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Princípio da confiança e tutela ambiental: a primazia do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado sobre o direito de proteção à confiança legítima

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28/02/2012 às 15:10
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5. SITUAÇÕES DE CONFLITO ENTRE OS DIREITOS À PROTEÇÃO DA CONFIANÇA E DO MEIO AMBIENTE  

Enceta-se agora a explanação dos casos, doutrinários e jurisprudenciais, mais corriqueiros e relevantes de concorrência ou conflito entre os postulados constitucionais em testilha.

5.1. Coisa julgada ambiental.

A coisa julgada é instituto em que a confiança se faz presente em seu grau máximo. Trata-se da qualidade de imutabilidade da sentença judicial contra a qual não cabe mais recurso[31]. A pessoa que tem reconhecida, pela decisão final transitada em julgado, o direito a um bem da vida, pode com ele planejar sua história  e também organizar suas prioridades sem que venha a ser surpreendida com atos, do Estado ou de terceiros, que possam restringir ou subtrair esse direito.

Quando o meio ambiente aparece como objeto de uma causa judicial, surge a disciplina da coisa julgada do art. 16 da Lei nº 7.347, de 1985, art. 103 da Lei nº 8.078, de 1990, e art. 18 da Lei nº 4.717, de 1965, já que se cuida, como é sabido, de bem difuso, de uso comum de todos. Desses dispositivos se extrai que a sentença que julga procedente - ou que julga improcedente – o pedido de tutela ambiental numa ação civil pública ou numa ação popular faz coisa julgada erga omnes, ou seja, contra todos. Ou seja, possível será que um legitimado para ação de cunho coletivo intente proteger o meio ambiente mas venha a obter um provimento negativo em juízo, sujeito à eficácia de coisa julgada, quando a instrução for suficiente a demonstrar os fatos e alegações sob litígio. Confira-se o teor dos preceptivos citados:

Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.

Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada: I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81  II - ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81;  III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.

Art. 18. A sentença terá eficácia de coisa julgada oponível "erga omnes", exceto no caso de haver sido a ação julgada improcedente por deficiência de prova; neste caso, qualquer cidadão poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.

Todavia, mesmo em ações individuais, em que se pretende garantir direito individual do autor, poderá haver reflexos no meio ambiente nas sentença prolatadas.

Com a perspectiva, então, de uma sentença que prejudique o meio ambiente, em processo individual ou coletivo, que alcance a eficácia de coisa julgada, cabe indagar se existem mecanismos legais que possam afastá-la, em detrimento da confiança depositada no ato do Estado-Juiz e em benefício do direito à sadia qualidade de vida.

O primeiro instituto jurídico normativo que se aponta está na chamada coisa julgada secundum eventum probationis, prevista nos citados dispositivos das leis que regulam o processo coletivo. Como se nota deles, quando for reconhecida, em sentença, a insuficiência da prova, a qualquer tempo, poderá o autor legitimado intentar nova ação, desde que munido de prova nova.

Compreende-se que referida disposição deve ter sua abrangência alargada, em interpretação extensiva, para a alcançar hipóteses em que os meios probatórios se apresentem insuficientes, quando da instrução e da sentença, para afirmar a ocorrência ou não da degradação ou poluição ambiental, diante do caminhar da ciência e do progresso tecnológico[32]. Mesmo quando a sentença é omissa em afirmar a insuficiência dos meios probatórios, à luz dos conhecimentos científicos, possível será a propositura de nova ação para tutela do meio ambiente, e alcançar sentença de procedência, se a ciência apresentar novos meios científicos que apontem para confirmação da degradação ambiental no empreendimento antes tido como inofensivo ao ambiente.

O escólio de Marcelo Abelha indica que a situação é de ser tratada com o afastamento da eficácia preclusiva da coisa julgada, conforme colocada no art. 464 do Código de Processo Civil:

“Desde a sua existência, o ser humano vem tentando dominar o meio ambiente. Diante disso, é evidente que o ser humano desconhece quais os papéis, as virtudes, as potencialidades de todas as funções ecológicas desenvolvidas pelos componentes ambientais. Nesse passo, também esse aspecto exerce influência no regime jurídico da coisa julgada em matéria ambiental. Por exemplo, admita-se uma hipótese em que o juiz profira uma sentença considerando que determinada atividade não é impactante ou que não teria causado o impacto ambiental X. Todas as provas são trazidas aos autos, e o juiz, convencido, julga improcedente a ação civil pública. O que fazer se meses ou anos depois, com o desenvolvimento científico, descobre-se que aquela atividade, mais bem estudada, causou impacto no meio ambiente?

