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Teoria pluridimensional do Direito: variantes e aplicabilidade

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21/04/2012 às 12:46
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São identificadas as variantes fato, norma, valor, indivíduo, instituição, história e discurso, que estão presentes em na composição metodológica do pensamento jurídico e também da pesquisa aplicada, utilizando autores que pertencem a diferentes matrizes teóricas e axiológicas.

Resumo: o estudo desenvolve uma teoria pluridimensional do Direito que pode ser utilizada na tentativa de melhor conhecer e aprofundar a complexidade da experiência jurídica e judiciária indo mais além do que propõe tradicionalmente a metodologia interdisciplinar dos manuais de Sociologia e Filosofia do Direito. Com essa preocupação metodológica, o estudo se divide em duas partes argumentativas. Na primeira parte, o estudo procura fazer a fundamentação teórica do modelo transdisciplinar, identificando as variantes fato, norma, valor, indivíduo, instituição, história e discurso que estão presentes em todos os paradigmas jurídicos sistematicamente observados nesta publicação. Na segunda parte, o estudo identifica tecnicamente a importância descritiva e analítica dessas mesmas variantes na composição metodológica do pensamento jurídico e também da pesquisa aplicada, utilizando para isto uma série de autores do Direito que pertencem a diferentes matrizes teóricas e axiológicas que no final do estudo comprovam efetivamente a universalidade do modelo aqui proposto. 

Palavras-chave: teoria pluridimensional; programa de pesquisa; Sociologia jurídica transdisciplinar.


INTRODUÇÃO

O objetivo metodológico deste estudo é construir uma teoria transdisciplinar que tenha capacidade heurística para demonstrar que existe - ou deveria existir - uma relação ontológica de interdependência entre sete variantes ou dimensões da realidade que tradicionalmente encontram-se dispersas nos manuais de Sociologia e Filosofia do Direito. Concretamente, o estudo pretende mostrar - através da pesquisa bibliográfica sistemática sobre diversos paradigmas jurídicos - que as variantes fato, norma, valor, indivíduo, história, discurso e instituição podem servir como marcadores organizacionais do conhecimento, proporcionando uma representação transdisciplinar da experiência jurídica e judiciária em geral.

Indubitavelmente, o comportamento dos indivíduos varia em decorrência dos interesses, preferências e convicções que cada um apresenta na sociedade. Metodologicamente, o comportamento humano pode corresponder ao individualismo, ao coletivismo ou então ao meio-termo institucional. Também a História varia filosoficamente entre o materialismo, o idealismo e o meio-termo ou síntese dialética. Os valores podem ser transcendentais, práticos ou prático-transcendentais. Os fatos do cotidiano podem ser objetivos, subjetivos ou uma correlação dessas duas possibilidades de percepção da realidade. As normas podem ser fechadas, abertas ou uma combinação intermediária do tipo semiaberto ou semifechado. As instituições judiciárias podem ser repressivas, permissivas ou uma combinação desses dois extremos. O discurso normativo, por último, pode ser humanista, tecnicista ou uma tentativa de combinação intermediária. 

Em geral, o que se nota nos manuais de Sociologia e de Filosofia do Direito é o fato incontestável de que a complexidade do objeto de estudo jurídico e judiciário não se esgota realizando-se apenas a descrição das variantes fato, norma e valor como propôs dialeticamente Reale na teoria tridimensional do Direito. Do ponto de vista lógico e operacional é patente nas diversas publicações filosóficas e sociológicas do Direito, inclusive do próprio Miguel Reale, que não se consegue descrever satisfatoriamente a complexidade do fenômeno jurídico sem a presença conceitual dos indivíduos, localizados no tempo (histórico) e espaço (social e constitucional das leis). Também na realidade do Direito transparece necessariamente a presença do discurso, que é uma prática determinante no processo de comunicação social entre indivíduos e instituições, representando fatos ordinários e extraordinários que nunca estão isentos de juízos, de ideologias e de valores morais. Além disso, funcionam decisivamente na realidade do Direito as instituições políticas, sociais, burocráticas e judiciárias especificamente, protegendo e declarando os limites da sociedade e dos indivíduos, tornando pública a existência e a validade das normas que nem sempre são regras, princípios e critérios isolados, mas regularmente uma combinação desses três elementos, em maior ou menor escala dependendo do paradigma que está sendo operacionalizado pelo pesquisador.

