A responsabilização civil do Estado encontra origem no Direito Civil, ramo do Direito que originalmente trata da matéria. “O Estado, por se sujeitar à ordem jurídica, é responsável perante os administrados, por danos que porventura lhes venha infligir. Possui, assim, obrigação de reparar danos causados a terceiros”[1].
Antes de enfrentarmos a problemática, cumpre registrar a evolução histórico-doutrinária da responsabilização civil do Estado, dividida nas seguintes etapas: irresponsabilidade, “o rei não pode errar”; culpa civil, o Estado é responsável, desde que identificado o agente causador do dano e provados dolo ou culpa; culpa anônima ou administrativa, falha atribuída ao serviço; risco administrativo, o Estado responde independentemente de dolo ou culpa, e risco integral, similar à anterior, sem que haja excludentes de responsabilidade.
Vê-se, desde logo, que “não mais se concebe, no mundo civilizado, Estado irresponsável. Os EUA e a Inglaterra, os últimos refratários, abandonaram a teoria de irresponsabilidade em 1946 e 1947, respectivamente”[2]. No Brasil, de acordo com a Constituição Federal, a responsabilidade do Estado é objetiva, nos seguintes termos:
“Art. 37, § 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”
Pode-se notar, dessa forma, que a responsabilidade civil objetiva do Estado brasileiro, via de regra, dar-se-á por atos comissivos dos agentes públicos que atuem nessa qualidade, numa mera relação causal entre o comportamento e o dano (teoria do risco administrativo). Mas, também, pode dar-se por atos comissivos, não sendo, nesse caso, necessário a individuação do agente, dado que pode ser atribuída ao serviço público, de forma genérica, à falta do serviço (faute du service), sendo de natureza subjetiva.
No entanto, há situações em que, mesmo diante de uma omissão, o Estado brasileiro responde objetivamente.
“Nessas situações, em que o Estado está em posição de garante, quando tem o dever legal de assegurar a integridade de pessoas ou coisas sob sua custódia, guarda ou proteção direta, responderá ele com base na teoria do risco administrativo, terá responsabilidade extracontratual objetiva pelo dano ocasionado pela sua omissão às pessoas ou coisas que estavam sob sua custódia ou sob sua guarda”[3].
Seria o caso, por exemplo, de uma lesão sofrida por um preso em uma briga com outro companheiro de penitenciária. Não se tem, aí, uma atuação de um agente público apta a causar um dano e sim uma omissão estatal, que correspondeu à falta de atuação diligente, a fim de impedir a lesão sofrida por uma pessoa que estava sob sua custódia. Essa é a Teoria do Risco Criado ou Suscitado.
“Existe, a rigor, nessas hipóteses, uma presunção a favor da pessoa que sofreu o dano: a presunção de que houve uma omissão culposa do Estado. Assim, a pessoa que sofreu o dano não precisa provar a “culpa administrativa”, uma vez que esta é presumida. Como não há necessidade de provar a “culpa administrativa”, a responsabilidade é do tipo objetiva. A modalidade é do risco administrativo porque admite excludentes, por exemplo, o Estado pode provar (o ônus da prova é dele) que era impossível evitar o dano da pessoa que estava sob sua custódia porque o resultado danoso ocorreu exclusivamente de um evento caracterizado como força maior”[4].
Ora, é de conhecimento comum que para a caracterização da responsabilidade civil extracontratual do Estado são necessários, sinteticamente, os seguintes elementos: a) ato lesivo causado pelo agente; b) ocorrência de um dano patrimonial/econômico ou moral; c) nexo de causalidade entre o dano havido e o comportamento do agente; d) alteridade, no sentido de o prejuízo ter sido provocado por outrem.
Fundamentando-se na alteridade, observa-se que nem sempre o Estado será responsável pelos atos danosos causados a terceiros, havendo situações de excludentes total ou parcial da responsabilidade do Estado, como na ocorrência de: a) culpa exclusiva da vítima; b) caso fortuito/força maior; c) fato exclusivo de terceiro.
Ao analisarmos a Teoria do Risco Criado ou Suscitado, nota-se que o Estado responde objetivamente mesmo diante de fortuito interno (caso fortuito). Fortuito interno, que surge de situações não rotineiras (excepcionais) que decorrem do risco criado. Somente em caso de fortuito externo (força maior) haverá exclusão da responsabilidade estatal, devido à imprevisibilidade.
Pois bem, surge, então, a pergunta: O suicídio de detentos em presídio é caso fortuito ou força maior?