Veja-se que não se trata do mesmo caso comentado no tópico anterior. Aqui não houve uma modificação da situação de fato em razão da instabilidade do bem ambiental. O que teria havido é que aquela mesma situação de fato, provada nos autos, agora se apresenta diversa diante de novos dados científicos. O que fazer se houve – e de fato houve – a coisa julgada material sobre o pedido formulado? Nesse particular, é de se questionar se teria havido a eficácia preclusiva da coisa julgada sobre essas questões, que já existiam à sua época, mas que, pelo desconhecimento científico, não foram sequer alegadas. Tome-se de exemplo um determinado alimento transgênico que é liberado judicialmente, e sobre a decisão recai a autoridade da coisa julgada, mas anos depois (portanto, depois do prazo de uma ação rescisória) descobre-se, com novos e recentes estudos científicos, que o tal alimento transgênico degrada a qualidade do meio ambiente. Nesse caso, será possível rediscutir o que foi decidido, com o auxílio de nova prova, se a coisa julgada foi obtida num caso de improcedência com suficiência de prova? A questão, nos parecer, pode ser solucionada com base na correta leitura da eficácia preclusiva da coisa julgada. É que tal figura (eficácia preclusiva da coisa julgada) só imuniza o julgado das alegações (argumentos e fundamentos) que foram deduzidas ou que poderiam ser dedutíveis, tomando-se, por ficção, que todas teriam sido rejeitadas quando a sentença passasse em julgado. Entretanto, observe-se que, naquele momento, ninguém poderia supor – em razão do desconhecimento ou da incerteza científica – que tal atividade transgênica fosse poluente e por isso mesmo não poderia incidir a regra do deduzido e do dedutível contida no art. 474 do CPC. Nesse caso, permite-se que, com base na mesma causa de pedir e no mesmo pedido, porém com fundamento em nova prova, não se aplique a regra do art. 464 e assim, seja retomada a discussão da causa, valendo-se dessa prova que, por razões científicas, se desconhecia.”[33]

Outra hipótese em que pode haver o afastamento da coisa julgada se trata dos processos que versem relação jurídica continuada, à luz do art. 471, inciso I, do Código de Processo Civil. Trata-se da coisa julgada rebus sic stantibus, em que se admite a revisão da sentença, mesmo que transitada em julgado, diante da superveniência de modificações no estado de fato ou de direito da causa de pedir. De acordo com Fredie Didier, não é a coisa julgada que porta a cláusula rebus sic stantibus, mas a própria sentença que considerou os fatos e o direito quando de sua prolação, sendo certo que, em caso de sua revisão, ter-se-á nova sentença proferida sobre nova situação cujos pressupostos e elementos constitutivos já variaram com o passar do tempo[34].

Em verdade, segundo Enrico Tullio Liebman, “todas as sentenças contém em si a cláusula rebus sic stantibus, enquanto a coisa julgada não impede absolutamente que se tenham em conta os fatos que intervierem sucessivamente à emanação da sentença: por exemplo, se o devedor paga a soma devida, perde a condenação todo o valor. Outra coisa não acontece para os casos ora considerados, nos quais tratando-se de uma relação que se prolonga no tempo, e dizendo a decisão ser determinada pelas circunstâncias concretas do caso, a mudança deste justifica, sem mais uma correspondente adaptação da determinação feita precedentemente, o que será uma aplicação, e nunca uma derrogação dos princípios gerais e nenhum obstáculo encontrará na coisa julgada”[35].

Dessa forma, considerando que toda sentença guarda em si a cláusula rebus sic stantibus, é possível inferir que a coisa julgada se relativiza quando, por circunstâncias fáticas e jurídicas que surgem após sua configuração, se se constatar que do exercício do direito reconhecido em sua parte dispositiva possa acarretar dano ao meio ambiente.

A inferência a que se chega está mais próxima da teoria interna dos direitos fundamentais, a partir de um juízo de adequabilidade os direitos constitucionais em discussão e das normas legais editados pelo legislador para regular o processo.

Nada obstante, é preciso ainda mencionar a tese da coisa julgada inconstitucional, esta orientada pelo princípio da proporcionalidade e pelo critério da ponderação de valores, tal como propugnado pela teoria externa. Assim, uma corrente doutrinária vem defendendo a relativização do postulado da coisa julgada quando em confronto com outro valor constitucional de maior peso ou preponderância, tal como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ligado ao direito à vida e sobrevivência a humanidade. Assim, traz-se à colação o ensinamento de Cândido Rangel Dinamarco[36]:

“Mesmo as sentenças de mérito só ficam imunizadas pela autoridade do julgado quando forem dotadas de uma imperatividade possível: não merecem tal imunidade (a) aquelas que em seu decisório enunciem resultados materialmente impossíveis ou (b) as que, por colidirem com valores de elevada relevância ética, humana, social ou política, também amparados constitucionalmente, sejam portadoras de uma impossibilidade jurídico-constitucional.”

5.2. Direito adquirido e ato jurídico perfeito.

A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, o Decreto-Lei nº 4.657, de 1942, assim define os institutos jurídicos em tela:

Art. 6º (….)

