1 Introdução
O artigo se propõe a resenhar as principais análises a respeito dos efeitos que o modelo de “lista aberta” adotado no Brasil produz no sistema representativo. A denominação está consagrada pelo uso, como pode ser verificado pelos títulos atribuídos por Nicolau (2006) e Klein (2007) em seus estudos, no entanto, está longe de ser a mais adequada do ponto de vista técnico, afinal, a lista é “aberta” para indicar que não está previamente hierarquizada, mas ela é “fechada” porque o eleitor não pode acrescentar novos candidatos. Assim, os analistas sugerem alternativamente o uso das expressões: voto pessoal único em candidatura individual (TAVARES, 1994), voto em lista não ordenada ou, mais genericamente, como uma modalidade de voto preferencial, aquele em que o eleitor pode votar em candidato específico da lista apresentada (MARENCO DOS SANTOS, 2006; NICOLAU, 2006a).
O modelo foi adotado originalmente pelo Código Eleitoral de 1935, mas, em realidade, já havia sido utilizado para eleição dos constituintes de 1933, a qual foi regulamentada pelo Código Eleitoral de 1932, e uma variante havia sido aplicada no Rio Grande do Sul em 1913. O sistema implantado em 1935 ainda contava com fortes características do sistema majoritário, de modo que o sistema proporcional só foi plenamente instituído pós-Estado Novo, em 1945, por meio do Decreto-Lei 7.586, também conhecido como Lei Agamenon. Entretanto, a forma utilizada atualmente no Brasil só ganhou forma em 1950, por meio do Código Eleitoral sancionado naquele ano (NICOLAU, 1991, p.106-107).
Nele, o partido ou coligação define a lista de candidatos a deputado ou a vereador, mas não há qualquer ordenamento ou hierarquização prévia entre eles. O eleitor tem somente um voto para cada cargo e deve indicar um único candidato, embora o sistema também permita escolher apenas a legenda.[1] Os votos nominais recebidos pelos candidatos determinam a ordem de colocação deles na lista.
O total de votos obtidos por uma lista (aqueles somados pelos candidatos mais os atribuídos apenas à legenda), submetido à fórmula eleitoral (quociente eleitoral e distribuição de sobras, no caso brasileiro), indica a quantidade de cadeira que ela conquistou. A distribuição desse contingente em cada lista é realizada segundo a ordem de colocação dos candidatos (BRASIL, Código Eleitoral 1965, art. 109, §2º). Quem estiver além do limite de vagas obtidas fica como suplente, também segundo a ordem de classificação (Idem, art. 112).
Assim como outras das características do sistema eleitoral brasileiro, a lista aberta tem merecido uma série de análises e de críticas. O primeiro elemento a ser destacado é que, por conta da quantidade de vagas obtidas e pela distribuição dos votos entre os candidatos das listas, há níveis diferentes de competitividade em cada uma delas, bem como podem ser muito díspares o total de votos pessoais que os candidatos de duas listas necessitem para ficar com a vaga. Em outros termos: são necessários menos votos para se eleger em uma do que em outra e é comum que um candidato da lista X não consiga a cadeira, embora tenha obtido muito mais votos do que o candidato da Y, que foi contemplado.
O segundo é que todos os membros da lista colaboram para a conquista da vaga, mas são os votos pessoais que fazem com que o candidato se classifique em melhor posição na lista e obtenha a cadeira. Cox (2004, p.81) anota que a atribuição de vagas aos candidatos obedece à outra fórmula, a da maioria relativa. Portanto, as vagas são ocupadas por um princípio majoritário – quem fizer mais votos ganha –, o que é contraditório em relação à lógica da representação proporcional.
O terceiro é que, como muito raramente um candidato consegue sozinho atingir o quociente eleitoral, a situação mais comum é, na prática, os votos dos menos preferidos ajudarem os mais preferidos a ficar com a cadeira. Isso faz com que haja o fenômeno da agregação e da transferência de votos intralista (vote-pooling), ou seja, a escolha do eleitor por um candidato contribui para a eleição de outro.
