Sumário
1. Remoção do servidor público civil da União no Direito Brasileiro. 2. A alteração do sistema de remoção pelo Plano de Carreira do Poder Judiciário da União. 3. Existência de figura híbrida entre a remoção e a transferência cujas implicações jurídicas, em nível constitucional e legal, ainda estão em processo de assimilação. 4. Viabilidade de controle constitucional.
Palavras Chave: Remoção; Transferência; Plano de Carreira
1. CONTEXTUALIZAÇÃO DO TEMA
Em 2006, a Lei n° 11.416 trouxe em seu bojo, para os servidores integrantes das denominadas Carreiras Judiciárias, certa amplitude no conceito de remoção, instituto jurídico utilizado por diversos órgãos da Administração Pública para movimentação de servidores que integram seu Quadro de Pessoal.
A afirmação parece juridicamente incongruente quando se sabe que somente por intermédio de lei de iniciativa do Presidente da República poderia tal instituto sofrer alteração. Não obstante, é esta a conotação que se pretende emprestar ao debate, eis que a Lei do Plano de Carreira dos Servidores do Poder Judiciário da União, certamente, ampliou o suposto de fato da regra jurídica em que se assenta o instituto da remoção – no caso, o art. 36 da Lei n° 8.112/90 – ao transpor a concebida movimentação funcional para além de determinado quadro de pessoal, criando uma figura híbrida entre a remoção e a transferência, cuja abordagem será o objeto de estudo deste trabalho.
Para construção dessa linha interpretativa imprescindível se torna a investigação do desenvolvendo do instituto desde o seu surgimento no Direito pátrio, ponto de partida para se extrair os significados da norma vigente e a concepção sobre a qual se assenta ou deveria se assentar a noção contemporânea do mencionado instituto.
2. O INSTITUTO DA REMOÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO.
A remoção é instituto jurídico que remonta ao Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União de 1939 [01], que já o previa nas modalidades: (i) a pedido e, (ii) ex officio. Antes desse período, a inamovibilidade do funcionário público era tida como garantia geral, eis que assegurada a uma grande parcela do funcionalismo público, conforme referiu Themístocles Brandão Cavalcanti em seu Tratado de Direito Administrativo [02]:
"Assim, as garantias de inamovibilidade não precisam estar expressas na Constituição, mas podem estar implicitamente asseguradas como um corolário das garantias gerais atribuídas aos funcionários públicos.
Não constitue, porém, uma garantia geral assegurada a todos os funcionários.
A tendência é mesmo no sentido de por têrmo ao regime da inamovibilidade como regra geral (16)." (o grifo não consta do original)
A garantia à inamovibilidade do funcionário público, entretanto, não era vislumbrada em sentido restrito, eis que comportava certa maleabilidade [03]. Outrossim, o dinamismo da organização dos serviços – onde a movimentação de pessoal se fazia necessária em prol da eficiência do máquina administrativa - fez erigir o regime da amovibilidade à regra geral, com previsão expressa do instituto da remoção no Estatuto de 1939 [04], cuja aplicação, desde então, já se mostrava difícil. Eis o que disse Themístocles Cavalcanti sobre o tema:
RUIZ Y GOMEZ (13), embora reconhecendo a natureza discricionária dessas remoções por ser a amovibilidade regra geral, salienta os defeitos do sistema, favorecendo o rebaixamento arbitrário de certos funcionários e permitindo o favoritismo em benefício de outros.
A observação é justa e prova-se por si mesma.
A lei deve manter o justo equilíbrio; não seria lícito admitir o pleno arbítrio da administração, nem tão pouco converter-se a garantia em fonte de abusos, em detrimento do bom funcionamento dos serviços.
Até à lei do reajustamento, ou melhor, até à sua publicação e interpretação pelo Conselho Federal do Serviço Público e atual Departamento Administrativo do Serviço Público verifica-se grande confusão na aplicação da legislação, esparsa e muitas vêzes contraditória. [05]"
A remoção surgiu, portanto, sob o escopo do juízo de conveniência da Administração com o fim de atender às necessidades do serviço [06] e tinha, desde então, a conotação restrita à movimentação do servidor dentro do quadro de pessoal ao qual se encontrava vinculado. Essa, aliás, uma das características que a diferenciava do instituto da transferência, como registrou, ainda, Themístocles Cavalcanti, de quem mais uma vez se empresta os valiosos ensinamentos a seguir transcritos:
"O estatuto dos funcionários racionaliza de alguma forma a matéria prevendo as diversas modalidades de transferências e remoções.
