De início, faz-se oportuno seja transcrita a ementa[1] da Lei Complementar nº 140, de 08 de dezembro 2011, para se ver melhor delineada a matéria que se pretende aqui abordar. In verbis;
“Fixa normas, nos termos dos incisos III, VI e VII do caput e do parágrafo único do art. 23 da Constituição Federal, para a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora; e altera a Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981.”
A repartição de competências entre os entes que formam a República Federativa do Brasil (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) responde pelo cerne[2] do próprio Estado Federado.
As competências - no ensinamento de José Afonso da Silva - são as diversas modalidades de poder de que se servem os órgãos ou entidades estatais para realizar suas funções, suas tarefas e seus serviços[3].
O modelo adotado pela Carta Política de 1988 empreendeu no sentido de equilibrar a federação através de uma repartição de tarefas.
Para a presente análise, vai-se tratar apenas das competências matérias, dos afazeres ou das missões administrativas, não se tocando nas competências formais (legislativas).
Essa repartição de tarefas e de atuações tem por fim a garantia da efetivação dos princípios, fundamentos e objetivos pactuados no texto constitucional. Por isso, a disposição dessas mesmas competências materiais (administrativo-operacionais) não é padronizada nem perene no discorrer dos artigos da Constituição Federal de 1988, havendo momento em que ela é exclusiva, e momento em que ela é comum aos entes federados, exigindo atuação em conjunto por parte desses entes.
A competência material (estipulação de afazeres) prevista no art.23 da Carta Magna de 1988 é a do tipo comum. E não poderia ser diferente, pois se elencou, nos incisos daquele artigo, uma série de bens e direitos, cujos valores transcendem à guarda e aos cuidados de apenas um único ente federado.
Tarefa sobremaneira pesada e notoriamente arriscada seria a de se atribuir tal responsabilidade a ente qualquer de modo isolado, posto que tratam os incisos do art. 23 da CF de 1988 de assuntos de elevado interesse público e de relevantes temas coletivos e nacionais.
Veja-se, da dicção do art.23 da Constituição Federal de 1988, o que guardou o constituinte em sede de cuidado das três esferas de poder:
“CF/88, art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público;
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;
IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural;
V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;
VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;
VII - preservar as florestas, a fauna e a flora;
VIII - fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar;
IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;
X - combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos;
XI - registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios;
XII - estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito.
Parágrafo único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.”
De interesse à garantia de um meio ambiente ecologicamente equilibrado - já que esse é um direito subjetivo garantido a todos pertencentes a esta e às próximas gerações[4] - tem-se, claramente, os incisos III, VI, VII e XI, do art.23 acima transcritos. E, em segunda vista, os incisos VIII, IX e X que também tocam na questão da proteção ambiental.
A Lei Maior determina, no art.225, que o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado é essencial à qualidade de vida, constituindo-se em um bem de uso comum do povo, ou seja, que o meio ambiente sadio é um direito difuso, promotor da fraternidade (da terceira geração dos direitos e garantias individuais e coletivos), mais que público e muito mais que privado. Foi por essa razão que o constituinte colocou o capítulo dedicado especificamente ao meio ambiente, justamente no título que trata da ordem social.
As competências materiais (atuações) em matéria ambiental dispostas nos incisos do art.23 da CF de 1988, já referidas acima, são do tipo comum e devem ser assim exercidas em defesa do bem (meio ambiente equilibrado), perfeitamente sacralizado pelo texto constitucional, por tudo que significa para a manutenção da vida no planeta Terra.
A marcação da ação conjunta proveniente dessa competência comum foi bem salientada com o uso da expressão “normas de cooperação”, utilizada, no parágrafo único do art.23, que prevê a edição de leis complementares que fixarão normas para a cooperação entre os entes federativos, objetivando o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar no Brasil. Isto é: as normas oriundas dessas leis complementares apenas harmonizarão o exercício das competências que a Constituição asseverou como sendo comum, por força da importância que reveste a matéria ambiental, conforme já se tratou aqui.
Se a previsão constitucional do parágrafo único do art.23 se refere explicitamente à edição de “normas de cooperação” - como logicamente haveria de ser por conta da natureza de grande importância e interesse difuso e de difícil defesa que é a qualidade do meio ambiente - não deve o legislador, não-investido na condição de constituinte, dizer norma que modifique o conteúdo, o sentido e o alcance do que arrematou o constituinte com primazia.
O professor Marcelo Neves, em trabalho que defendeu para ocupar o cargo de Professor Titular da Faculdade de Direito do Recife – UFPE, trouxe a idéia de “constitucionalização simbólica”, a qual abria a discussão acerca do significado político e social dos textos constitucionais face à sua concretização normativo-jurídica. Nesse sentido, abordou claramente a distância que existe entre o que é escrito simbolicamente na Constituição e o que é concretizado na prática, na convivência social.