§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. (Incluído pela Lei nº 3.238, de 1957)

§ 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por êle, possa exercer, como aquêles cujo comêço do exercício tenha têrmo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. (Incluído pela Lei nº 3.238, de 1957)

Na história constitucional brasileira, o direito adquirido e o ato jurídico perfeito se colocam, ao lado da coisa julgada, como as mais seguras manifestações do princípio da confiança e da segurança jurídica.  Eis como a Carta Política de 1988 os protege:

Art. 5º (….)

XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;

Todavia, assim como o postulado da coisa julgada, os que ora se trata também perdem a primazia de aplicabilidade se confrontarem com o direito ao meio ambiente sadio. Desta feita, é curial buscar o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça sobre a contenda, onde deixa patente que um direito existencial e indisponível não pode ser arranhado sob pretexto da aquisição em definitivo de um direito, no caso o direito de propriedade:

“PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECURSO ESPECIAL. TEMPESTIVIDADE. AVERBAÇÃO DE RESERVA LEGAL. AUSÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO A POLUIR OU DEGRADAR.

..................................................

5. Contudo, quanto ao recurso especial, nota-se que esta Corte Superior já pontuou que não existe direito adquirido a poluir ou degradar o meio ambiente. A averbação da reserva legal, no âmbito do Direito Ambiental, tem caráter meramente declaratório e a obrigação de recuperar a degradação ambiental ocorrida na faixa da reserva legal abrange aquele que é titular da propriedade do imóvel, mesmo que não seja de sua autoria a deflagração do dano, tendo em consideração sua natureza propter rem.

(EDcl nos EDcl no Ag 1323337 / SP  Relator Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, DJe 01/12/2011)

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Do texto acima se dessume que a obrigação de averbação da reserva florestal legal, prevista no art. 16 do Código Florestal Brasileiro[37], não pode deixar de ser adimplida sob o alegação de que a degradação se deu sob o domínio do proprietário anterior. Como, numa interpretação que tem em mente as escolhas feitas pelo legislador ordinário, referida obrigação acompanha a coisa, tratando-se do conhecido instituto da obrigação propter rem, não se pode falar em direito adquirido de manter a propriedade rural com o passivo ambiental, sob o pretexto de que o atual titular não foi o autor da degradação, pena de perpetuação de uma lesão ao meio ambiente, bem vital para as presentes e futuras gerações.

A invocação da proteção da confiança em detrimento do meio ambiente também se faz em casos de licença de funcionamento regularmente expedida pelo órgão ambiental competente ao empreendedor, tratando assim, segundo o conceito legal, de um ato jurídico perfeito, sem qualquer mácula de ordem formal. Ocorre que o empreendimento, após o regular procedimento de licença e o início das atividades, pode vir a causar graves riscos ao meio ambiente e à saúde, e o órgão ambiental, com fulcro no art. 19 da Resolução nº 237 de 1997, editada pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente-CONAMA[38], no uso das prerrogativas previstas no art. 8º, inciso VII, da Lei nº 6.938, de 1981, pode vir a efetuar a cassação ou revogação da licença[39]. Nesses casos, a doutrina não vê maiores dificuldades sobre a prevalência da proteção ambiental sobre a tutela da confiança, com a cassação da licença, sendo certo que as discussões que remanescem se prendem à ocorrência ou não do dever de indenização pelo Poder Público ao empreendedor[40]. Semelhante disposição traz a Lei 9.433, de 1997, que cuida da gestão de recursos hídricos, quando prevê, em seu art. 15, a suspensão definitiva da outorga de uso de recursos hídricos em função de grave degradação ambiental constatada ulteriormente.

Versando sobre direito adquirido e ato jurídico perfeito, imprescindível que se diga de sua possível eficácia contra legislação posterior mais protetiva do meio ambiente, já que, conforme se leu do texto constitucional, o principal destinatário dessa garantia de segurança é o legislador. Mencione-se a alteração imposta ao art. 16 da Lei nº 4771, de 1965, pela Medida Provisória nº 2.166-67/2001, quando majorou a reserva florestal legal na região da Amazônia Legal de 50% para 80% da área de floresta nativa da propriedade rural. Nessa situação, os proprietários dos prédios rústicos chegaram a alegar o direito adquirido para não proceder o plantio de mais 30% de sua propriedade, uma vez que, atendendo ao patamar anterior, haviam desmatado 50% da área. In casu, a Procuradoria-Geral do Instituto Brasileiro dos Recursos Naturais Renováveis-IBAMA emitiu o Parecer 904/2002, concluindo pela inexistência de direito adquirido na manutenção da reserva em 50% para aqueles que já haviam desmatado em data anterior à da vigência da referida medida provisória. Utilizou-se, na hipótese, o princípio da ponderação de valores constitucionais, tendo maior peso o da tutela do meio ambiente.[41]

