O desenvolvimento da Física enquanto ciência prática possibilitou avanços tecnológicos que colocaram o homem na lua, levaram seus olhos a bilhões de anos-luz da Terra e seu conhecimento a segundos após o Big-Bang. Mas outras formas de conhecimento também alcançaram avanços: o capitalismo, enquanto modo organizado de produção, transformou a humanidade numa verdadeira máquina produtiva, sendo cada ser humano uma pequena engrenagem desse grande processo que mobiliza até as entranhas do Planeta Azul.
Essas pequenas engrenagens merecem maior destaque. São investimentos de capital. Aquilo que produzem deve sempre ser mais do que consomem, em tese. (Sabe-se que isso não ocorre, pois se assim fosse, não haveria o endividamento patológico que de tempos em tempos assola as classes trabalhadoras.) Para que sejam produtivas, portanto, há de haver coaching. A plena performance é resultante dos gritos do treinador, dos incentivos financeiros, da pressão do comandante. Leadership. Pressão.
Essa palavra se relaciona com um invento maravilhoso: a panela de pressão. O conceito é tão grandioso quanto diamantes artificiais: com pressão regulada, pode-se desde amolecer (ou cozinhar) vegetais e carnes, cavar buracos em seco no leito de rios profundos, e até transformar carbono-carvão em carbono-zircônia, ou diamantes artificiais. Mas o processo é crítico: pequenos erros podem conduzir a grandes cataclismos. Quem nunca ouviu falar de uma panela de pressão estourada? Ou de uma caldeira que explodiu? Ou de trabalhadores mortos dentro de campânulas de prospecção que implodiram por falhas na regulagem da pressão?
O capitalismo tem seus graus de pressão, assim como suas válvulas. Nos primórdios das Revoluções Industriais, a pressão era imensa, como demonstram Leo Huberman, em “A História da Riqueza do Homem” (1983), ou Eduardo Galeano, em “As Veias Abertas da América Latina” (2010). E sem válvulas, não houve outro resultado: irromperam revoluções proletárias em diversas partes do mundo. México, Rússia, China, Cuba, só para mencionar algumas. E por que não se disseminaram, como era da expectativa dos que adotavam o “Manifesto Comunista” de Marx e Engels como credo? A resposta está num mecanismo simples e eficaz: a válvula de pressão, usada à exaustão nos tempos modernos.
Do mesmo modo como a panela de pressão (e as grandes caldeiras) não explodem devido ao eficiente funcionamento de uma pequena válvula, que alivia o excesso de pressão para que o sistema não entre em colapso, o capitalismo também produz suas próprias válvulas de pressão. As primeiras válvulas foram concessões às demandas dos proletários: descanso semanal; jornadas de trabalho limitadas a 12, 10 ou 8 horas, conforme a demanda (ou pressão); assistência social em caso de acidentes; e muito mais.
Seria uma injustiça para com os jornais e programas de televisão sensacionalistas deixar de mencioná-los: os “Agoras”, “Urgentes”, de tantos “Geraldos”, “Márcias”, “Ratinhos” e outros deboches. Seu trabalho é fundamental para representar a voz dos excluídos do poder, de falar em trombetas o que ninguém do povo consegue falar em alto e claro volume.
Cada demanda (ou aumento de pressão) deve corresponder a uma reação específica do capitalista, seja a concessão de um benefício social ou até a proclamação de direitos fundamentais. Sim, proclamações de direitos!
Karl Marx afirmou que condições extremas de opressão sobre a classe proletária catalizariam definitivamente a revolução por toda a Terra. Bem avisados, os capitalistas americanos criaram um sistema em que o proletário haveria de ter suas necessidades básicas satisfeitas: o wellfare state. Ele cumpriu sua função ideológica de gerar confiança no sistema capitalista. Depois que essa confiança se estabeleceu definitivamente, não era mais necessário, e foi descartado. Afinal, válvulas maiores e mais eficientes se produzem a cada dia, assim como os pequenos aumentos de salário. Igualmente, até que cumpram sua função...
A iconografia da riqueza, a propaganda, o cinema, todos cumprem sua função ideológica. Não importa que apenas um pequeno número de proletários seja contemplado: a mera expectativa de recompensa é suficiente para manter o animal de carga em movimento, como o burro de carroça que persegue a cenoura, espetada na ponta de uma vara empunhada pelo carroceiro, diante de seus olhos. Na verdade, a expectativa não é realidade.
Não é fácil realizar a justiça social num sistema em que predomina a concentração da riqueza. [...] Um regime de justiça social será aquele em que cada um deve poder dispor dos meios materiais de viver confortavelmente segundo as exigências de sua natureza física, espiritual e política. Um regime democrático de justiça social não aceita as profundas desigualdades, a pobreza e a miséria. (SILVA, 1999, p. 141.)
As instabilidades do capitalismo, resultantes de sua própria natureza oscilante, aumentam a pressão sobre as engrenagens, ou melhor, sobre as classes trabalhadoras. Como evitar insurgências, motins, insubordinações e greves? Melhor que isso: como evitar que a produção pare? Concedam-se direitos! Nada melhor do que declarar direitos, e criar expectativas de uma vida melhor para filhos e netos! Depois de declarados os direitos, as massas de trabalhadores se acalmam, e pacientemente hão de esperar a implementação desses direitos. Mas essa implementação não é tão urgente, afinal. Ela se conforma à realidade, à possibilidade, reconhecido que os direitos fundamentais são “normas programáticas”, a se realizarem somente quando possível. (SILVA, 1999.)
A opressão não conhece limites. Ela tem de continuar para que continue a produção. Na América Latina ela é multisecular: tratada como fonte inesgotável de ouro, prata, ferro, chumbo, cana-de-açúcar, café, borracha, laranjas, cereais, força humana barata de trabalho, a pressão é aliviada por válvulas ideológicas. Desde a Constituição Mexicana de 1917 até as mais recentes Constituições da Bolívia e do Equador, todas declaram direitos. Todas aliviam as tensões decorrentes da negação de condições materiais de vida confortáveis (não necessariamente ociosas) que a distribuição justa de renda poderia criar. Todas transformam o revolucionário impulso de contestação à acumulação de renda em expectativa de satisfação, em necessidade de cooperação com governos rotulados de “populares”, ou “trabalhistas”, ou “socialistas”.
Enquanto isso, a pressão pode ser mantida alta, e a produção pode continuar, para o lucro de quem deve lucrar.
REFERÊNCIAS
CAMARGO, Alfredo José Cavalcanti Jordão de. Bolívia – A Criação de Um Novo País. A Ascenção do Poder Político Autóctone das Civilizações pré-Colombianas a Evo Morales. Brasília: FUNAG – Fundação Alexandre de Gusmão, 2006.
GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. Trad. Sérgio Farraco. Porto Alegre: L&PM, 2010.
HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Trad. Waltensir Dutra. 19.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Documento eletrônico, disponível em <http://www.librosgratisweb.com/pdf/karl-marx/manifiesto-comunista.pdf>. Acesso em 28 out 2011.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 1999.