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O sistema de remoção dos servidores das carreiras do Poder Judiciário da União

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16/01/2012 às 09:40
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3. A REMOÇÃO PREVISTA NA LEI N° 11.416, DE 2006

A Lei n° 11.416, de 2006, ao dispor sobre a carreira dos servidores e Poder Judiciário da União trouxe inusitada fórmula para proporcionar o deslocamento de servidores entre quadros de pessoal diversos. A saber:

"Art. 20. Para efeito da aplicação do art. 36 da Lei n° 8.112, de 11 de dezembro de 1990, conceitua-se como Quadro a estrutura de cada Justiça Especializada, podendo haver remoção, nos termos da lei, no âmbito da Justiça Federal, da Justiça do Trabalho, da Justiça Eleitoral e da Justiça Militar."(o grifo não consta do original)

A leitura do dispositivo, não obstante torne evidente a pretensão de extrapolar as fronteiras do quadro de pessoal de cada tribunal, conferindo à estrutura de cada Justiça Especializada, a título conceitual, a identificação jurídica de quadro, não parece, em um primeiro momento, confrontar com o artigo 36, da Lei n° 8.112, de 1990, eis que esta não definiu o que seria quadro de pessoal.

Esse entendimento, entretanto, é totalmente equivocado. Primeiro porque a ausência de definição legal de quadro de pessoal não lhe retira a substância enquanto instituto jurídico avesso a tal elasticidade. E, por derradeiro, para que tal inteligência fosse válida sob o aspecto legal, seria preciso não somente a edição de lei instituindo um quadro de pessoal único para cada Justiça Especializada, como a alteração simultânea da própria Carta Política que confere aos tribunais a prerrogativa de autogoverno (art. 96, inciso I [23]), com limitação da carreira na própria região, a exemplo do que dispõe o art. 115, da Constituição, para os Tribunais Regionais do Trabalho [24].

Mas é preciso esmiuçar melhor as ponderações apresentadas, fato que impõe ingressar no exame de institutos jurídicos como quadro de pessoal, lotação, claro de lotação e suas respectivas limitações.

A saber:

José Cretella Júnior, em seu Direito Administrativo do Brasil [25], já preconizava, a par da lição de renomados mestres, que o uso da palavra quadro comporta certa generalidade. Citando Duez e Debeyre, para quem "quadro administrativo é um conjunto de cargos (postos) criados por disposição geral e regulamentar pelos textos orgânicos dos serviços", refere à lúcida noção oferecida por Themistocles Brandão Cavalcanti no sentido de que quadro "obedece a um sentido formal, orgânico", a significar que a sua constituição no Direito Positivo deve partir do interesse do serviço como motor para agregar um conjunto de cargos e funções necessários ao desenvolvimento dos serviços afetados a determinado órgão ou ente.

Hely Lopes Meirelles torna visível esse delineamento do quadro ao defini-lo como "conjunto de carreira, cargos isolados e funções gratificadas de um mesmo serviço, órgão ou Poder. O quadro pode ser permanente ou provisório, mas sempre estanque, não admitindo promoção ou acesso de um para outro. [26]" E, certamente, é o que se vislumbra nos diplomas legais que criaram e ainda criam ou alteram os diversos quadros de pessoal existentes, a exemplo da Lei n° 409, de 25 de setembro de 1948, que criou os quadros de pessoal da Justiça do Trabalho, constituído de cargos de carreira, cargos isolados e funções gratificadas (art. 1°), fixando os limites dos quadros a cada Região. E assim o é até os tempos atuais.

Pois bem. Visto que o quadro de pessoal é figura jurídica com contornos delimitados pela lei de criação, o que o torna estanque, na definição de Hely Lopes Meirelles, resta evidente que a remoção, na forma concebida pelo Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União, está vinculada ao deslocamento do servidor (e não do cargo) dentro desse quadro de pessoal, espaço este em que se autoriza a movimentação.

