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Direito Constitucional e as garantias do autor militar do fato.

Os Tribunais Superiores e a aplicação do princípio da insignificância no âmbito da Justiça castrense

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07/04/2012 às 13:50
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São inadmissíveis em Estados de Direito decisões penais contraditórias que gravitam na pessoa do “autor” e não do “fato”. O reconhecimento de uma conduta atípica no ordenamento penal militar não impede que a disciplina e a hierarquia sigam protegidas pelo direito administrativo disciplinar.

RESUMO

No Direito Penal contemporâneo, algumas regras e princípios já não deveriam ser motivo de discussão no âmbito de nossas Cortes Superiores, principalmente em se tratando de matéria há muito tempo sepultada por toda a doutrina e jurisprudência especializada. É inadmissível em Estados de Direito a existência de sentenças e decisões judiciais contraditórias que gravitam na pessoa de seu “autor” e não do “fato”. O reconhecimento de uma conduta atípica ao ordenamento penal militar não impede que a disciplina e a hierarquia sigam protegidas pelo direito administrativo disciplinar. Se não for caso de crime, ainda poderá ser caso de conduta antiética, porque ao Direito Penal somente devem importar os tipos de ações que não possam ser controladas por outros ramos do Direito.

PALAVRAS CHAVE:Direito Penal. Fato. Autor. Lesividade. Princípio da insignificância.


SUMÁRIO: Introdução; 1. Fato típico e autor do fato; 2. Princípio da intervenção mínima, da lesividade e adequação social; 3. Princípio da insignificância e autor militar; Conclusão.


INTRODUÇÃO

A dogmática jurídica adverte que se tentamos criminalizar o autor, na verdade, não queremos proibir o ato e sim proibir a personalidade, a que denominamos de “tipo de autor”. Neste sentido, “proibir uma personalidade implica a aberrante pretensão de um direito penal que ignora qualquer limite de privacidade e reserva. Qualquer tipo de autor seria inconstitucional em nosso direito positivo, porque a personalidade se vai formando com atos que são vivências (...), mas que não podem estar proibidos enquanto eles próprios não constituam delitos” (ZAFARRONI e PIERANGELI: 2009, p. 387/388). Entender a linguagem jurídica é aplicá-la corretamente, dentro de parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade que possam interessar significativamente ao direito penal. Se há uma normativa a ser observada a partir de princípios constitucionais, “analizar y decidir son, entonces, las consignas del intérprete judicial cuando tiene em sus manos las palabras del ordenamiento constitucional” (FERREYRA: 2008, p. 84).

Transitando pelo repertório de jurisprudência da página eletrônica do Supremo Tribunal Federal (STF), entre os anos de 2006 a 2011, surpreende a exposição de motivos de alguns Ministros em torno da não aplicação do princípio da insignificância no âmbito da Justiça Militar, tomando-se como fundamento a personalidade desses profissionais. De quatorze casos analisados, nove foram favoráveis e cinco contrários, dos quais destacamos os dois mais recentes como exemplo, que tratam, respectivamente, do delito de uso indevido de uniforme militar e de peculato-furto, onde se verifica entendimento e motivação diversa na matéria em destaque, sendo o primeiro contra e o segundo a favor da aplicação do instituto:

CASO 1

HC 108512 / BA – BAHIA

Ementa: PENAL. HABEAS CORPUS. USO INDEVIDO DE UNIFORME MILITAR (CPM, ART. 172). PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE NO ÂMBITO DA JUSTIÇA MILITAR. 1. O princípio da insignificância não é aplicável no âmbito da Justiça Militar, sob pena de afronta à autoridade, hierarquia e disciplina, bens jurídicos cuja preservação é importante para o regular funcionamento das instituições militares. Precedente: HC 94.685, Pleno, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJe de 12/04/11. 2. In casu, o paciente, recruta, foi preso em flagrante trajando uniforme de cabo da Marinha. 3. O crime descrito no art. 172 do Código Penal Militar é de mera conduta e visa à tutela de bens jurídicos importantes e necessários ao regular funcionamento das instituições militares – autoridade, disciplina e hierarquia - pouco importando o cotejo da real intenção do agente com os requisitos de natureza objetiva subjacentes ao princípio da insignificância, a saber: (a) ofensividade mínima da conduta, (b) ausência de periculosidade social, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento do agente e (c) a inexpressividade da lesão ao bem juridicamente protegido. 4. Ordem denegada, em consonância com o parecer ministerial.