Desposato (2007) não critica o fenômeno do vote-pooling, pois o reconhece como inevitável em países que adotam a representação proporcional de lista aberta. O problema para ele é saber se os partidos são fortes e consistentes, de modo a que a transferência não afete drasticamente a escolha política realizada pelo eleitor, e não se transforme, assim, em uma transferência indevida. O autor aponta duas dimensões da vontade do eleitor passíveis de serem “traídas”: a orientação programática/ideológica e a vinculação local, no caso de um eleitor interessado em benefícios geograficamente delimitados. Tavares (1999) agrega que
em eleições proporcionais, o voto em candidato individual que, contabilizado para a legenda, transfere-se aleatoriamente a outros candidatos da mesma legenda [...] equivale ao voto em uma lista partidária virtual que constitui, entretanto, com sua ordenação, o resultado aleatório das escolhas de todos os eleitores do partido ou da coligação. Assim, ao fim e ao cabo, nem o eleitor nem o partido têm qualquer controle sobre o destino do voto e sobre a ordem de precedência dos candidatos nessa lista virtual, porque constituem efeitos compósitos e aleatórios.
O juízo de Lessa (2006, p.53-54) é de que se trata de um estranho fenômeno, pois o aspecto aleatório da migração de voto pode converter-se em um sistemático mecanismo de negação das escolhas originalmente manifestas pelos eleitores.
2 Efeitos esperados sobre os candidatos e as campanhas eleitorais
Em outro campo de crítica, em uma famosa classificação dos efeitos dos sistemas eleitorais sobre as estratégias dos candidatos realizada por Carey e Shugart (1995) é afirmado que a lista aberta, combinada com magnitude elevada nos distritos e candidatura nata[2], faz com que o Brasil figure como um dos países que mais gera incentivos para a reputação pessoal em detrimento da reputação partidária. Ela costuma ser apontada como responsável pela alta personalização da campanha, afinal, como o voto nominal aumenta a probabilidade de eleição, o candidato precisa se fazer conhecer pelo eleitor ou reforçar esses laços. Com vistas a se distinguir dos demais concorrentes, ele tende a valorizar atributos pessoais e vínculos outros que não o programa partidário.
No Brasil, as evidências de personalização das campanhas são fortes. Cada candidato organiza sua campanha (participação em eventos, confecção de material, arrecadação de fundos e prestação de contas dos gastos) de maneira praticamente independente dos diretórios partidários. Como o desempenho do partido deriva em larga escala do sucesso dos candidatos em obter votos, quando da organização das listas de candidatos, os partidos têm forte interesse de incluir indivíduos populares em seus ramos de atividade, mas não necessariamente com histórias de envolvimento em atividades partidárias (artistas, jogadores de futebol, radialistas, líderes religiosos etc.) (NICOLAU, 2002, p.223-224).
Como sintomas do personalismo podem ser citadas as eleições para deputado federal, em 2010, do humorista Tiririca e de ex-jogadores de futebol, como Danrlei e Romário. Segundo Farrell (2001, p.87), a Itália pré-reforma de 1990, oferece exemplo de como a lista aberta pode induzir a uma política mais personalista, na qual ganham espaços celebridades até então estranhas ao mundo da política, como foi o caso da atriz pornô Cicciolina, em 1983.
O processo de votação atualmente em vigor no Brasil reforça para o cidadão a ideia de uma disputa personalizada.
Nos três diferentes processos de votação empregados desde 1945 (a cédula impressa pelos partidos, a cédula oficial e a urna eletrônica), votar nas eleições para Câmara dos Deputados foi sempre escrever (ou digitar, após a introdução da urna eletrônica) o nome ou o número de um candidato sem qualquer menção aos outros componentes da lista. Tal fato, associado à escolha de outros cargos pelo sistema majoritário na mesma eleição, acabou contribuindo para reforçar nos eleitores a falsa impressão de que as eleições para a Câmara dos Deputados são feitas segundo uma regra majoritária em que todos os candidatos concorrem entre si (NICOLAU, 2006, p.692).
Pesquisas de opinião parecem confirmar esta tendência, pois indicam a importância que os eleitores dão à reputação pessoal do candidato na hora de decidir o voto, em detrimento do partido. Contudo, Nicolau (Idem, p.703) pondera não ser possível “interpretar o voto em candidatos como expressão pura e simples do voto personalizado porque muitos eleitores com vínculos mais permanentes com os partidos preferem, muitas vezes, votar em um nome específico da lista”.