No caso em análise, verifica-se que o caminho da tese do professor Marcelo Neves foi percorrido de trás para frente quando da elaboração do texto da Lei Complementar nº140 de 2011, pois o que era concretizado na prática social e experimentado pela sociedade (exercício de competência comum em matéria ambiental) quer ver o legislador que seja, a partir da nova lei, apenas de cunho simbólico, e, certamente, inoperante e arriscado à manutenção da qualidade de vida.
Ora, claro é que não pode o legislador infraconstitucional, por meio de lei complementar, modificar, e pior ainda, desnaturar instituto insculpido no maciço constitucional, quando, em verdade, era o papel dessa mesma lei o de fazer o sistema de competência comum, de modo mais harmônico, melhor realizar o seu mister, no caso, salvaguardar o meio ambiente, que é bem de todos, inalienável, imprescritível e indisponível.
Ao arrepio do claramente expresso no texto constitucional, e, contra a correnteza do caudaloso rio que é o direito constitucional a um meio ambiente preservado e equilibrado, vem a Lei Complementar nº 140 de 2011, porque subverte a sua própria condição de existir e desnatura o caráter cooperativo fundamental à execução das ações de competência comum em matéria ambiental, tentando introduzir norma que, em vez de proporcionar a cooperação entre os entes públicos, isola-os, e os isola diante de tarefas que exigem, justamente pela natureza do objeto protegido (meio ambiente), uma ação conjunta e articulada.
Víctor Gabriel Rodríguez lembra bem que o conhecimento jurídico propriamente dito representa, então, uma série de informações que se encontram à disposição do argumentante, mas essas informações por si mesmas não garantem a capacidade de persuasão[5]. Ou seja, não se pode pretender a aceitação sem questionamentos judiciais de normas como essas veiculadas pela Lei Complementar nº140 de 2011, quando nelas não se notam o mínimo de adequação ao ideal de garantia ao meio ambiente fortemente apregoado na Constituição Federal de 1988.
Dita Lei Complementar nº 140 de 2011, talvez como tentativa ilusória de persuasão, até começa falando na cooperação de que trata o parágrafo único do art.23 da CF de 1988. In verbis:
“LC 140/2011, art. 1º Esta Lei Complementar fixa normas, nos termos dos incisos III, VI e VII do caput e do parágrafo único do art. 23 da Constituição Federal, para a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora.” (grifos nossos)
Em seu art.5º, a LC 140/2011 ainda caminha próximo ao ditame constitucional, embora que já dele começando a se apartar, na medida em que trata da possibilidade da delegação da execução das ações administrativas ligadas à proteção do meio ambiente, por meio de convênio, quando se sabe que a norma prevista na CF de 1988 determina ações conjuntas, não havendo de se falar em delegação, visto que a competência comum é para ser exercida por todos os entes elencados no art.23 (União, Estados, Distrito Federal e Municípios). Veja-se o teor do art.5º da Lei Complementar nº140, de 08 de dezembro de 2011:
“LC 140/2011, art. 5º. O ente federativo poderá delegar, mediante convênio, a execução de ações administrativas a ele atribuídas nesta Lei Complementar, desde que o ente destinatário da delegação disponha de órgão ambiental capacitado a executar as ações administrativas a serem delegadas e de conselho de meio ambiente.” (grifos nossos)
Contudo, é só adentrar mais um pouco em seus artigos, que vai se percebendo a troca radical, a desnaturação do sentido e do alcance da idéia constitucional de cooperação entre entes, para a idéia inconstitucional de isolacionismo e exclusividade, ainda que velada, conforme traz a recente LC 140 de 2011.
Exemplos mais gritantes dessa inversão de posição (de coordenar para ordenar, de harmonizar para isolar) encontram-se nos artigos 7º, 8º e 9º. Artigos esses que tratam de individualizar certas competências a cada ente federativo. Aí, o que é para ser conjunto passa a ser isolado, pois transforma competência comum em competência exclusiva (ainda que delegável, cuja incongruência se faz ainda mais notória). Tudo isso em veículo normativo de natureza complementar (lei complementar).
Leciona Édis Milaré - quando se refere aos deveres específicos do poder público, dispostos no art.225 da CF/88, mais precisamente ao dever de preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais – onde defende que as ações governamentais devem ser conjugadas (uma não podendo esperar pela outra), porque isso é que garantirá os processos naturais funcionando e o ambiente em salubridade[6].
Há muitos pontos em que a Lei Complementar nº 140 de 2011 é fartamente inconstitucional, mas um desses pontos - até pelo grau de risco à manutenção e à preservação do meio ambiente - merece a atenção especial na análise que aqui se pretende, são eles os das normas trazidas no art.9º, XV, “a” e “b”, conforme segue:
“LC 140/2011, art. 9º São ações administrativas dos Municípios:
I a XIV – omissis.
XV - observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, aprovar:
a) a supressão e o manejo de vegetação, de florestas e formações sucessoras em florestas públicas municipais e unidades de conservação instituídas pelo Município, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); e
b) a supressão e o manejo de vegetação, de florestas e formações sucessoras em empreendimentos licenciados ou autorizados, ambientalmente, pelo Município.” (grifos nossos)
Dos trechos acima transcritos, constata-se a “nova” competência trazida aos Municípios, no tocante à aprovação de manejo, e pior ainda, de supressão de vegetação e de florestas, quando se sabe muito bem não estarem os Municípios aparelhados com ferramentas imprescindíveis para a consecução dessa tarefa.