Decisão: A Turma denegou a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Unânime. Presidência da Senhora Ministra Cármen Lúcia. 1ª Turma, 4.10.2011.

CASO 2

HC 107638 / PE - PERNAMBUCO

Ementa: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL E PENAL. CRIME MILITAR.

PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. RECONHECIMENTO NA INSTÂNCIA CASTRENSE. POSSIBILIDADE. DIREITO PENAL. ULTIMA RATIO. CONDUTA MANIFESTAMENTE ATÍPICA. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. ORDEM CONCEDIDA. 1. A existência de um Estado Democrático de Direito passa, necessariamente, por uma busca constante de um direito penal mínimo, fragmentário, subsidiário, capaz de intervir apenas e tão-somente naquelas situações em que outros ramos do direito não foram aptos a propiciar a pacificação social. 2. O fato típico, primeiro elemento estruturador do crime, não se aperfeiçoa com uma tipicidade meramente formal, consubstanciada na perfeita correspondência entre o fato e a norma, sendo imprescindível a constatação de que ocorrera lesão significativa ao bem jurídico penalmente protegido. 3. É possível a aplicação do Princípio da Insignificância, desfigurando a tipicidade material, desde que constatados a mínima ofensividade da conduta do agente, a inexistência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a relativa inexpressividade da lesão jurídica. Precedentes. 4. O Supremo Tribunal admite a aplicação do Princípio da Insignificância na instância castrense, desde que, reunidos os pressupostos comuns a todos os delitos, não sejam comprometidas a hierarquia e a disciplina exigidas dos integrantes das forças públicas e exista uma solução administrativo-disciplinar adequada para o ilícito. Precedentes. 5. A regra contida no art. 240, § 1º, 2ª parte, do Código Penal Militar, é de aplicação restrita e não inibe a aplicação do Princípio da Insignificância, pois este não exige um montante prefixado. 6. A aplicação do princípio da insignificância torna a conduta manifestamente atípica e, por conseguinte, viabiliza a rejeição da denúncia. 7. Ordem concedida. Decisão: A Turma concedeu a ordem de habeas corpus, nos termos do voto da Relatora. Unânime. Não participou, justificadamente, deste julgamento, o Senhor Ministro Marco Aurélio. Presidência da Senhora Ministra Cármen Lúcia. 1ª Turma, 13.9.2011.

No primeiro caso, quando o STF afirma que “o princípio da insignificância não é aplicável no âmbito da Justiça Militar, sob pena de afronta à autoridade, hierarquia e disciplina, bens jurídicos cuja preservação é importante para o regular funcionamento das instituições militares”, nos parece um entendimento bastante divorciado da dogmática jurídica que orienta para a aplicação restritiva do Direito Penal. É sabido por todos que “com o Direito Penal objetiva-se tutelar os bens que, por serem extremamente valiosos, não do ponto de vista econômico, mas sim político, não podem ser suficientemente protegidos pelos demais ramos do Direito” (GRECO: 2012, p. 2). Ora, não há dúvida alguma que a “lesividade” aos princípios militares de hierarquia e disciplina são, a priori, satisfatoriamente protegidos pelo Direito Administrativo Disciplinar, sendo absurdamente indevida a tentativa de se criar uma atmosfera de medo para controle penal desses profissionais. Assim, como nos ensina Regina apud Schmidt (2007: p. 131):

(...) por mais que a dogmática penal contemporânea tenha superado um Direito Penal do autor (em que o criminoso é punido pelo que ele é, e não pelo que ele fez), de índole inquisitorial, em nome de um Direito Penal do fato (o criminoso é punido pelo que ele fez, e não pelo que ele é), de matriz humanista, as variáveis subjetivas e rancorosas que recaem sobre o criminoso (leia-se: criminalizado), exorcizadas pela porta da frente de sua construção conceitual, ingressam pela porta dos fundos e preponderam nas decisões judiciais.