Samuels (1997) chama a atenção para o fato de a alternativa partidária ser variável que pode atenuar ou mesmo anular este efeito personalista dos sistemas centrados no candidato (caso da lista aberta). Ele argumenta que isto pode ocorrer seja em razão altos custos que implica a campanha (de forma que um candidato sem recursos prefira apostar na imagem partidária), seja pelo modo como alguns partidos organizam o acesso à lista, investem na reputação coletiva, na imagem da legenda, na disciplina e na coesão internas. Ou seja, mesmo na lista aberta, servir-se de estratégias coletivas e da força do partido são alternativas não só teoricamente possíveis como empiricamente verificáveis. Nessa perspectiva, lembra-se que até mesmo campanhas personalistas podem refletir estratégias partidárias, como é o caso do PCdoB, que, com vistas a obter representação, procura concorrer coligado, lançar poucos ou apenas um candidato, e centrar a campanha nesse(s) nome(s).
Para os críticos da lista aberta um reflexo da campanha personalizada seria o acirramento da competição interna nos partidos. Mainwaring (1991, p.43) afirma que há frequentemente solidariedade entre pessoas do mesmo partido que concorrem a cargos diferentes; mas, entre correligionários que concorrem ao mesmo cargo prevalece uma acirrada competição que é frequentemente mais intensa do que a competição interpartidária. Tavares (1994, p.127) a acusa de ser responsável pela competição voraz entre candidatos de um mesmo partido que tão profundamente compromete a identidade, a coesão e a disciplina interna das legendas. Desposato (2007, p.128) chega a afirmar que a melhor estratégia para um candidato é atacar outro do seu próprio partido. Fleischer (1994 apud MACHADO, 2005, p.48) diz que a maior competição em uma eleição se dá entre “companheiros” da mesma chapa, pois cada um luta para se eleger e jogar seus colegas na suplência. As maiores traições e deslealdades são perpetradas entre correligionários, completa o autor. Nicolau também argumenta que a competição entre os candidatos de uma mesma lista tende a ser agravada pelo alto grau de incerteza que caracteriza uma eleição para deputado federal, com um número de candidatos de cada lista, em geral, muito superior ao potencial eleitoral do partido, e pela reduzida informação que os candidatos têm sobre o potencial eleitoral do partido e de seus colegas de lista (NICOLAU, 2006, p.700).[3]
Figueiredo e Limongi (2002) discordam. Os autores afirmam que, em um sistema de lista aberta, a competição intrapartidária não suplanta a interpartidária, pois, como os votos na lista são transferidos, qualquer um dado a candidato da lista aumenta as chances de os demais se elegerem, enquanto votos atribuídos a outra lista têm efeito contrário. Eles sintetizam: “onde a legislação prevê a transferência de votos no interior da lista, como é o caso por definição de sistemas proporcionais com lista aberta, votos pessoais e partidários são complementares e dificilmente distinguíveis” (Idem, p.310). Talvez por isso, Nicolau (2006, p.700) reconheça que, apesar de ser lógico esperar um maior incentivo à disputa intrapartidária no sistema de lista aberta, não é fácil avaliar empiricamente essa situação.
Nesse diapasão, Klein (2007, p.67) considera que a lista aberta gera incentivos para conflitos intrapartidários, mas nega o caráter disseminado da prática imputado por determinados analistas. Ele argumenta que essa interpretação se baseia na ideia de que todos os candidatos são iguais, quando, na realidade, alguns são mais competitivos do que outros. Logo, o grande puxador de votos dificilmente seria visto como um adversário pelos outros candidatos da lista, pois quanto mais votos ele trouxer, mais chances os demais têm de se eleger.
No mesmo caminho da crítica à ideia de uma disputa disseminada entre candidatos da mesma lista, argumenta-se que as direções intervêm no processo eleitoral e tendem a evitar esses conflitos. Nicolau, que assume o caráter personalizado das campanhas, apresenta a hipótese de os partidos controlarem a composição da lista, pois
tanto a dimensão territorial como a diversidade social dos candidatos são fatores fundamentais para os organizadores da lista. Os responsáveis pela organização da lista procurariam levar em conta critérios geográficos, atraindo nomes de diversas regiões do estado e evitando superposições de candidatos da mesma área, e tenderiam a privilegiar nomes com prestígio junto a setores específicos do eleitorado (Idem, p.695).