A questão do direito adquirido também se levanta na temática do zoneamento ambiental, exatamente quando o Decreto-Lei nº 1.413/75, em seus arts. 1º a 4º, e a Lei nº 6.803/80, em seu art. 1º, parágrafo 3º, não reconhecem o direito de pré-ocupação do solo na hipótese de ato ulterior do poder público estipular restrições ou interdições de certas atividades em determinadas áreas, com vistas a garantir o desenvolvimento sustentável da cidade, a proteção da dignidade humana e o direito ao sossego, incluído no direito à sadia qualidade de vida. Também nesses casos não se vê, na doutrina e na jurisprudência, posições que assegurem ao proprietário o direito de permanecer no local e desenvolver suas atividades, em face da confiança legítima depositada na licença e no ordenamento quando do início da construção ou do empreendimento. A quizila, reitere-se, restringe-se ao direito de indenização ou mesmo de desapropriação do imóvel quando da expedição das novas normas de zoneamento ambiental[42].

5.3. Prescrição e decadência.

Cuida-se de institutos que se originam da projeção de efeitos jurídicos pelo decurso do tempo, conforme aduz a doutrina, mas também da confiança despertada na situação que se protrai ao longo do tempo, desde um agir omissivo do titular do direito que perece.

Na forma do art. 189 do Código Civil, a prescrição fulmina a pretensão do titular em reparar um direito subjetivo seu, que foi violado. Caracterizam a prescrição, segundo Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves[43],  a existência de um prazo para o exercício de um direito subjetivo patrimonial e disponível (se não houver prazo específico, aplica-se a cláusula geral art. 205, CC), a possibilidade de seu reconhecimento de ofício pelo juiz (art. 219, § 5º, Código de Processo Civil), de renúncia tácita ou expressa (que só pode ocorrer após a sua consumação) e de ocorrência de causas impeditivas, suspensivas e interruptivas.

Decadência é a perda de um direito potestativo pelo seu não exercício em determinado prazo previsto em lei. Diferente do direito subjetivo, atingido pela prescrição, o direito potestativo é o que se exerce por manifestação da vontade de seu próprio titular, independendo do agir ou não agir de terceiros. Inadmitem os direitos potestativos violação e, via de consequência, não trazem consigo pretensão.

Não apresenta o ordenamento jurídico norma expressa que regule os prazos prescricionais, ou decadenciais, em caso de lesão ao meio ambiente. Inclusive, a lei que regula a ação que visa a tutela do meio ambiente e outros direitos difusos, a Lei nº 7.347/1985, não veicula em seu bojo qualquer prazo dessa natureza para sua propositura. Esse silêncio eloquente se funda na ideia de que os direitos difusos e coletivos não possuem titular, tornando impossível que toda a coletividade seja apenada pela inércia dos legitimados à ação. Isso levou a que a doutrina propugnasse que a ação civil pública não se submetesse a prazo de prescrição, sendo então imprescritível a pretensão dirigida à tutela dos interesses metaindividuais.

Sucede que a Lei de Ação Popular, a Lei nº 4.717/65, previu, em seu art. 21, um prazo de cinco anos para sua propositura. Por versar essa lei também sobre a tutela de interesses difusos, o patrimônio público, a moralidade e ainda o meio ambiente natural e cultural, parte da doutrina veio a sustentar ser este um prazo, decadencial ou prescricional, para desconstituição ou repressão de situações lesivas ao bem ambiental.

Ocorre, todavia, que referida lei foi editada  no ano de 1965 e não previa em seu bojo a tutela ambiental. Com a Constituição de 1988 é que foi alargado seu espectro de proteção, para atingir os outros bens metaindividuais. Mais que isso, a mesma Carta Magna de 1988 veio de estipular a imprescritibilidade da pretensão de proteção do bem de relevo mais notório sujeito ao regime da ação popular, o patrimônio público. Assim sendo, tendo em conta que a estipulação do art. 21 da Lei nº 4717 não foi recepcionada pela Carga Magna de 1988, força convir que também os institutos da prescrição e decadência, que protegem a confiança daqueles envolvidos num fato ou situação jurídica por certo e determinado período de tempo, cedem espaço para a proteção ao direito ao meio ambiente equilibrado.  

Eis as decisões do eg. Superior Tribunal de Justiça que sufragam a tese em comento:

“ 3. O Tribunal a quo entendeu que: "Não se pode aplicar entendimento adotado em ação de direitos patrimoniais em ação que visa à proteção do meio ambiente, cujos efeitos danosos se perpetuam no tempo, atingindo às gerações presentes e futuras." Esta Corte tem entendimento no mesmo sentido, de que, tratando-se de direito difuso - proteção ao meio ambiente -, a ação de reparação é imprescritível. Precedentes.”

AgRg no REsp 1150479 / RS DJe 14/10/2011 Ministro HUMBERTO MARTINS

“(..) 3. Reparação pelos danos materiais e morais, consubstanciados na extração ilegal de madeira da área indígena.