No Superior Tribunal de Justiça (STJ), com uma exposição ainda mais duvidosa e temerosa, foi negada a aplicação do princípio da insignificância a um autor destacando sua condição de policial militar e estar fardado no momento do fato, ou seja, julgando o que o autor é e não o que ele fez. Aqui cabe destacar com bastante evidência, que o fundamento que negou a aplicação do instituto a favor do profissional de segurança pública é, escancaradamente, o mesmo que autorizou sua aplicação e pelo mesmo delito, conforme teor da decisão contida no segundo caso do STF supra descrito:

30/03/2011 - 10h16

DECISÃO

Princípio da insignificância não se aplica a PM acusado de furto de chocolate

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou pedido da Defensoria Pública de Minas Gerais para trancar uma ação penal contra um policial militar acusado de furtar uma caixa de chocolate. A Quinta Turma entendeu que, embora a lesão jurídica provocada seja inexpressiva, a conduta do agente é altamente reprovável, visto ser um policial militar e estar fardado no momento do furto. Segundo a denúncia, o policial no horário de serviço entrou em um supermercado, colocando a caixa de bombons dentro do colete à prova de balas. O policial teria pago somente por três maçãs, três bananas e uma vitamina, saindo sem pagar o chocolate. Ele teria sido surpreendido somente com quatro unidades de bombons, porque já teria ingerido as demais. O valor, segundo a defesa, seria o equivalente a R$ 0,40 à época. A defesa pediu o trancamento da ação penal por ausência da justa causa, com base na aplicação do princípio da insignificância. O STJ, no julgamento de outro habeas corpus (HC 141.686), aplicou o mesmo princípio a um processo em que uma pessoa foi acusada de furtar cinco barras de chocolate, no valor de R$ 15. Mas, segundo relator do habeas corpus em questão, ministro Gilson Dipp, a situação não é a mesma. “O policial representa para a sociedade confiança e segurança”, assinalou. Quanto ao argumento da defesa, de que o artigo 240, parágrafo 1º, do Código Militar, permitiria a aplicação do princípio, o ministro considerou que há, isto sim, uma previsão de diminuição da pena, a ser analisada pelo juiz. “O dispositivo não pode ser interpretado de forma a trancar a ação penal, sendo certo que competirá ao juiz da causa, após o processamento da ação penal, considerar ou não a infração como disciplinar”. Segundo o ministro Dipp, a população espera do policial um comportamento adequado, do ponto de vista ético e moral.           

A doutrina classifica tal comportamento como “uma corrupção do direito penal, em que não se proíbe o ato em si, mas o ato como manifestação de uma ‘forma de ser’ do autor, esta sim considerada verdadeiramente delitiva” (ZAFFARONI e PIARANGELI: 2009, p. 107). O perigoso seria a personalidade e não o ato e o direito, que é uma norma reguladora da conduta humana, jamais pode penalizar o “ser”, senão o agir de uma pessoa. Interessante de se notar que, além da expressa previsão legal da aplicação do princípio da insignificância contida no §1º, art. 240 do CPM (furto atenuado)[1], este mesmo instituto pode ser observado em outros delitos da legislação penal castrense, dos quais destacamos: §6º, art. 209 (lesão levíssima); Parágrafo único, art. 255 (receptação culposa); Parágrafo único, art. 260 (dano atenuado); e §2º, art. 313 (cheque sem fundos).

O militar, como qualquer outro cidadão, está inserido na mesma sociedade e submetido às mesmas garantias constitucionais que visam resguardar a dignidade da pessoa humana e de aplicação de um Direito Penal mínimo. Ferreyra (2008, p. 126) destaca que as “garantias” são “los médios o herramientas o instrumentos para hacer efectivas íntegralmente las pautas del sistema jurídico-normativo estatal, en cualquier circunstancia de modo, tiempo y lugar frente a cualquier voluntad o fuerza, por poderosa o enérgica que sea, y que intente afectarlo, lesionarlo, avasallarlo o transgredirlo”. O Estado de Direito não comporta um Estado de Polícia para autores especiais, pois “el estado de derecho es concebido como el que somete a todos los habitantes a la ley, y se opone al estado de policía, em que todos los habitantes están subordinados al poder de manda” (ZAFFARONI: 2011, p. 6). Ainda, “sorprende que sobre la materia militar no se haya prestado por parte de los juristas, y especialmente los ‘civiles’, la atención que merece, en particular la atención jurídica. A fines del siglo XIX se afirmo que ‘la ciência del Derecho há tratado hasta el presente al Derecho Militar como a una suegra” (COTINO HUESO: 2007, p. 13/14).