Se o autor está correto, trata-se de uma estratégia coletiva que organiza as campanhas individuais com os objetivos de promover o interesse do partido e de buscar a máxima eficiência possível, tal como preconizado por Samuels (1997) e destacado em passagem anterior do texto. Nessa linha, Figueiredo e Limongi (2002, p.308) agregam como recursos de controle das direções partidárias: a distribuição do tempo no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE) entre os candidatos[4] e a necessidade que os políticos sentiram de manter a candidatura nata. Guarnieri (2004) e Braga, Veiga e Miríade (2009) mostram a influência da organização partidária na seleção e na definição do número de candidatos, pois, ao contrário do que argumentam Mainwaring (2001) e vários outros autores, as legendas deliberadamente não preenchem a totalidade de candidaturas que a lei faculta.
Ortega (2004, p.66-67) pondera que em sistemas de voto preferencial a organização dos partidos intervém com a intenção de coordenar e de moderar a competição eleitoral entre os seus candidatos, de influenciar a ordem de classificação deles e de ampliar as chances eleitorais de determinados nomes. Ao resenhar a bibliografia internacional, a autora apresenta exemplos bastante convergentes com as estratégias narradas no parágrafo anterior: nas eleições para a câmara baixa do Japão e da Irlanda era prática habitual que os candidatos dividissem o distrito eleitoral em circunscrições informais nas quais cada um concentrava a sua campanha. A autora (Idem, p.79) também destaca que essa intervenção das direções não é garantia de sucesso e que a capacidade de atingir tais objetivos depende do grau de institucionalização do partido.
Outro campo de crítica à lista aberta considera que ela estimula a ampliação dos gastos de campanha e a corrupção com vistas a garantir o financiamento das despesas eleitorais. Mainwaring (1991, p.44) argumenta que, embora a corrupção não seja exclusiva do Brasil, ela seria particularmente aguda no país, tendo em vista o fato de a sorte do candidato depender dos sufrágios que ele conquistar, o que o estimula a gastar cada vez mais em campanhas individualista para captar tais votos.
Klein (2007, p.67-70) admite que provavelmente a lista aberta produza campanhas mais caras, porém afirma que a relação entre corrupção e sistema eleitoral é controversa, e que os candidatos não fazem campanha na totalidade do distrito, eles tendem a visar o voto de grupos ou territórios definidos, pois o apoio de uma pequena fatia do eleitorado pode ser suficiente para garantir a eleição.[5]
3 Efeitos esperados sobre os partidos e o comportamento parlamentar
As críticas à lista aberta no que tange aos efeitos produzidos nos partidos não se restringem à arena eleitoral. Ames (2003, p.89) afirma que a representação proporcional de lista aberta entrava o desenvolvimento partidário. O mais ferrenho dentre todos os analistas, Mainwaring (1991) proclama que ela garante aos políticos autonomia vis-à-vis seus partidos em todos os campos de atuação e contribui para minar os esforços de construção de partidos mais efetivos. Em trabalho posterior, declara:
O sistema eleitoral ajuda a explicar o comportamento individualista dos políticos e contribui para a baixa institucionalização do sistema partidário. O baixo grau de lealdade nos partidos catch-all é incentivado pelo sistema eleitoral (Idem, 2001, p.302).
A lista aberta seria responsável, também, pelas dificuldades que os partidos enfrentam para controlar suas bancadas, identificável pela indisciplina do voto em plenário e pelo déficit de coesão, manifestado especialmente por meio da troca de legendas.[6] Isso porque tais parlamentares levam para a arena parlamentar a mesma lógica individualista e personalista a partir da qual se elegeram.
Uma das comprovações deste fato, segundo essa corrente interpretativa, reside no fato de os deputados terem uma ação paroquial e particularista: eles procuram garantir a continuidade da carreira política e bons resultados nas próximas eleições por meio de políticas distributivas, ou seja, a concentração do oferecimento de benefícios aos municípios que formam seus redutos eleitorais, notadamente por meio de emendas ao orçamento. Enfim, ações de custos difusos e benefícios geograficamente concentrados, a receita do fenômeno conhecido como pork barrel. Conforme o modelo explicativo formulado por Mayhew (1974), essas ações também envolvem casework, isto é, o atendimento a pedidos, a intermediação junto à burocracia estatal e o contato com os eleitores das bases (visitas periódicas, divulgação na imprensa local, envio de cartas e felicitações) etc.[7]
Ames (2003, p.21), por exemplo, decreta que muitos deputados, talvez a maioria, passam boa parte do tempo cavando nomeações e projetos de interesse específico dos seus redutos eleitorais. Pesquisa realizada por Carvalho (2003) com os deputados da legislatura 1999-2003 verificou que a grande maioria reputa a si o mandato e projeta danos eleitorais mínimos se trocar de legenda, assim como diagnosticou a elevada importância que dão ao contato com o município e à defesa dos interesses da localidade em sua atividade, ainda que isso implique contrariar a determinação do partido. “Os nossos parlamentares revelaram, de forma inequívoca, que se vêem menos acionados por sua atuação legislativa do que por sua capacidade de equacionar as demandas individualizadas de suas bases” (Idem, p.152).