O IBAMA (Instituto Nacional do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), após largo período de desenvolvimento e consolidação, é quem melhor reúne condições de exercer a competência ligada ao manejo e à supressão de vegetação e de florestas. O IBAMA possui tecnologia de informação, de visualização e rastreamento por satélite, possuindo, ainda: veículos terrestres possantes e traçados, embarcações e helicópteros, dentre outros instrumentos que serão de dificílimo acesso aos Municípios.
Não bastasse essas dificuldades impostas pela falta de recursos por parte da esmagadora maioria dos Municípios, sabe-se bem que é no ente local (Município) onde as pressões políticas atuam mais diretamente e com mais intensidade, o que pode colocar em risco a garantia da defesa do meio ambiente.
Insta salientar que as florestas têm proteção tão acentuada na CF de 1988 que, além das previsões de zelo tratadas no art.23 já citado, há expressa disposição no art.225, §4º, qualificando-as como patrimônio nacional. In verbis:
“CF/1988, art.225, § 4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.” (grifos nossos).
Quanto aos Estados e ao Distrito Federal, a preocupação não é menor, porque já faz tempo que se intensificou um fluxo de empreendimentos poluidores de Estados mais rigorosos para Estados menos cuidadosos com as atividades poluidoras e danosas ao meio ambiente. Esse movimento foi chamado pela doutrina ambientalista de “transferência de indústrias sujas”. Tudo isso “juridicamente aceito” em nome do “desenvolvimento”.
Se no Direito civil é possível o ideário jurídico vencer a constatação biológica (definição dogmática da idade para se ter a capacidade civil relativa ou plena), e no Direito Penal o jurídico suplanta o físico e o biológico (na definição do começo da vida a partir da nidação[7] e do fim da vida na morte encefálica), no Direito Ambiental, os processos sistêmicos e ecológicos é que precisam lastrear a idéia jurídica a ser firmada como norma.
O ordenamento jurídico, infelizmente, ainda aceita ser contornado, com o uso de estratégias processuais que minimizam bons direitos e potencializam maus direitos, em meio a guetos e chicanas que as leis do processo insistem em perpetuar. O ordenamento ambiental, por seu turno, é regido pelas leis da natureza, que não reconhecem fronteiras e não têm paciência diante de abusos e distorções.
Ademais, o Princípio da Precaução, que embasa e norteia o Direito Ambiental, defende que diante de incerteza científica quanto a dano que poderá sofrer o meio ambiente é obrigatória a adoção de medidas que evitem ou mitiguem esse possível dano, pois “in dúbio pro natura”.
Aplicando-se o Princípio da Precaução à produção normativa - já que essa Lei Complementar nº 140 de 2011 não consegue dar a certeza que se espera diante de diploma legal que verse sobre bem jurídico tão tutelado e imprescindível como é a qualidade do meio ambiente - em caso de dúvida, todos em prol da natureza.
Mesmo diante do risco que enfrenta todo aquele que passa a analisar diploma normativo recente e que sequer foi esmiuçado pela doutrina, como é o caso da Lei Complementar nº140 de 2011, pode-se ter a certeza de que algumas das normas trazidas por essa Lei não resistirão às primeiras flechas dos primeiros arqueiros do batalhão de defesa da Constituição Federal de 1988.
Do exposto, clara é a gritante inconstitucionalidade das normas dispostas na Lei Complementar nº140 de 2011 que pretendem trazer para os cuidados isolados dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios matérias cuja importância e a natureza do objeto protegido devem permanecer, para esta e para as futuras gerações, sob a proteção nacional e cuidada conjuntamente por todos os entes federados.
O direito a um meio ambiente equilibrado e adequadamente protegido, por estar inserido no rol dos direitos individuais fundamentais, é cláusula pétrea e não pode ser mitigado como assim tentou a Lei Complementar nº 140, de 08 de dezembro de 2011. Frise-se, mais grave ainda, que não pode ser esse direito abolido nem por emenda à Constituição Federal, conforme determina o art.60, §4º, IV da Carta Magna de 1988.
Notas
[1] LC nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, “art. 5º. A ementa será grafada por meio de caracteres que a realcem e explicitará, de modo conciso e sob a forma de título, o objeto da lei.”
[2] Vocábulo que, na literatura das ciências biológicas, representa a parte central do tronco das árvores e tem função estrutural. Como figura de linguagem, aqui é usado como parte muito importante, âmago.
[3] SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 9ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. p.74.
[4] Constituição Federal de 1988, art. 225. “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.”
[5] Rodríguez, Víctor Gabriel. Argumentação Jurídica. 4ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.6.
[6] Milaré, Édis. Direito do Ambiente. 6ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p.158.
[7] Momento em que o embrião se fixa na parede do útero.