Os manuais de Sociologia e de Filosofia do Direito reconhecem, obviamente, a importância e a complexidade de todas essas variantes no aspecto interdisciplinar, entretanto, não existe nenhum modelo transdisciplinar estabelecido na prática acadêmica do Direito, conforme sugere a revisão bibliográfica envolvendo os mais diferentes manuais de Sociologia e Filosofia dessa área. Em seu manual de Filosofia do Direito, Paulo Nader (2005, p. 10-11), por exemplo, reconhece que as variantes fato, norma, instituição, valor, indivíduo, história e discurso são inerentes do pensamento jurídico. Entretanto, a presença dessas variantes é projetada de maneira fragmentada por esse autor em seu livro, reforçando a especialização acadêmica das disciplinas que são, a priori, independentes na tela do conhecimento jurídico (Sociologia, Filosofia, Dogmática Jurídica, Axiologia, Psicologia, dentre outras). Segundo esse autor:

Como objeto cultural dotado de complexidade, o Direito comporta diferentes planos de estudo. Em sua dimensão legal, é abordado pela Ciência do Direito, disciplina fundamental que interpreta e sistematiza o ordenamento vigente, sem preocupar-se com o problema axiológico. Do ponto de vista fatual, é tratado pela Sociologia do Direito, que considera as relações entre o fenômeno jurídico e a sociedade, com atenção básica para a adaptação do Direito à realidade social. Não analisa as categorias lógicas, nem cogita o do dever ser e dos valores. Sob o aspecto evolutivo, o fenômeno jurídico é objeto da História do Direito, que pesquisa a etiologia e o desenvolvimento das instituições, com a análise concomitante dos fatos históricos. Outro plano de investigação é o comparativo, pelo qual se faz o cotejo dos sistemas pertencentes a diferentes povos. Dele se ocupa o Direito Comparado, disciplina auxiliar que objetiva esclarecer o sentido do progresso científico e registrar a consolidação de novas tendências. Quando a atitude filosófica se projeta nos domínios da Jurisprudência, tomando o fenômeno jurídico por objeto de indagação, a análise se processa em um riquíssimo plano, onde se questionam problemas de maior relevância para a organização social. O estudo ontológico do Direito, a pesquisa de seus elementos universais e necessários, o exame axiológico de suas formas de expressão constitui a matéria de reflexão da Filosofia Jurídica.

Oliveira (2001a, p. 183-84) considera de outro modo que o Direito “não é; ele existe”. Segundo Oliveira, o Direito existe tão somente para disciplinar as sociedades, espiritualmente “involuídas”, à medida que elas se mantêm “involuídas”. Se a sociedade mudasse radicalmente para melhor, não em sua totalidade, mas na maioria dos indivíduos que a compõem [outra variante do nosso modelo], o Direito desapareceria por simples falta de necessidade. O Direito não é universalmente indispensável, completa Oliveira, não é um bem emanado do Infinito: “[...] é apenas um mal necessário, engendrado pela mente humana, destinado a funcionar aonde falha a moral, aonde falha o amor, aonde falha a consciência, segundo a qual viemos ao mundo para servir e não para sermos servidos” (OLIVEIRA, 2001, loc.cit.).

Rocha (2005, p. 114) observa nesse contexto crítico a importância da teoria da ação comunicativa de Habermas, que postulou a necessidade e a possibilidade de se obter um consenso universal na razão prática, sintetizando a pragmática situacional dos atos de fala e a universalidade transcendente do imperativo categórico da livre argumentação. De acordo com esse mesmo autor, Habermas propôs o consenso [que é uma forma de discurso em nosso modelo]. Concretamente, a hipótese de Habermas pode ser bem sucedida na descrição e análise de novos fenômenos relacionados com a informalização e o acesso à justiça, como é o caso da resolução de conflitos por meio da arbitragem, negociação e mediação (ROCHA, op. cit.).

Bobbio (1999) define o Direito, por sua vez, como sendo um tipo de ordenamento social formado por um conjunto de normas positivas [que é uma variante em nosso modelo] oficializadas pelo Estado. Duas características são relevantes na conceituação do Direito, segundo esse autor (ibid., p. 27): a exterioridade e a institucionalização das sanções jurídicas. Bobbio (ibid., p. 30) reconhece também que o Direito é um fenômeno bastante complexo cujo ponto de referência é o sistema normativo inteiro, sendo inútil, portanto, procurar-se o elemento distintivo de um costume jurídico a respeito da regra do costume na norma consuetudinária em particular. Dever-se-á responder, de preferência, segundo ele, que uma norma consuetudinária torna-se jurídica quando vem a fazer parte de um ordenamento jurídico. Nessa direção, o problema não mais pertence à tradicional teoria do costume. O autor questiona: “qual é o caráter distintivo de uma norma jurídica consuetudinária com relação a uma regra de costume? Quais são os procedimentos através dos quais uma norma consuetudinária vem a fazer parte de um ordenamento jurídico?