Os resultados da Pesquisa Legislativa Brasileira, série de surveys aplicada aos parlamentares ao longo de mais de 20 anos, reafirma que os deputados percebem a eleição como fruto de seus esforços pessoais: o índice de resposta ficou acima de 80% nas quatro rodadas (1997, 2001, 2005 e 2009) citadas por Lemos e Ricci (2011). Os dados também evidenciam que os parlamentares entendem que recebem demandas clientelistas dos eleitores (61% a 81%) e que, quando há conflito de interesses, votam de acordo com as necessidades da região, e não com a indicação do partido (63,5% a 70,6%).
Ao resenhar as críticas dirigidas ao sistema de lista aberta – não exclusivamente ao formato adotado no Brasil – Marenco dos Santos (2006, p.726) anota que
Tem sido muito atraente, para a literatura, fixar uma conexão entre: (a) regras eleitorais baseadas em voto preferencial; (b) incentivos para a promoção de reputações personalizadas como estratégia dominante; e (c) um padrão de conexão eleitoral baseado no reforço de lealdades paroquiais e no uso do pork barrel de forma a reduzir a incerteza gerada por elevados custos de informação ao eleitor, provocados pelo incremento no número de candidatos individuais e pela competição intrapartidária.
Nicolau (2006) reconhece que a prática de pork barrel existe para determinado tipo de parlamentar, aquele que não faz parte da elite parlamentar e/ou foi eleito com votações hiperconcentradas em determinados territórios, mas não acredita na generalização do fenômeno. Ele pondera, por exemplo, que não existe
relação necessária entre a lista aberta e o desenvolvimento de atividade parlamentar exclusivamente associada a atender demandas dos eleitores. Um deputado pode, por exemplo, investir esforços na vida legislativa (trabalho em comissões, liderança parlamentar, apresentação de projetos) e no reforço da reputação partidária (liderança da bancada, atividade de direção partidária) (NICOLAU, 2006, p.706).
A interpretação de Ricci segue esta linha interpretativa. Ele afirma que, quanto maior a magnitude e o número de eleitores, maior o custo de uma ação legislativa voltada para o mero atendimento das demandas locais.
Isto significa dizer que os deputados brasileiros não buscam um contato com os ‘seus’ eleitores por meio de políticas distributivas? Acredito que a resposta deva ser negativa, isto é, o político sempre tentará distribuir benefícios aos seus eleitores, mas, para os deputados, levando em conta os altos custos de agir por meio de políticas meramente paroquiais, é muito mais apropriado pensar em uma estratégia legislativa baseada na distribuição de benefícios difusos. Ao sinalizar para os ‘seus’ eleitores através da legislação ordinária, tratando-se de eleição proporcional e levando-se em conta os custos de investimento, é de se esperar que, à medida que aumentem a magnitude do distrito e a população nele residente, prevaleça uma prática distributiva que beneficie grupos amplos e espalhados sobre o território nacional, com vistas a capturar o maior número possível de eleitores (RICCI, 2003, p.704).
Para Figueiredo e Limongi (2002), aquela interpretação é a transposição para o país do modelo explicativo norte-americano – distributivista, calcado no voto pessoal ou na conexão eleitoral –, mas sem a percepção das significativas diferenças entre os dois sistemas político-eleitorais, como o fato de um ser majoritário, e o outro, proporcional.
Um exemplo dessa tendência é o modo como Ames (2003) interpreta a tipologia dos padrões de voto dos parlamentares por ele formulada. Esta é calcada em dois critérios: a dimensão da concentração ou não dos votos em alguns municípios contíguos; e a dimensão de ser ou não dominante na votação dos municípios, ou seja, a participação percentual no total de votos nominais daquela localidade. Surgem os padrões eleitorais: concentrado-dominante, concentrado-compartilhado, disperso-dominante e disperso-compartilhado, sendo que a cada um deles corresponde uma determinada forma de agir no parlamento. Os dados levantados pelo autor, relativos às eleições de 1990, mostram que os parlamentares se distribuem de maneira relativamente uniforme pelos quatro padrões espaciais de votação, o que, segundo Figueiredo e Limongi (2002, p.311) “sugere que a legislação eleitoral brasileira permite que políticos lancem mão de estratégias variadas para se eleger e reeleger, recorrendo à construção de vínculos diversificados com o eleitorado”. Apesar disso, ele preferiu enfatizar apenas um tipo, o concentrado-dominante, relativo ao político adepto do pork barrel.