Essa movimentação ocorre, em regra, para preenchimento de claros de lotação existentes nos referidos quadros. E o que é lotação? José Cretella Júnior, na obra de 1964, referia que a figura da lotação - naquela época com mais de vinte anos - não havia recebido do Direito Administrativo a devida atenção, "não obstante a importância de que se reveste. [27]"

É que a lotação, por definição, consiste no número de servidores necessários ao desenvolvimento de determinada atividade imputada a um dado órgão ou entidade. Daí a conotação de relevância apontada por Cretella Júnior, para quem a lotação, enquanto "conjunto de servidores que devem exercer atividades numa repartição, deveria, para efetivar-se, ser precedida de cuidadosos estudos científicos que, procedendo a rigoroso levantamento estatístico das condições de um dado setor da Administração Pública, concluiriam com precisão matemática sôbre a quantidade do pessoal necessário para atender às finalidades do Serviço Público." Ressaltava, ainda, o renomado jurista, que se processada empiricamente poderia se "lotar uma determinada repartição ou com número excessivo de servidores, onerando, dêsse modo, os cofres públicos, ou com servidores em número insuficiente para desempenho cabal das funções públicas, acarretando prejuízo aos administrados. [28]" Preocupação que se mostra inequivocamente atual.

No Estatuto de 1952, o instituto da lotação foi definido como "o número de servidores que devem ter exercício em cada repartição. O atual Estatuto dos Servidores Públicos não trouxe qualquer definição sobre a locução, muito embora se tenha utilizado da expressão em diversos dispositivos, dentre os quais os elencados no instituto da remoção, com o qual possui intrínseca relação.

Nesse cotejo, verifica-se que a lotação, por corresponder à força de trabalho necessária ao desempenho de determinada atividade afetada a uma dada unidade organizacional, encontra-se atrelada ao número de cargos e funções que compõe determinado quadro de pessoal. É que a força de trabalho motiva a criação de cargos e funções, mas somente com a existência desses cargos e funções é que se pode alocar a força de trabalho. Assim, a lotação é uma figura ambivalente, pois vai espelhar não somente a distribuição dos cargos e funções integrantes de um dado quadro de pessoal em face da força de trabalho requisitada pela organização administrativa, como a própria alocação nominal dos servidores nesses cargos e funções. Daí a inafastável classificação de Hely Lopes Meirelles, para quem a "lotação pode ser numérica ou básica, e nominal ou supletiva: a primeira corresponde aos cargos e funções atribuídos às várias unidades administrativas; e a segunda, importa na distribuição nominal dos servidores para cada repartição, a fim de preencher os claros do quadro numérico. [29]" Aliás, Cretella Júnior já fazia referência a essas modalidades de lotação, a saber:

"Há dois tipos de lotação: a lotação numérica ou básica, que se refere ao número de cargos e funções, sendo fixada por decreto do Executivo; e a lotação nominal ou supletiva, corolário da primeira, que é o preenchimento dos claros verificados na lotação numérica. [30]"

Visto isso, fica fácil entender que quando se fala em claro de lotação, está a se referir ao local/posto da lotação correspondente ao cargo ou função que, por qualquer motivo, encontra-se vago: em termos sintéticos, trata-se de uma vaga da lotação dentro do quadro de pessoal. E o preenchimento do claro de lotação por um servidor ocorre, como dito, mediante o instituto da remoção. Não é demais lembrar que em função da remoção, pode ser aberto outro claro, e assim sucessivamente.

Claro de lotação, entretanto, não se confunde com vaga, muito embora estejam intrinsecamente ligados. Para elucidar tal diferença nada melhor do que trazer a lume explicação oferecida pelo antigo DASP, ainda em 1957. Ei-la:

"É necessário fazer distinção entre claro e vaga, pois somente para aquêle pode efetuar-se a remoção.

A vaga facilmente se compreende: é a vacância do cargo decorrente de qualquer das formas previstas no art. 74, da Lei n° 1.711, de 28-10-52 (exoneração, demissão, etc.)