4. O dano ambiental além de atingir de imediato o bem jurídico que lhe está próximo, a comunidade indígena, também atinge a todos os integrantes do Estado, espraiando-se para toda a comunidade local, não indígena e para futuras gerações pela irreversibilidade do mal ocasionado.

5. Tratando-se de direito difuso, a reparação civil assume grande amplitude, com profundas implicações na espécie de responsabilidade do degradador que é objetiva, fundada no simples risco ou no simples fato da atividade danosa, independentemente da culpa do agente causador do dano.

6. O direito ao pedido de reparação de danos ambientais, dentro da logicidade hermenêutica, está protegido pelo manto da imprescritibilidade, por se tratar de direito inerente à vida, fundamental e essencial à afirmação dos povos, independentemente de não estar expresso em texto legal.

7. Em matéria de prescrição cumpre distinguir qual o bem jurídico tutelado: se eminentemente privado seguem-se os prazos normais das ações indenizatórias; se o bem jurídico é indisponível, fundamental, antecedendo a todos os demais direitos, pois sem ele não há vida, nem saúde, nem trabalho, nem lazer , considera-se imprescritível o direito à reparação.

8. O dano ambiental inclui-se dentre os direitos indisponíveis e como tal está dentre os poucos acobertados pelo manto da imprescritibilidade a ação que visa reparar o dano ambiental.”

REsp 1120117 / AC Ministra ELIANA CALMON (1114)

Ressalte-se que, no aresto logo acima, o Ministro Mauro Campbell Marques proferiu voto divergente – e vencido - pela incidência do prazo de prescrição na Lei de Ação Popular alegando o seguinte:

“Não há imprescritibilidade em relação à pretensão de indenização do dano ao meio ambiente, pois, não havendo imprescritibilidade nas esferas penal e administrativa, ocorreria uma subversão sistemática das redes de proteção ao meio ambiente ao se reconhecer ser imprescritível a tutela reparatória civil, que tradicionalmente é a que protege com menor intensidade o bem jurídico. É de cinco anos o prazo de prescrição da pretensão exclusivamente ressarcitória derivada de dano ao meio ambiente, tendo em vista o artigo 21 da Lei 4.717/1965, que é especial em relação aos Códigos Civis.”

Mister ainda referir-se à questão do prazo decadencial para a administração ambiental anular atos seus dos quais acarretem benefícios ao particular e também malefícios ao meio ambiente. É certo que não tem regulação aqui o prazo de 5 (cinco) anos previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/1999 para a administração rever seus atos, em vista das características do bem ambiental já apontadas no item 3.1, da cláusula rebus sic stantibus, a integrar qualquer ato administrativo que repercuta no meio ambiente, tal como sucede com a coisa julgada, e da previsão de prazo em lei das licenças para que as atividades efetiva ou potencialmente degradantes possam se efetivar[44].

5.4. Venire contra factum proprium.

O venire contra factum proprium surge quando o agente adota uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente por ele mesmo, que desperta legítima expectativa na contraparte. Verificam-se dois comportamentos lícitos e sucessivos, porém o primeiro (fato próprio) é contrariado pelo segundo. Funda-se na necessidade de se preservar a confiança legitimamente depositada na outra parte quando da prática do primeiro ato. Insere-se, ademais, na “teoria dos atos próprios”, segundo a qual se entende que a ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com sua anterior conduta interpretada objetivamente.

Anderson Schreiber coloca o venire contra factum proprium, tal como o faz a maioria da doutrina, com o instrumento de tutela da confiança. Explicita ele, no texto abaixo, como ela pode atuar no caso concreto para proteger o sujeito que confia no agir do outro:

“Para que se aplique o princípio de proibição do comportamento contraditório não basta um factum proprium. É preciso que tal factum proprium desperte em outrem uma legítima confiança na conservação do seu sentido objetivo. A confiança que se perquire aí não é um estado psicológico, subjetivo, daquele sobre quem repercute o comportamento inicial. Trata-se, antes, de uma adesão ao sentido objetivamente extraído do factum proprium. Somente na análise de cada caso será possível verificar a ocorrência ou não desta adesão ao comportamento inicial, mas sevem de indícios gerais não-cumulativos (i) a efetivação de gastos e despesas motivadas pelo factum proprium, (ii) a divulgação pública das expectativas depositadas, (iii) a adoção de medias ou a abstenção de atos com base no comportamento inicial, (v) a ausência de qualquer sugestão de uma futura mudança de comportamento, e assim por diante.

A existência do estado de confiança não exige demonstração absolutamente rigorosa. Pela própria função que o nemo potest venire contra factum proprium desempenha no sistema jurídico, qual seja, a de garantir efeitos jurídicos a situações de abusividade mantidas geralmente à margem da lei, pode o magistrado presumir a adesão ao comportamento inicial, a partir de circunstâncias fáticas presentes. A própria existência de um prejuízo sugere, normalmente, que o prejudicado aderiu, em alguma medida, ao factum proprium.