Além disso, os autores ponderam que “para que um político se eleja manipulando políticas públicas, direcionando-as para atender aos interesses de seus eleitores, sua capacidade de influenciá-las é crucial para que o argumento se sustente. Logo, a arena decisória não pode ser desconsiderada” (Idem, p.308). Nesse ponto, eles se referem à influente interpretação que formularam a respeito do funcionamento do Congresso Nacional e do próprio sistema político brasileiro, segundo a qual há a preponderância legislativa do Executivo, que é construída a partir de amplos poderes constitucionais que ele possui e reforçada pelo padrão centralizado nos partidos do trabalho legislativo. Logo, o presidente monta uma coalizão em bases partidárias, garante participação no governo para os parceiros, e estes fornecem votos para aprovar a agenda, visto que são fortes o suficiente para garantir a disciplina partidária (Ibidem, 1999, 2006). Nessa perspectiva, os parlamentares devem agir por meio de partidos, e não se sustenta a ideia de que eles formam um conjunto de atores individualistas a agirem sem coordenação e a imporem custos ao governo.
Parlamentares não podem agir como franco-atiradores. [...] os parlamentares têm muito a ganhar quando são capazes de coordenar sua ação, isto é, quando resolvem o problema de ação coletiva que enfrentam. Reunir-se em torno de partidos é uma solução para esse problema. [Mesmo que sejam movidos exclusivamente pelo interesse em obter patronagem] [...] a estratégia racional a ser seguida pode levá-los a fortalecer os partidos a que se filiam (Ibid., 2002, p.333).
Na mesma perspectiva, Fabiano Santos (1999) identifica problemas na premissa básica da idéia da conexão eleitoral, fruto de uma análise excessivamente simplificada do funcionamento do sistema eleitoral brasileiro. Ele não considera que paroquializar seja a melhor estratégia para os deputados e, ainda que fosse, há uma dificuldade fundamental, não observada por aquela interpretação: por conta das características do sistema eleitoral, os deputados são incapazes de identificar com clareza sua constituency eleitoral e, assim definir, com razoável grau de confiabilidade, qual clientela atender, e que tipo de interesses e demandas tem tal clientela. Para o autor, a constituency eleitoral dos deputados é fruto da expressiva transferência de votos no interior da lista, desse modo, a alternativa não é prestar atendimento a uma área geograficamente delimitada, e sim nacionalizar o mandato como forma de estabelecer um vínculo com seus eleitores.
O fenômeno da transferência de votos que caracteriza o proporcionalismo brasileiro produz um problema de informação para os deputados a respeito das preferências dos eleitores que contribuíram para sua vitória eleitoral. O presidente torna-se, nessas condições, o intermediário entre o representante e sua base. Quanto mais liberdade o Executivo tem para governar, maior será o valor informacional do posicionamento dos representantes vis-à-vis a agenda governamental (SANTOS, 1999, p.114).
Carvalho (2003) concorda que poucos deputados alcançam o quociente eleitoral, mas considera a interpretação de Santos de um formalismo analítico, pois, ainda que um parlamentar não saiba qual é a sua constituency efetiva, sabe de onde vieram os seus votos e, portanto, qual é a sua base eleitoral e a quem deve dedicar a atividade. Por isso, o entendimento dele é um pouco mais nuançado: discorda da ideia de que a lógica distributivista predomine no parlamento, pois a arena eleitoral brasileira não fornece um único padrão de votação; mas discorda das interpretações que desprezam a arena eleitoral como capaz de nortear a ação legislativa e afirmam a predominância da arena parlamentar, isto é, os incentivos e constrangimentos oriundos do funcionamento centralizado do congresso.
