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Liberdade de culto intramuros

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O trabalho desenvolvido pelos grupos religiosos representa um importante avanço no resgate da cidadania do preso em meio a um ambiente desolador, complementando a escassa assistência jurídica, à saúde, material, educacional e social fornecida pelo sistema prisional.

Desnecessário tecer maiores esclarecimentos sobre as mazelas que assolam o sistema penitenciário nacional. Basta uma singela visita em unidades prisionais espalhadas pelo país para se confirmar as péssimas situações em que são, simplesmente depositados, seres humanos que respondem a processos criminais ou cumprem penas já definitivamente fixadas pela Justica.

Salvo honrosas exceções verificadas nas quatro unidades federais existentes, a falta de estrutura, higiene, salubridade e segurança fazem parte do cotidiano de mais de 500.000 (quinhentas mil) pessoas no Brasil, razão pela qual urge repensar de forma responsavel uma nova politica penitenciária nacional.

A população carcerária aumentou em 113% no país [01] desde o ano 2000, batendo a marca de 512.285 pessoas enclausuradas no ano de 2010, valendo notar que deste contingente humano, apenas 14% dos presos trabalham e 8% estudam.

Num país de graves desigualdades sociais, não se pretende, logicamente, a extensão de benefícios ou condições incompatíveis com a realidade econômica estatal, todavia, a necessidade de preservação de um mínimo de dignidade àquele que claudicou perante a sociedade, deve nortear a atividade administrativa estatal.

A dignidade da pessoa humana, como fundamento nuclear da Constituição Federal (art. 1º, III), vincula, inarredavelmente, a postura do Administrador que deve preservar todos os direitos e garantias do preso não atingidas pela sentença condenatória .

A Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, prevê expressamente:

"Artigo 5º - Direito à integridade pessoal

1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.

2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.

3. A pena não pode passar da pessoa do delinqüente.

4. Os processados devem ficar separados dos condenados, salvo em circunstâncias excepcionais, e devem ser submetidos a tratamento adequado à sua condição de pessoas não condenadas.

5. Os menores, quando puderem ser processados, devem ser separados dos adultos e conduzidos a tribunal especializado, com a maior rapidez possível, para seu tratamento.

6. As penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados."

O sistema prisional brasileiro não cumpre a função primordial de ressocializar o condenado, tampouco assegura condições para se efetivar a prevenção especial do enclausurado, inibindo a continuação delitiva oriunda da reincidência.

Não sendo atingida a prevenção especial, resta igualmente fulminada a prevenção geral, uma vez que, a coletividade também deixa de acreditar na viabilidade do retorno ao convívio social de tais pessoas, redundando num cruel círculo vicioso.

A assistência ao condenado durante o período de cumprimento da pena mostra-se como poderosa ferramenta de transformação pessoal, acarretando, em alguns casos, a integral regeneração do criminoso, que se mostrará apto ao retorno à vida em sociedade.

Neste aspecto, o auxílio religioso dentro dos estabelecimentos penais tem mostrado eficiência no processo de humanização da permanência do preso durante o período de cumprimento de sua reprimenda penal fixada pelo Estado.

A

Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada pelos 58 estados membros conjunto das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, em Paris, (França), definia a liberdade de religião e de opinião no seu artigo 18:

"Todo o homem tem direito à

liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular."

A liberdade de religião, enquanto conceito legal, ainda que esteja relacionada com a

tolerância religiosa, não é idêntica a esta - baseando-se essencialmente na separação da Igreja do Estado, ou laicismo, sendo a laicidade (laïcité, no original), o estado secular que se pretende alcançar.

No que tange à liberdade de crença e religião, mais uma vez, cumpre transcrever o disposto no Pacto de São José da Costa Rica:

"Artigo 12 - Liberdade de consciência e de religião

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.

2. Ninguém pode ser submetido a medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças.

3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita apenas às limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas".

A Constituição Federal, no artigo 5º, VI, estipula ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias.

O inciso VII afirma ser assegurado, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva.

O inciso VII do artigo 5º, estipula que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.

Em temos infraconstitucionais, a Lei de Execuções Penais (Lei nº 7210/84) também fixa diretrizes para a assistência religiosa ao condenado, dispondo expressamente:

"Art. 24. A assistência religiosa, com liberdade de culto, será prestada aos presos e aos internados, permitindo-se-lhes a participação nos serviços organizados no estabelecimento penal, bem como a posse de livros de instrução religiosa.

§ 1º No estabelecimento haverá local apropriado para os cultos religiosos.

§ 2º Nenhum preso ou internado poderá ser obrigado a participar de atividade religiosa."

Em sendo assim, a assistência religiosa prestada intramuros mostra-se como dever do Estado visando atingir o escopo de reabilitação e ressocialização do condenado, devendo-se proporcionar condições de exeqüibilidade de tal preceito constitucional.

A existência de um ambiente favorável ao culto religioso mostra-se como imperativo a ser seguido pela direção das diversas unidades prisionais, representando importante mecanismo de reeducação e transformação do condenado, viabilizando o atingimento das finalidades da pena: punição pelo mal causado, a prevenção de novas infrações e a "regeneração" do condenado.

Vale destacar ainda, a Portaria nº 120 de 19/09/2007, expedida pelo Departamento Penitenciário Nacional, que disciplina a prestação de assistência religiosa nos estabelecimentos penais federais.