Não basta, todavia, o estado de confiança; é preciso que tal confiança seja legítima, no sentido de que deve derivar razoavelmente do comportamento inicial. Assim, a ressalva expressa de possibilidade de contradição por quem pratica o comportamento exclui, a princípio, a legitimidade da confiança. O nemo poteste venire contra factum proprium também não tutela a confiança do deslumbrado, que obtém financiamentos a juros elevados e adquire bens de alto valor, por conta dos resultados oriundos de uma futura contratação que ele tem como certa a partir de um convite para almoçar. Não há aí o estado de confiança legítima que o princípio exige, como não há naquelas situações em que a lei autoriza expressamente a contradição do próprio comportamento. Também se exclui, em regra, a legitimidade da confiança diante de comprovada má-fé por parte daquele que invoca a aplicação do princípio da proibição do comportamento contraditório.”[45]

Infere-se que a tutela da confiança não coincide com a tutela da boa-fé subjetiva, que é boa-fé psicológica do agente, mas daquela que objetivamente se extrai do comportamento inicial. A proteção da confiança, de qualquer modo, não se efetiva quando o beneficiário estiver comprovadamente de má-fé, agindo com dolo ou intuito de violar preceitos legais.

Os tribunais brasileiros vem reconhecendo o venire como instituto hábil a proteger a confiança legítima, como aparece no precedente seguir do Superior Tribunal de Justiça tratando de matéria de cunho administrativo:

 “Título de propriedade outorgado pelo poder público, através de funcionário de alto escalão. Alegação de nulidade pela própria administração objetivando prejudicar o adquirente: inadmissibilidade. Se o suposto equívoco no título de propriedade foi causado pela própria administração, através de funcionário de alto escalão, não há que se alegar o vício com o escopo de prejudicar aquele que, de boa-fé, pagou o preço estipulado para fins de aquisição. Aplicação do princípio nemo potest venire contra factum proprium” (STJ, 2ª Turma, RESP 47015/SP, Rel. Min. Ademar Maciel, DJ, 9-12-1997).

No âmbito do Direito Ambiental, invoque-se mais uma vez o citado autor Anderson Schreiber, que, embora não cite expressamente o bem ambiental como capaz de afastar o princípio da confiança, deixa patente, segundo esposado pela teoria externa dos direitos fundamentais, que direitos existenciais quase sempre obtêm maior peso que aquele em situações concretas:

“O nemo potest venire contra factum proprium consiste, pois, em princípio aplicável também a situações existenciais. Nada obstante, é de se observar que sobre tais situações frequentemente incidem outros princípios que, por serem expressões mais diretas da dignidade da pessoa humana e dos valores fundamentais da Constituição, adquirem, quase sempre, um peso maior que a proteção da confiança (como o direito à privacidade, o direito ao reconhecimento da origem biológica, etc.).“[46]

No plano jurisprudencial, o Tribunal Regional Federal 4ª Região rechaçou a invocação do venire contra factum proprium para socorrer empresário rural que teria aderido a uma política de fomento à atividade agrícola de um Estado da federação, que posteriormente veio adotar legislação mais restritiva em prol do meio ambiente:

“4. O venire contra factum proprium não pode ser aplicado a atos genéricos, mas apenas quando da existência da contradição de dois atos específicos, realizados pelo mesmo sujeito e separados no tempo. Assim, deveria ter sido comprovado, por exemplo, um ato específico de fomento, o que inexiste nos autos. Ademais, é infactível a aplicação da teoria do venire contra factum proprium às modificações legislativas realizadas por um Estado, argumentando que a mudança legislativa estatal viola a moralidade administrativa. Evidentemente, é descabida a argumentação de que não é dado ao Estado proibir a degradação ambiental de hoje, caso tivesse incentivado a exploração agrícola da região há mais de meio século atrás.“(TRF4 - APELAÇÃO CIVEL: AC 7007 PR 0000541-97.2009.404.700, Relator CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ D.E. 14/04/2010)

Um outro caso de (não) aplicação do venire contra factum proprium diz com a inércia dos órgãos do Sistema Nacional do Meio Ambiente-SISNAMA em exercer seu poder de polícia em relação a atividades lesivas ao meio ambiente, deixando a entender, a vizinhos dos empreendimentos, que não seriam ilícitos do ponto de vista ambiental. Acreditando então que podiam realizar construção em semelhantes lugares, são surpreendidos com ação fiscal, determinando a demolição das obras. Veja-se como isso foi tratado pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região:

