou não da retroatividade de uma lei – a finalidade social da norma.
Nesse sentido segue, dentre outros, Carvalho Santos (1980, p. 51), que destaca que "onde quer que haja necessidade, por interesse da ordem superior, de sacrificar os direitos de outrem, não se pode negar a possibilidade da lei ter efeito retroativo, ainda que vá ferir direitos adquiridos, ato jurídico perfeito ou coisa julgada."
Tendo o julgamento antes referido como fundamento, Antônio Jeová dos Santos (2002, p. 310) defende a inconstitucionalidade tanto do caput do art. 2.035, como do seu respectivo parágrafo único, afirmando que "a segunda parte do art. 2.035 do Código Civil é incompatível com a Constituição e, portanto, não irá sobreviver, nem merecer aplicação dos juízes e tribunais", complementando ainda que todos os contratos celebrados sob a vigência do "Código de 1916 (excetuam-se aqueles abrigados pelo Código de Defesa do Consumidor), mesmo que de trato sucessivo, terão aplicação em vista da lei anterior e não do Código novo"
No entanto, como foi anteriormente salientado, e com a devida vênia daqueles que pensam em sentido contrário, parece que a questão não vem sendo enfrentada sob a ótica adequada. Em verdade, como bem salienta a Min. Fátima Nancy Andrighi, é preciso maior reflexão sobre o tema, para que, com isso, seja possível "perceber que a discussão a respeito dessa disposição não se coloca, necessariamente, em termos de irretroatividade, ou de retroatividade" (2205, p. 4-5).
Com efeito, apenas pode se falar em retroatividade ou não de uma lei que esteja, de alguma forma, alterando dispositivos legais pré-existentes, ou regulando situações jurídicas ou institutos até então inéditos no ordenamento jurídico do país. Todavia, tais hipóteses não são encontradas no caso em exame.
Sobre o ponto, muito pertinentes se mostram, uma vez mais, as palavras da Min. Nancy Andrighi (2005, p. 5):
"Com efeito, os princípios cuja aplicação aos contratos antigos é determinada pelo art. 2.035 do Código Civil de 2002 – notadamente o princípio da função social dos contratos – não nasceram especificamente no momento em que se editou esse diploma legal. O Código de 2002, na verdade, nada mais fez que codificar princípios que já vinham sendo reconhecidos por toda a jurisprudência antes de sua edição, como corolários de outros princípios constitucionais, como o da igualdade e o da função social da propriedade (respectivamente, art. 5º, caput e, inciso XXIII, da Constituição Federal)."
Em interessante digressão a respeito da função social da propriedade, Ana Rita Vieira Albuquerque (2002, p. 51) destaca que "o embrião da visão social da propriedade foi introduzida em nossa Constituição em 1934 e desde então vem sendo modificada a visão liberal da Carta de 1824, com sensível alteração do conteúdo mesmo do direito de propriedade". E complementa a autora, dizendo que "com a Constituição de 1988, a propriedade transmudou seu caráter constitucional individualista em um instituto de natureza social".
Dessa forma, a função social da propriedade, há bastante tempo, vem sendo prevista – mesmo que de forma implícita – no ordenamento pátrio, sendo certo que, com a Constituição da República de 1988, a mesma foi efetivamente positivada, nos termos do art. 5º, XXIII.
E a função social do contrato, por sua vez, também não se apresenta como uma novidade introduzida pelo Código Civil de 2002, na medida em que se mostra como corolário dos princípios da função social da propriedade e da isonomia.
Em artigo destacando o interesse social no direito privado, destaca Arnoldo Wald (2005, p. 43) que:
"a função social do contrato e a aplicação do princípio da boa-fé não devem, pois, ser interpretadas exclusiva ou principalmente como proteção especial da parte economicamente mais fraca. Significam a manutenção do equilíbrio contratual e o atendimento dos interesses superiores da sociedade".
Destarte, as funções sociais da propriedade e do contrato não foram introduzidas no ordenamento por meio do Código Civil. Ao contrário, são princípios que já existiam, e que já nortearam – ou deveriam ter norteado – os negócios celebrados antes mesmo da vigência do Código Civil de 2002.
Destaca José Renato Nalini (2007, p. 76) que não há mais espaço atualmente para que a vontade individual reine absoluta. Assim é que, segundo o autor, "a liberdade de contratar, se não foi subtraída à instância da individualidade, foi ao menos debilitada. Subordina-se à função social".
Com efeito, a importância do aspecto social nas convenções celebradas entre as pessoas é uma tendência bastante evidente, e que há muito é detectada no em vários ramos do direito – citando-se, apenas a título de exemplo, as relações trabalhistas e consumeristas – sempre com o intuito de se promover a correção das distorções existentes, para que se possa alcançar efetivamente a realização da justiça.
Em conclusão: com a vigência do art. 2.035, parágrafo único do Código Civil, não houve, portanto, nenhuma inovação no ordenamento jurídico pátrio. O referido dispositivo legal nada mais fez do que repisar e positivar certos princípios, que já se encontravam presentes no sistema. E se assim o fez, nenhuma inconstitucionalidade pode ser cogitada, assim também como não se justifica a discussão acerca da retroatividade ou irretroatividade da norma.
REFERÊNCIAS:
ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. Da função social da posse. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
ANDRIGHI, Fátima Nancy. A constitucionalidade do art. 2.035 do Código Civil. Artigo disponível no site bdjur.stj.gov.br em 24.08.2011.
CARVALHO SANTOS, J. M. Código civil brasileiro interpretado. Vol. I. 12ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1980.
ESPINOLA, Eduardo e ESPINOLA FILHO, Eduardo. A lei de introdução ao código civil brasileiro: comentada na ordem dos seus artigo. Vol. I. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1943.
NALINI, José Renato. Comentários ao novo código civil – disposições finais e transitórias. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Julgamento da ADIn nº 493-0/DF, relator Ministro Moreira Alves, DJU 04.09.92.
SANTOS, Antonio Jeová dos. Função social, lesão e onerosidade excessiva nos contratos. São Paulo: Método, 2002.
WALD, Arnoldo. O interesse social no direito privado. Revista Jurídica Consulex, ano IX, nº 206, agosto de 2005, 40-47.