A transferência tem um sentido mais amplo, interessa à posição do funcionário dentro do quadro ou da carreira; conforme diz o estatuto, a transferência importa em provimento do cargo (19), pressupõe (quando a transferência é feita para cargo de carreira) a existência de uma vaga a ser preenchida por merecimento.
A remoção constitui um ato de consequências mais reduzidas; o funcionário movimenta-se no seu quadro, não há mudança de carreira, mas apenas de repartição, de serviço ou de um órgão integrante das repartições ou serviços."
[...]
De qualquer forma, as remoções devem ser feitas dentro do mesmo quadro. Quanto à autoridade competente, deve-se notar que a transferência, constituindo novo provimento de um cargo, depende de ato do Presidente da República. O mesmo não ocorre com as remoções, que podem ser determinadas pelos diretores gerais, de acôrdo com o caso [07]." (os grifos não constam do original)
Mas foi o extinto Departamento de Administração do Serviço Público (DASP), entretanto, que conferiu a melhor diferenciação entre os institutos da remoção e da transferência, fixando diretriz que ficou consagrada na doutrina e jurisprudência pátrias, então consubstanciada no Parecer exarado nos autos do Processo 3.309/42, ainda na vigência do Estatuto dos Servidores Civis de 1939, in verbis:
"A remoção é o simples deslocamento de funcionário de uma para outra repartição, sem que isso determine qualquer alteração de situação dentro do quadro a que pertencer.
A transferência, ao contrário, é justamente o movimento que se faz em torno de cargos, carreiras ou quadros.
Assim, se o deslocamento de um funcionário de uma para outra repartição implicasse esse movimento, deixaria de ser uma simples remoção para se tornar uma transferência.
Remoção é preenchimento de claro de lotação, e transferência é modalidade de provimento de cargo público. " [08](o grifo não consta do original)
No Estatuto de 1952 [09] poucas foram as alterações sofridas pelo instituto. Foram mantidas as modalidades de remoção a pedido e ex officio, com o acréscimo - na primeira hipótese – do seguinte condicionamento: "Dar-se-á a remoção a pedido para outra localidade por motivo de saúde, uma vez que fiquem comprovadas, por junta médica, as razões apresentadas pelo requerente". [10]
Na vigência do referido Estatuto, o Decreto n° 53.481, de 23.1.1964, regulamentou o instituto da remoção e fixou as balizas sobre as quais seria processado o deslocamento do servidor. Para o referido Decreto, a remoção seria "o ato mediante o qual o funcionário passa a ter exercício em outra repartição ou serviço do mesmo Ministério, preenchendo claro de lotação, sem que se modifique a sua situação funcional.". No art. 16, do citado Decreto, impôs-se à concretização da remoção, em qualquer caso, à dependência de claro de lotação, a demonstrar a sua intrínseca relação com a distribuição de cargos e funções no âmbito de determinado quadro de pessoal.
O instituto da transferência, que também foi regulamentado pelo Decreto n° 53.481, de 1964, foi incorporado como "ato de provimento mediante o qual se processa a movimentação do funcionário, de um para outro cargo de igual vencimento." Essa movimentação era realizada para cargos pertencentes a quadros diversos, ainda que de uma para outra série de classes da mesma denominação (inciso I do art. 2° do referido Decreto) [11]. Não é demais registrar que o conceito de classe correspondia a "um agrupamento de cargos da mesma profissão ou atividade, de igual padrão de vencimento [12], a demandar ilação no sentido de que se verificava a transferência quando o movimento ocorria entre quadros diversos ainda que para cargos de igual denominação.