Administrativo – Constitucional – Ação Civil Pública – Interrupção de Construção – Área de Preservação Ambiental – Existência de Termo de Compromisso com o Ibama – Questionamento da Atuação Administrativa da Autarquia – Potencial de Degradação Ambiental – Dilação Probatória Incompatível com o Recurso de Agravo de Instrumento (...) O simples fato de próximo ao local da construção já existirem empreendimentos potencialmente poluidores, que eventualmente tenham deixado de observar a legislação ambiental, não exime outros interessados de se submeterem ao procedimento adequado, vez que, por óbvio, não se admitem precedentes administrativos legitimadores da extensão de ilegalidades. (TRF 2, AGV 200402010126870, Relator Desembargador Federal Sergio Schwaitzer, Sétima Turma, DJU, p. 355, 30.05.2007)

Outra situação, demais a mais, de aplicação do preceito em tela é tratada no precedente logo abaixo, dizendo do ente federativo que havia num primeiro momento concedido licença ambiental para atividades em determinada área e, tempos depois, vem de criar um unidade de conservação na mesma região, caso em que as licenças foram tidas como canceladas por haver sido comprovado que as mesmas atividades poderiam acarretar danos na unidade de proteção ecológica criada[47]. Este o entendimento do STJ:

“A recorrida alega que, afastada a possibilidade de extração das árvores mortas, caídas e secas, seu direito de propriedade estaria malferido. Contudo, tal entendimento encontra resistência no art. 1.228, § 1o, do CC/2002. A preservação da flora, da fauna, das belezas naturais e do equilíbrio ecológico, na espécie, não depende da criação de parque nacional. A proteção ao ecossistema é essencialmente pautada pela relevância da área pública ou privada a ser protegida. Se assim não fosse, a defesa do meio ambiente somente ocorreria em áreas públicas. A formalização de qualquer das modalidades de unidade de conservação de proteção integral invalida as licenças ambientais anteriormente concedidas. Ademais, no caso, a pretendida extração é danosa ao ecossistema do parque, o que impede a concessão de novas licenças. REsp 1.122.909-SC, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 24/11/2009.”

5.5. Surrectio e supressio.

Tem-se a supressio na situação do direito que deixou de ser exercitado em certas circunstâncias e não mais poderá sê-lo, por contrariar a boa-fé e a legitima confiança despertada na outra parte. Trata-se da inadmissibilidade do exercício de um direito pela omissão ou pelo seu retardamento desleal, ou seja, pela violação às normais expectativas daquele que acreditava não mais exercitável o direito. Na surrectio, ao contrário, o exercício continuado de uma situação jurídica ao arrepio do convencionado ou do ordenamento jurídico vem a implicar nova fonte de direito subjetivo, estabilizando-se a situação para o futuro.

Segundo Nelson Rosenvald, supressio e surrectio são dois lados da mesma moeda; naquela ocorre a liberação do beneficiário; nesta, a aquisição de um direito subjetivo em razão do comportamento continuado. Em ambas preside a confiança, seja pela fé no não-exercício superveniente do direito da contraparte, seja pelo credo na excelência do seu próprio direito.[48]

Anderson Schreiber aponta a proximidade desses institutos com os da prescrição e decadência, dizendo que a principal função da supressio e surrectio é de temperar o rigor dos prazos legais daqueles institutos, em geral longos porque integrantes de codificações promulgadas ou concebidas em épocas de menor dinamismo e celeridade. Chama a atenção o autor, no entanto, para a necessidade de se averiguar, nas circunstâncias de um fato concreto, se havia motivo para o beneficiário do ato confiar na omissão de outro, em ordem a aplicar supressio e surrectio, atendido ainda o princípio da proporcionalidade[49].

É de se fazer menção, nesta quadra, ao trabalho do jurista Rafael Maffini, quem defendeu, em seu livro Princípio da Proteção Substancial da Confiança no Direito Administrativo Brasileiro, a preservação dos efeitos produzidos por um ato administrativo ilegal em favor de terceiros de boa-fé ou do destinatário não causador do vício, presente a confiança legítima na conduta estatal[50].

Em tema de Direito Ambiental, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tangencia o assunto quando cuida da teoria do fato consumado, capaz de preservar os efeitos jurídicos de determinadas situações que se prolongam no tempo em face da omissão do Poder Público. Sucede que também aqui a confiança legítima é afastada solenemente pelo Tribunal em favor do meio ambiente, conforme decisões a seguir citadas:

“ 3. Consoante bem pontuado pelo Ministro Herman Benjamin, no REsp nº 650728/SC, 2ª Turma, unânime: "(...) 11. É incompatível com o Direito brasileiro a chamada desafetação ou desclassificação jurídica tácita em razão do fato consumado. 12. As obrigações ambientais derivadas do depósito ilegal de lixo ou resíduos no solo são de natureza propter rem, o que significa dizer que aderem ao título e se transferem ao futuro proprietário, prescindindo-se de debate sobre a boa ou má-fé do adquirente, pois não se está no âmbito da responsabilidade subjetiva, baseada em culpa. 13. Para o fim de apuração do nexo de causalidade no dano ambiental, equiparam-se quem faz, quem não faz quando deveria fazer, quem deixa fazer, quem não se importa que façam, quem financia para que façam, e quem se beneficia quando outros fazem.  14. Constatado o nexo causal entre a ação e a omissão das recorrentes com o dano ambiental em questão, surge, objetivamente, o dever de promover a recuperação da área afetada e indenizar eventuais danos remanescentes, na forma do art. 14, § 1°, da Lei 6.938/81.(...)". DJ 02/12/2009. (REsp 1090968 / SP, DJe 03/08/2010, Relator Ministro LUIZ FUX)