Ao aplicar a taxonomia de Ames (2003) aos pleitos de 1994 e de 1998, ele confirma que há distintas configurações geográficas de votos entre os eleitos e supõe que essas devem fornecem estruturas também distintas de incentivos aos parlamentares, os quais irão, em decorrência, privilegiar objetivos diferenciados na arena legislativa. “A distribuição geográfica do voto exerce impacto independente sobre a esfera legislativa, mais especificamente, sobre as atitudes dos deputados no que se refere à natureza de seus mandatos, às prioridades de ação dentro do Congresso e, finalmente, sobre a relação que mantêm com as bases” (CARVALHO, 2003, p.175). Defende, então, que a lógica do paroquialismo é típica dos parlamentares eleitos com votação dominante (concentrada ou não) e que aqueles com distribuição de votos não-dominante se orientam pelo universalismo.
Na verdade, as interpretações não se chocam nem se opõe tanto quanto Carvalho faz crer, simplesmente porque, embora falem de questões correlatas, versam sobre aspectos distinguíveis. Assim, Figueiredo e Limongi discordam da assertiva de que, por cultivarem o voto pessoal, os parlamentares sejam indisciplinados na arena parlamentar, mas não dizem que inexistem interesses particularistas a moverem os deputados, e sim que tais interesses não geram o comportamento parlamentar individualista suposto pela teoria do voto pessoal. Seria o contrário: porque têm interesses a perseguir (sejam particularistas ou não) e por entenderem a lógica do presidencialismo de coalizão brasileiro e do próprio congresso é que os parlamentares valorizam os partidos e agem disciplinadamente, com vistas a ter acesso aos recursos públicos.
O próprio Carvalho, que critica a generalização decorrente da interpretação de Figueiredo e Limongi, reconhece essa possibilidade e acena para a racionalidade instrumental que move os deputados, o que não se choca com aquela leitura. Em um momento de seu trabalho, ele afirma:
seja pelo exíguo espaço de atuação facultado ao parlamentar individual em meio a procedimentos legislativos fortemente centralizados, seja pela necessidade da reprodução eleitoral com as demandas individualizadas acima apontadas, as atenções e prioridades de atuação dos parlamentares estão voltadas para fora das paredes do Congresso, privilegiando a conexão com os eleitores juntamente com o recurso à burocracia, em detrimento da atividade legislativa propriamente dita (CARVALHO, 2003, p.153).
A frase aponta para a convergência entre as duas interpretações e empalidece a crítica que ele faz a Figueiredo e Limongi: justamente porque sabe que a atividade legislativa propriamente dita está fora da sua esfera de ação – pois controlada pelo Executivo – ou porque ela realmente não lhe interessa, o parlamentar cumpre o protocolo (vota conforme a orientação do partido), obtém as vantagens desse comportamento disciplinado (especialmente se ele é da base de apoio ao governo) e se dedica a utilizar os recursos do mandato para outras atividades.
Desse modo, caso ele seja um parlamentar preocupado em atender bases eleitorais municipalizadas, vai procurar se utilizar do pork barrel e da prestação de serviços aos eleitores ou às instituições locais. Caso ele seja um parlamentar com outra constituency, vinculada a grupos ou a correntes da opinião, igualmente vai procurar atender essa base. Pode-se ir mais longe e dizer que, na realidade, não há porque imaginar constituencies e consequentemente ações parlamentares tão claramente segmentadas, o deputado pode ter uma base geograficamente delimitada e também atender a interesses setoriais (RICCI, 2006).
No entanto, quando estiverem em discussão assuntos que afetam as áreas de seu interesse específico, o parlamentar tende a investir no acompanhamento e na tentativa de influenciar o processo legislativo. Entenda-se interesse específico em sentido amplo: meramente pessoal, da sua base geográfica, de grupos econômicos ou correntes de opinião a que está vinculado de modo mais ou menos estreito etc. Em relação especificamente aos parlamentares por eles identificados como paroquialistas, Leoni e Ricci (2011, p.229) afirmam que
o papel da coordenação partidária que garantiria aos parlamentares redução dos custos informacionais e vantagens procedimentais – os parlamentares não têm de adquirir determinadas informações ou fazer determinados cálculos em um sem-número de matérias e projetos que devem rotineiramente analisar, senão naqueles que de fato interessem ao seu mandato; como também garantem a eles mais tempo e energia para o desenvolvimento das atividades voltadas para as bases eleitorais – especialmente o casework – realização de contatos pessoais e ações próprias junto ao Poder Executivo e aos agentes nos estados e municípios para a definitiva implantação de suas emendas individuais (pork). Seguir o partido no Congresso pode ser uma situação win-win, da qual também se beneficia o parlamentar.
