O profissional que constitui uma pessoa jurídica perde a possibilidade de valer-se da teoria subjetiva (exceção à regra geral de responsabilidade civil objetiva do CDC)?
Para alcançarmos essa resposta, é necessário entender o alicerce da norma consumerista. Nesse sentido, muito se fala, escreve, comenta, cita. Respeitando os iniciantes nessa trajetória, de forma sucinta e superficial, mas, pouco controvertida, faço algumas considerações basilares.
O Código de Defesa do Consumidor nasceu da necessidade de salvaguardar os direitos do consumidor frente à exploração em massa do mercado de consumo. Trata-se de um microssistema, com comandos de direito material e processual pertinente às particularidades da relação entre fornecedor e consumidor, em outras palavras, entre desiguais.
Quis o legislador romper com a regra geral da teoria da responsabilidade subjetiva adotada pelo Código Civil, permitindo, essa, nas relações de consumo, apenas em caráter excepcional (apuração da responsabilidade do profissional liberal, ressalva feita no §4º do artigo 14 do CDC).
A explicação para essa ruptura é facilmente compreendida, se o estudioso do Direito constatar o que difere uma norma da outra. Explico: em abstrato, o Código Civil, regula as relações entre iguais, razão pela qual torna-se necessário aferir a responsabilidade das partes, aprofundando-se no âmago da controvérsia: a intenção de cada parte (elemento subjetivo). Isso porque, sem essa apuração subjetiva, não seria possível diferenciá-las. No âmbito do CDC, o legislador reconheceu e positivou a desigualdade entre fornecedor e consumidor, impondo, para esse primeiro, nitidamente superior, o dever objetivo de indenizar sempre que causar um dano, independentemente de culpa.
A regra geral da teoria objetiva no CDC tem o condão de estimular o respeito aos princípios que visam equilibrar essa relação, ao passo que, teoricamente, desestimula os danos ou lesões. A ponderação feita, com a utilização do termo “teoricamente” é proposital, porque o que se vê hoje são fornecedores de massa que exploram esse mercado sem respeito algum aos limites no mínimo moralmente aceitos. Como exemplo, cito a recorrente situação em que o fornecedor mascara no preço cobrado pelo serviço todas as indenizações com que ele habitualmente arca, em virtude das microlesões propositalmente causadas e diga-se, lucrativas.
Algum desavisado poderia até questionar: como pode o fornecedor conhecer a lesão e optar por não saná-la? Simples, meu caro, porque ao ponderar a pequena parcela de consumidores que acionam o judiciário, para reclamar essas lesões, torna-se viável economicamente mantê-las. Por óbvio, não estamos a tratar do lucro lícito e legítimo que se espera alcançar em uma sociedade capitalista, aqui, descrevemos situações cotidianas de lucro ilícito emanado da proliferação da impunidade.
E, nesse raciocínio, encontramos a resposta para a indagação proposta.
Considerando que o legislador excepcionou a responsabilidade do profissional liberal, assegurando-lhe a teoria subjetiva que não tornará o dever de indenizar direto, automático (como na objetiva) mas, sim, decorrente da apuração da culpa que permite ao magistrado mensurar as facetas desta, para alcançar o valor da indenização ou até mesmo a inexistência do dever de prestá-la. Faz-se necessário, entender, quem é profissional liberal.
Em que pesem vários conceitos e requisitos construídos de diferentes formas na doutrina, ouso, neste momento, limitá-los em apenas dois elementos essenciais que estão presentes na prestação de serviços desses profissionais: pessoalidade e confiança. A partir desses elementos, teço um breve conceito meramente didático: profissional liberal é aquele que exerce uma atividade para qual se habilitou com especificidades, se destacando dos fornecedores de massa, por manter uma relação pessoal e de confiança com o consumidor.
Trata-se de profissionais que não possuem uma atuação competitiva, fomentada por interesses comerciais. Ao contrário, por serem desprovidos desse enfoque, a viabilização de sua atuação é construída ao logo dos anos, de forma íntegra.
Insurgimos, então, na ferida do assunto: o profissional liberal, ao constituir uma pessoa jurídica, deixa de ser profissional liberal perante o CDC, devendo responder de forma objetiva pelos danos causados?
Para os militantes assíduos do CDC, a resposta direta e convicta seria o “sim”, sob fundamentação de que, ao constituir a pessoa jurídica, esse profissional passou a explorar o mercado de consumo e objetivamente, assumiu os riscos inerentes à sua atividade de lucro (dentre vários outros argumentos pertinentes a essa fundamentação).
Data máxima vênia, tenho ressalvas para essa tese. A meu ver, esse raciocínio parece objetivar não apenas a teoria aplicada, mas, também todas as situações, sem considerar suas peculiaridades ou as subjetividades de cada lide. Essa resposta direta, talvez nos remeta ao sistema de prestação jurisdicional tarifado, desprovido de qualquer efetividade concreta.
Parece mais prudente entendermos que, em tese, a pura constatação da existência de uma pessoa jurídica não afasta a ressalva do profissional liberal (artigo 14, §4º do CDC).
Antes do prejulgamento, é necessário aferir se a constituição dessa pessoa jurídica tem o condão de massificar os serviços prestados ou apenas de resolver critérios burocráticos que assolam diariamente esses profissionais.
Se essa constituição visa sobretudo a massificação da prestação dos serviços, forçosamente, compartilharei da tese do sim e, pelas mesmas razões que ataquei.
No entanto, tendo essa pessoa jurídica a finalidade de solucionar questões meramente administrativas, creio que estamos diante de uma pessoa jurídica que não retirou do profissional liberal a relação complexa de confiança e pessoalidade inerente à prestação de seus serviços, portanto, ao responsabilizá-lo de forma objetiva, inegavelmente estaremos impondo uma modalidade de responsabilidade desproporcional aos limites de sua atuação, pois a condenação, estaria calcada em um panorama macro, do qual ele não se beneficia.
Não se pode esquecer que essa exceção na forma de apuração da responsabilidade dos profissionais liberais visa estimular a profissionalização e atuação dos profissionais de uma forma menos afetada pela massificação, incentivando relações que ultrapassam a atividade de lucro, mantendo-se humanizadas.
Se assim não fosse, pouquíssimos profissionais se arriscariam a ingressar em estudos que, posteriormente, em uma eventual apuração de responsabilidade, sua atuação fosse aferida de forma generalizada, sem a mínima consideração das especificidades inerentes aos motivos que ensejaram sua conduta, culposa ou não.