"Art. 1º Os presos recolhidos nas penitenciárias federais têm direito à liberdade de crença e de culto, permitindo-se a manifestação religiosa e o exercício do culto, bem como a participação nos serviços religiosos organizados nos estabelecimentos, sem prejuízo da ordem e da disciplina.

Parágrafo único: O direito previsto no caput envolve a dieta especial e refeições em horários específicos.

Art. 2º A assistência religiosa será prestada por voluntariado de representantes de entidades religiosas aos presos adeptos de sua religião ou crença, semanalmente, se possível.

(...)

Art. 12 Na realização dos ritos e práticas religiosas não poderão ser utilizados objetos, produtos ou substâncias proibidas no estabelecimento penal federal."

Em São Paulo, no âmbito estadual, temos o Decreto nº 44.395 de 10/11/1999 e a Resolução nº 091/2002, da Secretaria de Assistência Penitenciaria, que disciplinam a atividade religiosa a ser prestada nas unidades prisionais.

O regramento explicitado no normativo federal apresenta certa contradição em seus termos, à medida que, concede expressamente liberdade de crença e culto aos detentos, todavia, tolhe a exeqüibilidade de tal direito ao impor limitações em seu artigo 12, quanto ao uso de determinados objetos.

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Ora, num país plural e sincrético como o Brasil, é sabido da existência de uma infinidade de cultos religiosos, alguns destes, com forte influência africana, cujos rituais fazem uso de objetos de percussão e até mesmo, sacrifícios de animais para a realização de sua liturgia.

Também se faz notar, a existência de agremiações religiosas fincadas em origens amazônicas, que utilizam substâncias alucinógenas (Santo Daime) para a efetivação de seus rituais, além de instrumentos musicais e outras práticas não ortodoxas.

No ano de

2010 o governo brasileiro formalizou legalmente o uso religioso do chá ayahuasca, vetando o comércio e propagandas do mesmo, que só poderá ser utilizado com fins religiosos e não lucrativos, com a criação de um cadastro facultativo para as entidades que o utilizam.

Essa bebida chegou a ser proibida no país em

1985, sendo liberada dois anos depois, havendo nova tentativa de proibição em 1990. Até entao, nao havia formalmente, proibicao para o uso do chá em cerimônias religiosas, todavia, não existiam orientações para o seu uso em conformidade com o ordenamento.

Também é sabido que a população judaica possui restrições alimentares, além de ritos relacionados a vestimenta e forma de oração, procedimentos estes, certamente, impossíveis de serem realizados em meio ao caos do sistema penitenciário nacional, onde falta o básico: salubridade, higiene e segurança.

Em verdade, na grande maioria dos estabelecimentos penais, nota-se a tímida presença de Pastorais da Igreja Católica, e a profusão de inúmeras entidades evangélicas atuando na doutrinação da população carcerária.

Quanto a outros cultos ou formas de religião, pouco se vê no interior dos presídios, valendo o questionamento se tal situação advém da inexistência de adeptos em tais locais ou do desinteresse das entidades religiosas em fomentar sua liturgia em meio ao sistema carcerário.

Não se pode esquecer, que o trabalho desenvolvido pelos grupos religiosos representa um importante avanço no resgate da cidadania do preso em meio a um ambiente desolador, complementando a escassa assistência jurídica, à saúde, material, educacional e social fornecida pelo sistema prisional.

Portanto, conclui-se pela existência de limitações para a liberdade de crença e culto no interior dos estabelecimentos penais brasileiros, conforme restrições administrativas inerentes ao sistema carcerário.

Referido direito de índole constitucional e permeado de fundamentalidade, certamente não pode ser exercido em sua plenitude, face às imposições advindas da preservação da segurança nos locais de cumprimento de pena.

Todavia, fica o debate para a reflexão das autoridades responsáveis pela formulação da política penitenciaria nacional, sobre, até que ponto tais restrições mostram-se, efetivamente, justificadas sob o viés da máxima efetividade das normas constitucionais?

Se por um lado, não se pode renunciar aos imperativos de segurança e preservação da ordem no interior das unidades prisionais, também resta verdadeiro que não se pode tolher a liberdade de culto daqueles que professam determinada crença e se vêm impedidos de realizar ritos e crenças conforme suas convicções pessoais.

O Estado Brasileiro, sedimentado nos Princípios da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º, III, Carta Magna), que preserva dentre seus objetivos fundamentais a promoção do bem de todos sem qualquer forma de preconceito (art. 3º, IV), não pode obstar ou embaraçar qualquer modalidade de culto ou fé (art. 19), ainda que tais práticas demandem a readequação das unidades prisionais.

A partir do momento em que o Estado assumiu a responsabilidade exclusiva pela punição dos delitos criminais, também se comprometeu a preservar as garantias constitucionais do apenado, sobressaindo-se dentre estas, a liberdade de culto que não poderá sofrer restrições indevidas provenientes do desmazelo administrativo.


Notas

Dados do CNJ – Conselho Nacional de Justiça, http://www.cnj.jus.br/geo-cnj-presidios , acesso em 06/12/2011.
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Sobre o autor
Cesar Augusto de Oliveira Queiroz Rosalino

Procurador Municipal de Santo André (SP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSALINO, Cesar Augusto Oliveira Queiroz. Liberdade de culto intramuros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3136, 1 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20997. Acesso em: 2 nov. 2024.

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