Nesse contexto, verifica-se, desde logo, que a remoção, no Direito Brasileiro, sempre foi tida como o deslocamento/movimentação do servidor dentro do quadro de pessoal a que pertence. De igual sorte, não foi concebida, salvo na modalidade a pedido decorrente de problemas de saúde [13], como um direito do servidor, mas como uma ferramenta da ação administrativa que, por concordância ou não do servidor, poderia ocorrer. [14].
A Lei n° 8.112, de 1990, em sua redação originária, não descaracterizou o instituto, mas trouxe, em seu bojo, o alargamento da modalidade de remoção a pedido como direito subjetivo do servidor, cujas condições foram devidamente definidas. A saber:
"Art. 36. Remoção é o deslocamento do servidor, a pedido ou de ofício, no âmbito do mesmo quadro, com ou sem mudança de sede.
Parágrafo único. Dar-se-á a remoção, a pedido, para outra localidade, independentemente de vaga, para acompanhar cônjuge ou companheiro, ou por motivo de saúde do servidor, cônjuge, companheiro ou dependente, condicionada à comprovação por junta médica. (o grifo não consta do original)
A remoção a pedido, vinculada à presença dos requisitos alinhados na Lei, passou a constituir um direito do servidor, fazendo preponderar o princípio da proteção à família sobre o princípio da supremacia do interesse público. [15]Entrementes, afora essa hipótese, a remoção continuou a ser um ato em que o interesse público na movimentação do servidor, seja em decorrência de pedido ou de officio, deveria prevalecer [16].
Em relação à figura da transferência, o Estatuto de 1990 manteve a sua natureza enquanto forma de provimento derivado de cargo público. Contudo, conferiu ao instituto roupagem mais restritiva ao dispor, no seu art. 23, que a transferência seria a "passagem do servidor estável de cargo efetivo para outro de igual denominação, pertencente a quadro de pessoal diverso, de órgão ou instituição do mesmo Poder". Esse dispositivo, entretanto, teve vida efêmera. O Supremo Tribunal Federal, em sede de controle difuso de constitucionalidade [17], considerou o dispositivo estatutário incompatível com a nova ordem constitucional em face das balizas constantes do art. 37, inciso II, da Carta Política, consistente na exigência de concurso público para provimento de cargos públicos não somente para primeira investidura, como rezava a Constituição anterior, mas para todas as formas de provimento derivado em que se fizesse presente a mudança de quadro de pessoal [18]. Vale transcrever excertos do Voto exarado pelo Ministro Carlos Velloso no MS n° 22.148-8/DF, no qual examinou a legitimidade de transferência de servidora pertencente a quadro de pessoal de um Tribunal Trabalhista para outro, com o fim de delinear os contornos sobre os quais se consolidou a inteligência do instituto da transferência a partir da vigente Constituição:
"A transferência constitui, pois, forma de provimento derivado. Trata-se de derivação horizontal, porque sem elevação funcional. É, pois, na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, ‘a passagem horizontal – quer-se dizer, sem elevação funcional – do titular de um cargo para outro cargo. (...) Portanto, transferência se define como a mudança horizontal do ocupante titular de um cargo para outro cargo. Na União só há transferência, na hipótese de mudança de quadro.’ (Celso Antônio Bandeira de Mello, ‘Regime Const. dos Servidores da Administ. Direta e Indireta’. Ed. R.T., 2ª Ed. 1991, pág. 37).
A Constituição Federal estabelece, no inc. II do art. 37, de forma a não ensejar dúvida, que ‘a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.’ Quer dizer, não há investidura em cargo público – cargo isolado ou em carreira – sem aprovação prévia em concurso público. A transferência, conforme vimos, constitui forma de provimento ou de investidura em cargo público, tem-se, com ela, provimento ou investidura em cargo público sem concurso público. Dir-se-á que o servidor prestou, para ingresso no cargo de onde vem transferido, o concurso público. Isto não basta. Permiti-lo, seria exigir o concurso para primeira investidura, apenas – o que a Constituição pretérita permitia – quando a Constituição vigente estabelece que a investidura em cargo público somente se faz mediante concurso público.
O instituto da transferência, por outro lado, se permitido, poderia ensejar fraude à Constituição, ou, noutras palavras, poderia ensejar o descumprimento da finalidade maior do princípio constitucional do concurso público inscrito no art. 37, II, da Constituição.