O conceito de claro no serviço público, todavia, é menos simples, pois não é definido por lei. A grosso modo, entretanto, poder-se-á dizer que claro é a vaga da lotação.

O importante, entretanto, é ter em vista que o claro há de originar-se sempre da vaga, com ela confundindo-se de início, embora possam dissociar-se depois.

Êsse o motivo por que o S.P.F., ao manifestar-se sobre o caso concreto, informa não haver claro ou vaga de Tesoureiro-Auxiliar na Casa da Moeda, apesar da declaração do Diretor daquela repartição de que a respectiva Tesouraria, possuindo uma lotação de 15 servidores, conta, apenas 11, estando 4 afastados ou por motivo de doença ou de requisição. Êsses afastamentos não abrem claro na lotação, porquanto não determinam vacância dos cargos.

Portanto, ainda que fosse cabível a remoção de Tesoureiro-Auxiliar, no caso em exame não seria possível efetuar-se essa movimentação, por não haver claro nesse cargo na Tesouraria da Casa da Moeda. (Parecer do DASP no Processo 7.409/56 e 966/57, DOU de 21.2.57, p. 4.040.) [31] (o grifo não consta do original)

A inteligência proclamada no Parecer lança luzes para que se observem as inúmeras facetas da lotação e da remoção, tornando evidente que em muitas situações a Administração fica obstaculizada em suprir a demanda decorrente da força de trabalho em face de ausência de abertura de claros de lotação, assim considerados os originários, direta ou indiretamente, de vagas. Diz-se, na praxe administrativa, que o claro está preso [32].

Esse panorama jurídico não se modificou com o Estatuto de 1990, não obstante se possa observar que a Lei n° 8.112, de 1990, possibilitou a remoção, em alguns casos, independentemente de vaga ou claro de lotação. Em todo caso, é imperioso registrar que a remoção, em regra, deve preencher um claro de lotação e, em regra, abre claro de lotação na origem. O controle dessa movimentação está vinculado ao quadro de pessoal, ou melhor, ao número de cargos e funções que compõem o quadro de pessoal, que não pode ser alterado, salvo por lei de criação de cargos e funções. É uma condição matemática.

Nesse patamar de funcionalidade, ao alarga as fronteiras dos quadros de pessoal das Justiças Especializadas o art. 20, da Lei n° 11.416, de 2006, entra em confronto como uma série de institutos jurídicos e com a própria estrutura jurídico-constitucional conferida ao Poder Judiciário.

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Sob o ângulo constitucional, é visível a existência de quadros de carreiras estanques para os diversos órgãos do Poder Judiciário. A magistratura é organizada em carreira, com acesso previsto aos tribunais de segundo grau (art. 93, III, da CF). Cada tribunal, por seu turno, possui um quadro próprio de magistrados e servidores de carreira, criado por lei específica, quadro este em que se delineia o limite da atuação administrativa de cada qual. Essa limitação é visível, ainda, por intermédio das prerrogativas conferidas no art. 96, inciso I, da Carta Maior, dentre as quais se inserem a de legislar sobre a competência e o funcionamento de seus órgãos administrativos e a de organizar as suas secretarias e serviços auxiliares, o que lhes garante, por corolário, o poder de disciplinar as movimentações de seus servidores.

Nesse passo, se a movimentação dos servidores dos tribunais está limitada ao seu quadro de pessoal, por lógico, norma de hierarquia inferior não teria o condão de alargar essa fronteira, sob pena de enveredar pelo caminho da inconstitucionalidade. Aliás, a inconstitucionalidade não se apresentaria, apenas, em face da passagem de um quadro de pessoal para outro diverso, mas em razão de que essa característica consubstancia uma forma de provimento que foi banida do ordenamento jurídico pátrio, no caso, a transferência. [33]

Não é demais lembrar que o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional a transferência realizada entre cargos integrantes de carreira idênticas dentro da mesma Justiça Especializada (MS n° 22.148-8), levando em consideração, dentre outros argumentos, o princípio da isonomia, na medida em que o candidato prestaria concurso para localidade onde a disputa fosse menos acirrada e, depois, se utilizaria do instituto da transferência para se fixar na localidade desejada. Tal argumento é ainda mais consistente quando se possibilita a remoção, cuja precariedade latente submete o órgão público a constantes entraves de interesses os mais diversos: concursados que saem de sua cidade de origem para se aventurar em locais que sabem, jamais irão fixar residência. O interesse público, por diversas vezes, sucumbe às manobras dos interesses pessoais e a prestação dos serviços fica seriamente comprometida [34].