Veja-se, abaixo, ementas de alguns julgados sobre o assunto em tela:
“TJ PR
APELAÇÃO CÍVEL. ADMISTRATIVO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. MORTE DO DETENTO EM CADEIA PÚBLICA. SUICÍDIO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. NÃO CONFIGURADA. EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE. CARACTERIZADA. CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA. DEVER DE INDENIZAR. INEXISTENTE. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. (7677598 PR 0767759-8, Relator: Dimas Ortêncio de Melo, Data de Julgamento: 07/06/2011, 3ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ: 658, undefined)”
“TJ MG
SUICÍDIO DE DETENTO. PRISÃO LEGAL E REVESTIDA DAS FORMALIDADES PRÓPRIAS. INDENIZAÇÃO DE FAMILIARES - DESCABIMENTO - CULPA DO LESADO - RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO SEGUNDO A TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO - PRECEDENTES DO STF. (TJMG – Processo nº 1.0569.05.001953-2 – Relator: Audebert Delage - DJ 23/09/08)”
“TJ RS
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. MORTE DE DETENTO EM PRESÍDIO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. DEVER DE ZELAR PELA INTEGRIDADE FÍSICA DO APENADO. DANO MORAL. CABIMENTO. QUANTUM. MANUTENÇÃO. (AC 70040060261 RS, Relator: Jorge Alberto Schreiner Pestana, Julgamento: 30/06/2011, Décima Câmara Cível, Diário da Justiça do dia 22/07/2011)”
Nota-se que as decisões variam, a depender do caso concreto.
Agora, respondendo à pergunta feita anteriormente, pode-se dizer que o suicídio é caso fortuito. Mas, nem o Código Civil, nem as leis administrativas distinguem caso fortuito de força maior. As mais variadas doutrinas, por vezes, diferenciam, por vezes, igualam os conceitos. O fato é que, em ambos, o resultado é inevitável. Saber, então, se determinado imprevisto se deu por caso fortuito ou força maior é uma questão para ser analisada caso a caso, processo a processo.
Entretanto, a princípio, podemos dizer que o dever de vigilância a ser exercido pelo Estado, em relação aos detentos, tem por fim evitar a ocorrência de eventos danosos às pessoas encarceradas. O Estado assume o ônus de zelar pela higidez física e mental do preso. Portanto, agressões, homicídios e suicídios não constituem elemento surpresa no âmbito carcerário, sendo situações constantes em presídios, o que demanda o dever de vigilância efetivo. Nesse sentido, entende-se que, por constituir fortuito interno (caso fortuito), o suicídio de detentos, a priori, não exclui a responsabilidade do ente público.
Por fim, cumpre ressaltar que o STF e STJ já firmaram jurisprudência no sentido de que, com a prisão do indivíduo, o Estado assume o dever de cuidar de sua incolumidade física, quer por ato do próprio preso, quer por ato de terceiro. Ao receber o detento na cadeia pública, a Administração Pública assumiu o grave compromisso de velar pela sua integridade física e psíquica, devendo empregar todos os meios necessários ao integral desempenho desse encargo jurídico. Descumprida tal obrigação, e vulnerada a integridade corporal do preso, emerge a responsabilidade civil objetiva da Fazenda Pública por danos materiais e morais, acaso existentes.
REFERÊNCIAS
ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Administrativo Descomplicado. – Marcelo Alexandrino, Vicente Paulo. – 19ª ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense. São Paulo: Método, 2011.
BRASIL. Constituição da República Federativa.
JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional. – 5ª ed. rev. ampl. e atual. – Bahia: JusPodivm, 2011.
JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Administrativo. – 9ª ed. rev. ampl. e atual. – Bahia: JusPodivm, 2010.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. – 7ª ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011.
TJ MG - Processo nº 1.0569.05.001953-2. Disponível em: <http://www.legjur.com/jurisprudencia/jurisp_index.php?palavra=Responsabilidade+civil+do+Estado&opcao=3&chkeme=on&pag=400>. Acesso em 04/03/2012.
TJ PR – Apelação Cível: AC 7677598 PR 0767759-8. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19827216/apelacao-civel-ac-7677598-pr-0767759-8-tjpr>. Acesso em: 04/03/2012.
TJ RS – Apelação Cível: AC 70040060261 RS. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/20120774/apelacao-civel-ac-70040060261-rs-tjrs>. Acesso em 04/03/2012.
Notas
[1] JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional. – 5ª ed. rev. ampl. e atual. – Bahia: JusPodivm, 2011, p. 945.
[2] Idem.
[3] ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Administrativo Descomplicado. – Marcelo Alexandrino, Vicente Paulo. – 19ª ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense. São Paulo: Método, 2011, p. 764.
[4] Idem.