[...]
Ora, com a transferência, seria possível tangenciar o princípio: o candidato prestaria concurso público num determinado Estado onde a disputa não seria maior ou onde o meio intelectual fosse mais pobre, e por isso as provas seriam mais fáceis, e obteria, depois, transferência para igual cargo noutro Estado, onde o concurso, observadas as peculiaridades locais, fosse mais difícil, com ofensa, assim, ao princípio da igualdade em relação aos que estivessem disputando o concurso público mais difícil. O Juiz não pode ignorar o fato, sob pena de fazer justiça de laboratório. E se temos presente que são vários os Brasis, é de todo necessário que o jurista e o juiz não percam de vista a sociologia jurídica."(o grifo não consta do original)
Em face da inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso, o Senado Federal baixou a Resolução n° 46, de 1997, publicada no Diário Oficial da União de 26.5.97, suspendendo a aplicação do art. 8°, inciso IV, e do art. 23, da Lei n° 8.112/90, que cuidavam do instituto da transferência. A partir de então, a transferência, nos moldes estatutários, deixou de ser aplicada e, em 1997, com a edição da Lei n° 9.527, foi definitivamente banida do ordenamento jurídico [19]. A remoção, por seu turno, manteve os seus contornos, muito embora, a partir de então, como era de se esperar, passou a ser cortejada, juntamente com a redistribuição, para operar movimentações de servidores entre quadros distintos [20].
Em relação à remoção, a Lei n° 9.527, de 1997, trouxe, também, mudanças importantes: o art. 36, da Lei n° 8.112/90 passou a congregar expressamente as modalidades de remoção com maiores vinculações, conforme a seguir:
"Art. 36. Remoção é o deslocamento do servidor, a pedido ou de ofício, no âmbito do mesmo quadro, com ou sem mudança de sede.
Parágrafo único. Para fins do disposto neste artigo, entende-se por modalidades de remoção:
I - de ofício, no interesse da Administração;
II - a pedido, a critério da Administração;
III - a pedido, para outra localidade, independentemente do interesse da Administração:
a) para acompanhar cônjuge ou companheiro, também servidor público civil ou militar, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que foi deslocado no interesse da Administração;
b) por motivo de saúde do servidor, cônjuge, companheiro ou dependente que viva às suas expensas e conste do seu assentamento funcional, condicionada à comprovação por junta médica oficial;
c) em virtude de processo seletivo promovido, na hipótese em que o número de interessados for superior ao número de vagas, de acordo com normas preestabelecidas pelo órgão ou entidade em que aqueles estejam lotados." (o grifo não consta do original)
A redação transcrita, atualmente em vigor, deixou evidente que a remoção poderia ocorrer a pedido ou de oficio, sendo que no que se refere à remoção a pedido, uma seria de natureza discricionária, e outra, vinculada. Essa última indissociável das regras previstas nas alíneas a, b e c do inciso III do art. 36 da Lei n° 8.112, de 1990.
A alínea c do inciso III do art. 36 do Estatuto, como se verifica, vincula o direito à remoção a um processo seletivo, de acordo com regras preestabelecidas em regulamento do órgão ou entidade em que se encontra lotado o servidor [21]. Em outras palavras, é o órgão a que pertence o servidor que deve estabelecer as regras para o que se convencionou chamar de concurso de remoção.
Sob o manto do processo histórico, resta evidente que a remoção é instituto de interesse público vinculado à movimentação do servidor dentro do próprio quadro de pessoal. Assim o foi desde a sua origem no Direito Brasileiro.
Na atualidade, a norma estatutária regente do instituto é expressa ao defini-lo como deslocamento no âmbito do mesmo quadro, hipótese genérica que é reforçada por outra integrante do mesmo comando normativo, que confere ao órgão ou entidade de lotação do servidor a competência para regulamentar o processo de seleção de que trata a alínea c do inciso III do art. 36, da Lei n° 8.112/90, acima transcrito [22].
Este é o modelo que se entende modificado pela Lei n° 11.416, de 2006, conforme se verá adiante.