A título de síntese dessa discussão pode-se dizer que o voto em lista aberta e as demais características do sistema eleitoral não produzem um único padrão de votação, e que a divisão entre esses perfis é mais ou menos equitativa, logo a ideia de que predominam deputados paroquiais é empiricamente falsa. Por outro lado, também não se pode negar a existência de parlamentares com perfil de votação paroquial. Contudo, independentemente da constituency, a ação racional do deputado é ser disciplinado e agir partidariamente na arena parlamentar, logo a idéia de um congresso atomizado e fragmentado também é empiricamente falsa, ainda que existissem apenas os deputados com perfil localista. O comportamento disciplinado traz dividendo ao parlamentar, os quais podem ser utilizados para desenvolver o perfil de mandato que ele define como prioritário.
É importante frisar que esta leitura não implica dizer, como o fazem Pereira e Mueller (2003, p.741), que os parlamentares seguem os líderes partidários porque tal ação “pode proporcionar acesso a benefícios controlados pelo Executivo, benefícios esses que têm um forte impacto nas estratégias de sobrevivência política dos parlamentares na esfera eleitoral”. Afinal, os autores tornam o pork barrel como elemento chave para a continuidade da carreira dos políticos, de modo muito semelhante aos estudiosos do modelo americano, aliás, como foi comentado anteriormente.
Os estudos de Figueiredo e Limongi (2002, 2006), Santos (1999) e Ricci (2006), citados previamente, destacam as limitações ao pork barrel no modelo político brasileiro, especialmente quando confrontado com os EUA. O Congresso dá preferência a emendas coletivas e as individuais são as menos executadas, os parlamentares precisam indicar a fonte da receita dos recursos que pretendem transferir às suas bases, razão pela qual as emendas estão vinculadas a políticas públicas formuladas pelo Executivo e, quando executadas, também ajudam a consagrar a agenda governamental, mesmo se propostas por políticos da oposição.
Os autores argumentam que, ainda que o parlamentar queira se dedicar prioritariamente ao atendimento a clientelas específicas, esta atividade não é a única do mandato, nem a preferida dos políticos. E, frente aos índices de votação e de sucesso dos parlamentares que concorrem à reeleição, ela parece não ter força para, isoladamente, definir o sucesso dele, principalmente porque não basta a prática de pork barrel, o eleitor tem de reconhecer o político como o autor, sentir-se contemplado e satisfeito pelo benefício distribuído, e motivado a recompensá-lo em razão disso.
Em reforço a esta perspectiva, em estudo sobre a relação entre emendas individuais ao orçamento e reeleição, Mesquita (2008, p.72) indica que cada parlamentar adota estratégias próprias para garantir o sucesso nas urnas, estratégias essas que variam conforme a trajetória política individual e as ambições de cada um. Logo, não há uma estratégia única para obter cadeiras legislativas. A autora registra, após uma série de testes empíricos, que a execução orçamentária, símbolo por excelência do pork barrel, não parece estar entre as estratégias mais importantes para garantir o sucesso eleitoral.
Mesquita (Idem, p.64) também destaca que boa parte dos determinantes da reeleição está fora do controle dos parlamentares e que o contexto político mais amplo é crucial para a continuidade da carreira política. Nesse sentido, apoiar o governo não significa apenas ter o acesso privilegiado a recursos, mas também – e ainda que o político não queira –, ser co-autor das políticas públicas por ele definidas, credor nas urnas do sucesso ou do fracasso que a gestão apresentar. Idêntico raciocínio pode ser feito para os políticos da oposição, que podem receber votos e dividendos eleitorais sem que tenham acesso a tantos recursos quanto os da situação, nem tenham sido responsáveis pela gestão pública, mas porque realizaram a crítica e souberam apresentar uma alternativa a um governo com avaliação ruim.
Igualmente, como os autores anteriormente citados destacaram, não é possível esquecer que o candidato faz parte de um partido ou de uma coligação e, por mais que possa contar com os votos pessoais, dificilmente ultrapassa sozinho o quociente eleitoral, logo, para se eleger ou reeleger, ele depende da votação atribuída aos demais candidatos e à(s) legenda(s). Enfim, a sorte do candidato não depende só de si, está vinculada ao desempenho da lista como um todo.
Desse modo, novamente a título de síntese: a prática de pork barrel existe, mas não traz os retornos eleitorais supostos. A classe política é sabedora disso, razão porque não direciona o mandato apenas a este tipo de ação política.