Segundo Carlos Alberto Barreto, Secretário da Receita Federal do Brasil, a operação “Maré Vermelha” deflagrada no último dia 19/03 representa “a maior operação contra fraudes no comércio exterior da história” e “os resultados esperados são o aumento de retenções e apreensões de mercadorias, o aumento do recolhimento de tributos e multas e a redução das operações danosas ao setor produtivo nacional.”
O tom empregado pelo dirigente desperta atenção e precaução, especialmente se a declaração for analisada frente ao contexto político-econômico dos últimos dias, dominado pela pauta de reivindicações contundentes do setor industrial.
É dever do Estado sim zelar pelas boas práticas do comércio internacional, fiscalizando as operações de ingresso de mercadorias e serviços no território nacional, exigindo o cumprimento das respectivas obrigações tributárias e aduaneiras, e coibindo condutas ilegais.
Também compete ao Estado, em outro campo, promover o desenvolvimento econômico – fomentando a indústria nacional, inclusive –, compromisso inserido entre os objetivos fundamentais da República relacionados no art. 3º da Carta Constitucional.
Entretanto não se deve tomar uma pela outra ou imiscuir as duas atribuições, sob pena de corromper os fundamentos, a legitimidade e os resultados da atuação administrativa.
Utilizar o despacho aduaneiro de importação como instrumento de suposta proteção à indústria doméstica, à balança comercial e consequentemente à economia nacional representa, ao mesmo tempo, imprudência econômica e jurídica.
Economistas de diferentes escolas vêm advertindo há tempo, e em comum, que precisamos não de medidas paliativas transitórias, pouco eficientes e carregadas de efeitos econômicos colaterais nocivos; mas sim de políticas de longo prazo, fundadas em investimentos em infra-estrutura, pesquisa, e formação de mão de obra qualificada; redução dos juros; redistribuição da carga tributária sobre a produção e combate aos demais itens que compõem o denominado “Custo Brasil”.
Mas pouco se fala sobre as repercussões jurídicas que medidas protecionistas pontuais e exasperadas podem desencadear.
Para compreendê-las numa abordagem ligeira e panorâmica, deve-se ressaltar quatro aspectos diferentes principais: (i) normas gerais ameaçadas; (ii) prejuízos concretos que podem sobrevir; (iii) medidas de salvaguarda à disposição dos importadores; e (iv) responsabilidades do Estado e dos agentes públicos.
Como qualquer atividade administrativa, a aduaneira está sujeita a controle de legalidade, pois a presunção de legitimidade a elas conferida é de natureza relativa. Significa que não apenas os atos praticados pelos auditores durante o despacho aduaneiro de importação, mas também os atos normativos, em especial as instruções normativas expedidas pela Receita Federal do Brasil, devem obediência à lei em sentido estrito (Constituição Federal, leis complementares, leis ordinárias e tratados internacionais recepcionados). Eis o princípio da legalidade, frequentemente ameaçado em situação de exceção.
Além disso, tendo em vista o manifesto objetivo protecionista da operação “Maré Vermelha” – objetivo amplamente divulgado –, os atos administrativos aduaneiros praticados durante a operação deverão ser monitorados e questionados ainda em razão dos seus motivos e finalidades, frente ao princípio da não-discriminação entre os produtos importados e os nacionais (GATT), aos princípios da eficiência e da duração razoável do processo dispostos na Constituição Federal, e ao princípio da supremacia do interesse público – que não se confunde com o interesse do Governo.
O desprestígio dessas normas no curso do despacho aduaneiro pode suscitar prejuízos concretos e significativos aos importadores, envolvendo retenções ou apreensões de mercadorias; procedimentos de valoração aduaneira – que devem seguir com tenacidade as regras do Acordo Internacional sobre Valoração Aduaneira –; exigências fiscais, instrumentais e financeiras; imposição de penas de multa, perdimento de mercadorias, suspensão e inaptidão do CNPJ; cobrança ou não-restituição de tributos já pagos quando imposta pena de perdimento às mercadorias; acusação de interposição fraudulenta de terceiros; quebra de sigilo bancário; instauração de representação para fins penais etc.
Por isso, se o importador já devia acautelar-se em situações ordinárias, precisará adotar diligência qualificada de agora em diante. Sua postura e atuação podem ser divididas em três segmentos: prevenção, acompanhamento dos despachos em andamento, e medidas de defesa.
É importante assumir a princípio um comportamento preventivo, auditando e organizando os procedimentos e documentos referentes às suas operações de importação já encerradas nos últimos cinco anos – mas que ainda podem ser objeto de investigação e autuação –, por um lado; e revisando e reestruturando seus procedimentos e rotinas para as operações futuras, de outro lado.
Em relação aos despachos aduaneiros em andamento, é fundamental acompanhá-los com austeridade, sobretudo na elaboração das peças para cumprimento de exigências, às quais geralmente é dada insuficiente importância, mas que, uma vez bem conduzidas, fundamentadas com propriedade e adequadamente instruídas, podem abreviar o desembaraço aduaneiro ou, em último caso, preparar de maneira substancial eventuais defesas futuras.
Ao mais, constatado excesso ou desvio de poder na condução do despacho aduaneiro, o importador sempre terá a seu favor os instrumentos do devido processo legal: requerimentos, impugnações e recursos administrativos; mandado de segurança; habeas corpus e defesa criminal; para citar apenas os mais relevantes.
Finalmente, acentuando que a responsabilidade civil do Estado é objetiva, isto é, independe da comprovação de culpa ou dolo, uma vez demonstrado o prejuízo do importador e o correspondente nexo de causalidade com a atuação administrativa impertinente, poderá o Estado ser condenado a responder pelo dano causado, e o agente público, mediante responsabilidade subjetiva entretanto, pelas infrações administrativas e criminais que o ato coator manifestar.
Nada obstante a operação “Maré Vermelhar” instaurar situação excepcional, ameaçadoramente próxima à fronteira da legalidade, não se pode esquecer que a Receita Federal do Brasil e seus agentes são em regra sérios, muito preparados tecnicamente e dignos de respeito incondicional, e que, portanto, a atuação defensiva do particular, quando necessária, deve pautar-se nas garantias materiais e instrumentais do Estado Democrático de Direito.