1. Fato típico e a vontade do autor

Afirma Busato (2010, p. 193), com suporte na teoria significativa da ação de Vives Antón, que “a ação não é o sentido de um substrato típico, mas o sentido de um substrato social. A ação que interessa ao Direito Penal é a ação que, segundo considerações político-criminais referidas ao controle social, interessa coibir através da ameaça da pena”. Corretamente, para que possamos chegar ao veredicto na prática de um delito qualquer passamos, obrigatoriamente, pela investigação objetiva e subjetiva do comportamento humano lesivo, a fim de se compreender a tríade, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Embora o conceito de delito exija a interpretação cadenciada de cada uma dessas terminologias jurídicas, interessa destacar somente a primeira delas, uma vez que insatisfeitas as respostas neste parâmetro preliminar, torna-se impossível avançarmos aos demais fragmentos conceituais, importando necesariamente em uma exclusão de tipicidade penal a determinar a análise do fato a outros ramos do direito ou a nenhum deles.

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A tipicidade é, objetivamente falando, a normativa que identifica o fato como uma conduta juridicamente tutelada pelo Estado e que, se infringida, poderia resultar na aplicação de uma pena qualquer. Nela está contida a vontade do autor (dolo ou culpa), o modo de ação (comissão ou omissão), o resultado e o nexo de causalidade. Cabe aqui destacar que, no Brasil, o Código Penal Brasileiro (CPB) e o Código Penal Militar (CPM) subsistem em diferentes dimensões quanto ao conceito de ação, sendo aquele de concepção finalista/social e, este último, de concepção causal-naturalista. Torna-se relevante destacar este aspecto, pois, no conceito causal de ação contido no CPM o dolo e a culpa encontram-se dispostos no fragmento da culpabilidade e, no conceito final e social da ação contido no CPB, estes são evidenciados no fragmento da tipicidade. E o que isto quer dizer? Quer dizer que o CPM possui um defeito capital, pois, “ao definir-se a ação através da categoria da causalidade, deixa de captar o que há de mais genuíno no atuar humano (...)”, qual seja, a sua vontade, “(...) o significado social da ação humana” (COSTA: 2005, p. 125).

De concepção eminentemente normativista e em descompasso com a dogmática garantista de Ferrajoli, o CPM ainda sustenta o estigma de um Direito Penal fundamentado em uma filosofia de controle pela imposição da força e do medo sobre o autor, ou nas palavras de Bobbio (2006: p. 38): “(...) numa sociedade, na qual os conflitos de classe são profundos e violentos, é provável que não haja outra solução a não ser a da ditadura”. “El paradigma del modelo garantista –señala Ferrajoli- no es outra cosa que la doble sujeción del Derecho al derecho, que afecta a ambas dimensiones de todo fenómeno normativo: la vigência y la validez, la forma y la sustancia, los signos y los significados, o si se quiere, la racionalidad formal y la racionalidad material” (FERREYRA: 2008, p. 129). Dentro dessa perspectiva temporal e valorativa do direito, à legislação penal comum evoluiu para a teoria social, e esta, conforme Maurach, Bocklman e Schmidt apud Costa (2005, p. 128):

(...) parte tanto da crítica da postura causalista, como da crítica da ação finalista. Em relação à primeira, porque ‘não pode ser definida exclusivamente atentando a leis da natureza’, visto que o que produz no mundo físico não tem relevância, pois o essencial é que implique ‘uma relação valorativa com o mundo circundante ou social’; e, em relação à segunda, porque ‘na vida social é de importância não só o que o homem executa conforme a meta fixada, senão o que realiza contrariamente aos seus próprios fins”, pelo que o conceito de ação deveria ‘ser configurado de tal modo que seja susceptível de ser valorado por padrões sociais, de deixar entrever uma relação com o mundo social circundante’. Por tais motivos deveria se entender por ação ‘toda conduta voluntária dirigida no mundo exterior social’ ou ‘a realização de um resultado socialmente relevante’.

Aparentemente, os efeitos colaterais de um positivismo arraigado, ainda presente na normativa castrense, estejam impedindo que operadores do direito identifiquem no CPM os avanços da dogmática penal e projetem na pessoa do militar um rigor jurídico inaceitável e descabido em um ambiente de democracia, que deve prevalecer em Estados de Direito, a todos os cidadãos brasileiros. Nas palavras de Gomes (2002), “os professores que se guiam exclusiva ou preponderantemente pelo pensamento sistemático-dedutivo estão com os dias contados. Porque essa forma de ensinar e aplicar o Direito (particularmente o penal) deu lugar a outro modelo fincado no pensamento problemático (solução justa em cada caso concreto)”.