Em síntese, o que se pretende demonstrar neste estudo é que a busca da complexidade do pensamento jurídico e judiciário pode ser otimizada reunindo contribuições disciplinares e paradigmáticas já pontuadas aleatoriamente por diversos autores da Sociologia e da Filosofia do Direito. A teoria pluridimensional procura neste sentido valorizar a filosofia de trabalho do pesquisador, auxiliando criteriosamente na representação transdisciplinar dos fenômenos sociais, considerando oportunamente neste processo que não existem indivíduos fora do tempo e do espaço; e da mesma forma, que não existem fatos, normas e valores sem a instrumentalidade dos discursos e das instituições. Todas as variantes dessa teoria são ontologicamente interdependentes no sentido de que um ligeiro movimento numa delas produz efeitos positivos e negativos em rede, ou cascata, no sistema jurídico e judiciário como um todo.


2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DAS VARIANTES

O ser humano não é uma simples entidade psicofísica ou biológica redutível a um conjunto de fatos explicáveis pela Psicologia, Física, Anatomia ou Biologia. Nele, existe algo mais que representa uma possibilidade de superação e inovação. (REALE, 2002, p. 211).

O ser humano não é somente um realizador de interesses de coisas valiosas ou de “bens”, pois ele sente uma indeclinável necessidade de proteger o que cria, de tutelar as coisas realizadas e de garantir para si mesmo, acima de tudo, a possibilidade de criar livremente coisas novas (REALE, op. cit., p. 219).

Segundo Miguel Reale (2002, p. 556) “todo ser humano possui um centro axiológico de gravidade que garante o equilíbrio de nosso ser pessoal”. Consequentemente, toda a tomada de posição é inseparável de qualquer experiência axiológica, manifestando-se tanto no plano individual e coletivo como ato decisório, resultante de um ato de preferência entre valores (ibid., p. 557).

Se o valor e o fato se mantêm distintos, exigindo-se reciprocamente em condicionalidade recíproca, “podemos dizer que há entre eles um nexo ou laço de polaridade e de implicação. Como por outro lado, cada esforço humano de realização de valores é sempre uma tentativa, nunca uma conclusão, nasce dos dois elementos um processo que denominamos de ‘processo dialético de complementaridade’, peculiar tão somente à região ôntica que denominamos cultura” (ibid., p. 571).

A atualização dos valores depende sempre das circunstâncias e dos critérios contingentes de conveniência e oportunidade, dos quais decorre a preferência por esta ou aquela norma dentre as múltiplas vias compatíveis com as mesmas exigências axiológicas. Não se podendo conceber valor que jamais se realize, nem valor que de todos se converta em realidade, escreve Reale (ibid., p. 572), há uma tensão permanente entre aquele e esta; tensão que no plano cultural do Direito é representada pela norma jurídica, fator integrante do valor e do fato.

Na realidade, diz o autor, fato e valor, fato e fim estão um em relação com o outro em dependência ou implicação recíproca. Reconhecendo-se a presença da “realizabilidade” e “inexauribilidade” dos valores, a norma jurídica nunca esgota o processo histórico do Direito, mas assina os seus momentos culminantes (REALE, op. cit).

Nesse contexto, “a regra vigente deve ser sempre uma baliza ao comportamento do juiz, que, no entanto, não pode deixar de valorar o conteúdo das regras, segundo tábua de estimativas em vigor em seu tempo. Ele, juiz, enquanto homem, já participa dela e pertence às circunstâncias de sua ‘temporalidade’ [...]” (REALE, op. cit.,  p. 583).

Direito e poder são termos inseparáveis, segundo Reale (ibid., p. 560), “mas será vão querer reduzir o primeiro ao segundo, pretendendo transformá-lo em simples qualidade ou energia da norma do Direito, da própria regra em seu momento de eficácia concreta”.

No fundo, a decisão do poder, seja ele estatal, costumeiro, jurisdicional ou negocial “somente se torna possível e atual em correlação, ou melhor, em função das valorações que o condicionam e que legitimam a opção normativa in concreto” (ibid., p. 561).

A palavra Direito pode ser apreendida por abstração, em tríplice sentido, segundo 3 perspectivas dominantes: a) O Direito como valor do justo, estudado pela Filosofia do Direito na parte denominada de Deontologia Jurídica, ou no plano empírico e pragmático pela Política do Direito; 2-O Direito como norma ordenadora da conduta, objeto da Ciência do Direito ou Jurisprudência e da Filosofia do Direito no plano epistemológico; 3- o Direito como fato social e histórico, objeto da História da Sociologia, da Etnologia; e da Filosofia do Direito, na parte da Culturologia Jurídica (REALE, op. cit., p. 509).