Noutro compasso, é possível colher precedentes jurisprudenciais em que a proteção do meio ambiente foi afastada em prol de outro valor ou direito constitucional. Assim é que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, na AC 2006.72.04.0003887-4, veio de permitir, não se protestos, a manutenção de uma casa em área de preservação permanente fora das hipóteses de utilidade pública e interesse social, fundando o decisum no direito fundamental à moradia de uma família pobre, chefiada por uma mulher pescadora, que habitava o lugar “há largo tempo e com aquiescência do Poder Público”. Já o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no AG 20060100036692-5, entendeu legítima a demolição de residências edificadas à margem de uma das poucas fontes de água do Distrito Federal, considerada de preservação permanente.

De sua vez, o Superior Tribunal de Justiça, no REsp 403.190, manteve a condenação de proprietário de imóvel e do município de São Bernardo do Campo (SP) a remover famílias de local próximo ao Reservatório Billings, que fornece água a grande parte da cidade de São Paulo. A construção de loteamento irregular provocou assoreamentos, somados à destruição da Mata Atlântica. Ao manter a condenação, o ministro relator, João Otávio de Noronha, afirmou não se tratar apenas de restauração de matas em prejuízo de famílias carentes de recursos financeiros, que, provavelmente, deixaram-se enganar pelos idealizadores de loteamentos irregulares na ânsia de obterem moradias mais dignas, mas “de preservação de reservatório de abastecimento urbano, que beneficia um número muito maior de pessoas do que as residentes na área de preservação. “No conflito entre o interesse público e o particular, há de prevalecer aquele em detrimento deste quando impossível a conciliação de ambos”, concluiu o ministro.

A consolidação de ilícitos ambientais por longo período, presente a omissão estatal, é talvez mais saliente na questão das intervenções em Área de Preservação Permanente-APP em zona urbana. Sabe-se que as cidades brasileiras se desenvolveram ao longo do tempo em descompasso com a preservação ambiental, sobretudo por falta de planejamento urbano, sendo as áreas de preservação permanente as mais afetadas pelas construções ilegais ao longo das últimas décadas. A fim de regulamentar o disposto no artigo 4º do Código de Florestal, a Resolução CONAMA 396/06 estabeleceu os casos em que a intervenção e supressão nessas áreas são permitidas. No art. 2º, inciso II, “c”, autorizou-se a supressão de APP para regularização fundiária sustentável em área urbana, colocando-a como uma das hipóteses de intervenção por interesse social, tal como prevê o Código Florestal  no art. 1º, p. segundo, inciso V. O art. 9º autoriza a regularização em caso de ocupação de APP em locais de baixa renda predominantemente residencial, desde que consolidada até junho de 2001, atendidos ainda diversos outros requisitos, que chega a vinte. Nessa mesma senda, a Lei nº 11.977/09, que regulamenta o programa habitacional “Minha Casa Minha Vida”, estipulou que o município, em decisão motivada, possa admitir a regularização fundiária em áreas de preservação permanentes ocupadas até 2007 e inseridas em zona urbana consolidada, para assentamentos irregulares ocupados predominantemente por população de baixa renda, desde que estudo técnico comprove que esta intervenção implique a melhoria das condições ambientais em relação à sua situação de ocupação irregular anterior (artigos. 53 a 60). Essa diretriz legal tem sido alvo de críticas de ambientalistas, sendo certo, todavia, que, à parte as situações de utilidade e pública e interesse social previstas no art. 1º, incisos IV e V do Código Florestal, não será possível, ao menos do ponto de vista do legislador, a consolidação da invasão de APPs.

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Sobre o autor
José Ricardo Teixeira Alves

Promotor de Justiça do Estado de Goiás, titular da 8ª Promotoria de Justiça de Luziânia-GO, com atribuições na tutela do meio ambiente e da ordem urbanística. Pós-graduado pela Universidade Cândido Mendes-RJ e pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, José Ricardo Teixeira. Princípio da confiança e tutela ambiental: a primazia do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado sobre o direito de proteção à confiança legítima. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3163, 28 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21174. Acesso em: 20 abr. 2024.

Mais informações

Trabalho de conclusão do curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Ambiental da Escola Superior Verbo Jurídico e do Grupo Uniasselvi.

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