Veja que no fragmento da tipicidade, seja em seu aspecto formal ou material, o que se analisa é a ação humana (vontade) quando na ofensa de um bem jurídico tutelado e socialmente relevante, pouco importando se sob a ótica do Direito Penal Comum ou Militar. Aqui não se imiscui o raciocínio jurídico com a pessoa do autor, o que ele é ou o que ele faz na vida, mas tão somente o que ele fez, como, quando e em que condições praticou o fato típico. Nas palavras de Galvão (2009: p. 151), “o tipo penal, de maneira formal, descreve o comportamento humano que se pretende evitar. Materialmente, o tipo representa uma valoração ético-social que se evidencia tanto na escolha dos bens a serem juridicamente tutelados como nas condutas a serem rotuladas de proibidas”.


2. Princípio da intervenção mínima e da insignificância do fato

Dotti (2010, p. 140) alerta que não se pode confundir os dois institutos, pois “enquanto o principio da intervenção mínima se vincula mais ao legislador, visando reduzir o número das normas incriminadoras, o da insignificância se dirige ao juiz do caso concreto, quando o dano ou o perigo de dano são irrisórios. No primeiro caso é aplicada uma sanção extrapenal; no segundo caso, a ínfima afetação do bem jurídico dispensa qualquer tipo de punição”.  

O princípio da insignificância, proveniente do Direito Romano, e de cunho civilista, foi introduzido a partir de 1964 no sistema penal por Claus Roxin, “tendo em vista sua utilidade na realização dos objetivos sociais traçados pela moderna política criminal” (CAPEZ: 2010, p. 29). Por este instituto, o Direito penal não deve se preocupar com condutas que apresentem irrelevância material, ofendendo minimamente o bem jurídico tutelado, desde que verificados alguns requisitos, conforme destacado pelo STF: a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e d) inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Perceba que nossa Corte Constitucional, em momento algum, coloca como critério delimitador de aplicação do instituto, condições afetas à pessoa do autor, em respeito a aplicação do Direito do Fato e portanto, desconstituindo o pensamento daqueles que enxergam o militar ao invés de enxergarem a sua conduta. Esse princípio se reveste de singular importância nos dias atuais, uma vez que “(...) adotada a teoria da imputação objetiva, que concede relevância à afetação jurídica como resultado normativo do crime (...)” (JESUS: 2009, p. 11), impede que se ingresse no ordenamento penal fatos de ofensividade irrelevante. Entenda-se a imputação objetiva como o perfeito alinhamento entre a conduta do autor e a tipicidade normativa no aspecto estritamente formal objetivo. Assim, nas palavras de Galvão (2009, p. 225), “a tipicidade objetiva não se apresentará quando o furto tiver por alvo pequeníssimos objetos, quando a lesão corporal não adquirir proporção significativa, quando a ofensa à honra for de pequeníssima monta, quando a lesão ou o perigo de lesão ao meio ambiente tiver sido insignificante etc”.

Dentro dessas premissas, observando atentamente as decisões negativas de nossas Cortes Superiores, tanto no delito analisado pelo STF (uso indevido de uniforme) como no STJ (furto atenuado), praticados por autor militar, podemos concluir racionalmente que as condutas descritas são de mínima ofensividade, de nenhuma periculosidade social, de reduzido grau de reprovabilidade e de inexpressiva lesão jurídica. Soma-se a isso, o fato de que os bens juridicamente tutelados em destaque seriam perfeitamente protegidos e sancionados por outros ramos do Direito, no caso concreto, o Direito Civil e Administrativo, seja para impedir o indevido uso de uniformes ou para reparar o dano na subtração clandestina de bens alimentícios.

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Sobre o autor
Paulo Roberto de Medeiros

Oficial da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais Professor de Direito Penal e Processo Administrativo da Academia de Polícia Militar de Minas Gerais na Escola de Formação de Oficiais Bel em Direito e aluno do Curso de Doutorado em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires, Argentina Especialista em Segurança Pública pela Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte/MG Especialista em Educação Física pela Pontifícia Universidade Católica do PR Aluno do Curso de Gestão Estratégica da Academia de Polícia Militar.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, Paulo Roberto. Direito Constitucional e as garantias do autor militar do fato.: Os Tribunais Superiores e a aplicação do princípio da insignificância no âmbito da Justiça castrense. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3202, 7 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21441. Acesso em: 24 abr. 2024.

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