Poder-se-ia argumentar, entretanto, que a extensão trazida pelo art. 20 da Lei n° 11.416, de 2006, não consolida espécie de transferência, na medida em que não haveria, formalmente [35], mudança de quadro de pessoal, mas apenas mudança de localidade, pois o servidor permaneceria vinculado ao quadro de pessoal de origem. Nesse caso, ainda que afastada a figura da transferência, não obstante a verossimilhança dos efeitos concretos entre os institutos, não subsistiria, de igual sorte, a roupagem da remoção prevista no art. 36, da Lei n° 8.112/90, consoante visto alhures. Logo, se não é remoção e não é transferência, o que traz o art. 20, da Lei n° 11.416/2006? No mínimo, um instituto jurídico novo que permite o deslocamento de servidores entre quadros diversos, pertencentes a carreiras idênticas, de cunho efetivamente precário.

Em termos sintéticos, o novel instituto poderia ser definido como uma figura intermediária entre a remoção e a transferência, concebidacom vistas a driblar as limitações encontradas em um e outro instituto, então assentadas na doutrina [36] e na jurisprudência pátria, definição esta que não lhe retiraria, de qualquer sorte, a mácula de inconstitucional.

Por certo, sob a concepção de um alargamento da abrangência conceitual de uma vantagem estatutária presente no regime jurídico dos servidores públicos civis da União, a prerrogativa de instauração do processo legislativo seria do Chefe do Poder Executivo (art. 61, II, alínea "c", da CF), o que não ocorreu na espécie. Aliás, se a conotação emprestada, por seu turno, estivesse vinculada à criação de uma nova vantagem estatutária e não apenas de uma alteração, a exigência da iniciativa de lei não se modificaria [37]. Em termos materiais, o emprego limitado do instituto às Justiças Especializadas daria margem, sem dúvida, à vulneração do princípio da isonomia. E, por derradeiro, em face da própria independência administrativa de que gozam os tribunais (art. 96, I, da CF), detentores de quadros próprios de pessoal, restaria configurado, como dito alhures, o vício constitucional da referida norma, na medida em que faz escapar dos tribunais a autonomia sobre os seus próprios quadros [38].

Sob esse cotejo, entende-se que a regra trazida pelo art. 20, da Lei n° 11.416/2006, modificou o conceito jurídico da remoção, na forma concebida pela legislação estatutária e, diante de suas características, encontra-se sujeita ao controle de constitucionalidade.

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Sobre a autora
Maria Lucia Miranda Alvares

Advogada do Escritório ACG - Advogados, Pós-Graduada em Direito Administrativo/UFPA, autora do livro Regime Próprio de Previdência Social (Editora NDJ) e do Blog Direito Público em Rede, colaboradora de revistas jurídicas na área do Direito Administrativo. Palestrante, instrutora e conteudista de cursos na área do Direito Administrativo. Exerceu por mais de 15 anos o cargo de Assessora Jurídico-Administrativa da Presidência do TRT 8ª Região, onde também ocupou os cargos de Diretora do Serviço de Desenvolvimento de Recursos Humanos e Diretora da Secretaria de Auditoria e Controle Interno. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa Eneida de Moraes (GEPEM).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVARES, Maria Lucia Miranda. O sistema de remoção dos servidores das carreiras do Poder Judiciário da União. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3120, 16 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20852. Acesso em: 4 nov. 2024.

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