Indo mais além do que propôs formalmente Reale, o discurso dialético da pluridimensionalidade do Direito deve postular que existe uma indissociabilidade entre fato, norma, valor, indivíduo, história e instituição. Entretanto, pode existir excesso e carência de alguns destes elementos na prática.

O equilíbrio da tridimensionalidade, conforme sugere a teoria de Reale, somente será obtido através da percepção do juiz e dos profissionais que vão tentar encontrar um ponto de equilíbrio nessa dialética toda. O mesmo vale para a teoria da pluridimensionalidade.

Segundo Reale, quando dizemos que o processo cultural só é compreensível segundo uma dialética de implicação e polaridade, ou de complementaridade, queremos referir-nos à tensão fato-valor, pois estes elementos não são suscetíveis de se resolverem um no outro, mas tão somente de se comporem em implicação ou integração, quer através de formas estéticas, quer através de normas éticas (REALE, op. cit., p. 393).

Do ponto de vista da positividade jurídica, o Estado é a entidade máxima deste processo dialético (REALE, op. cit., p. 705). É o lugar geométrico da positividade jurídica para indicar aqui que não pode subsistir com os caracteres de juridicidade, qualquer ordenamento social em conflito com os demais e com o ordenamento máximo que representa a garantia a coexistência legítima de todos.

De acordo com a teoria desse autor “toda regra jurídica é resultante de uma escolha, às vezes identificável no espaço e no tempo, muitas vezes oculta nas dobras dos usos e costumes”. Por isso mesmo, a correlação essencial entre nexo normativo e poder é de suma importância para uma compreensão realista do Direito, devendo notar-se ainda que a decisão, que é a alma do poder, não se verifica fora do processo normativo, mas insere-se nele para dar-lhe atualidade ou concreção. “O Poder no fundo é um ato decisório munido de garantia específica”.

A norma de Direito envolve na realidade um fato que uma vez iluminado por vários valores dá lugar a uma atitude humana e a uma decisão. Segundo Reale (ibid., p. 558-59), o poder consagra a norma e a torna efetivamente obrigatória, “mas a obrigatoriedade do Direito não resulta da incognoscibilidade dos valores justos, e sim da relatividade de suas possíveis projeções concretas”. Compreende-se deste modo que a variação dos valores in concreto não compromete sua objetividade”.

O que esse mesmo autor propõe dialeticamente é que o Direito vigente deve ser aberto às contradições históricas, sociológicas, antropológicas, ideológicas ou morais, entretanto, o Direito vigente deve ter poder de síntese, garantido e melhorado sempre a busca pela Justiça e pela dignidade da pessoa humana. Na prática, a sentença do juiz deve ser um processo dialógico, enfrentando contradições máximas entre as partes, porém, fornecendo no final uma unidade jurídica fundada não no abstrato, mas na concretude dos fatos e dos valores humanos dentro do espaço formal das leis e instituições públicas.

Particularmente o  juiz ou o advogado deve sentir que no sistema de Direito exige algo de subjacente que são os fatos sociais aos quais está ligado um sentido ou significado, que resulta dos valores, em um processo de integração dialética, que implica ir do fato à norma e da norma ao fato (REALE, op. cit., p. 580).

Cada ser humano possui um modo de percepção da realidade. O intelecto é dado ao homem não para investigar e conhecer a verdade, mas sim para poder orientar-se na realidade (HESSEN, 1989, p 51). O homem é um ser essencialmente prático, um ser de vontade e de ação (ibid. p. 51).

São verdadeiras as representações que resultam em motivos de ação adequada e vital, segundo palavras originais de George Simmel. O intelecto não foi lhe foi dado ao ser humano para conhecer a verdade, mas para atuar no mundo (ibid., p. 52).

Especificamente no que se refere às normas, devem ser transformadas e conceituadas em instrumentos de ação cotidiana, em consequência deste postulado surgirão normas jurídicas superutilizadas, utilizadas, subutilizadas e inutilizadas. Esse fato pode ser observado no cotidiano, na História e também no funcionamento das instituições.

Além disso, as normas não compreendem apenas as regras que determinam e os princípios que inspiram pensamentos diversos, mas também critérios que são estruturas praticantes e decisórias do poder que dependem do poder de escolha do sujeito.

No pragmatismo jurídico, a norma é pretensamente considerada vazia de conteúdo axiológico não sendo boa nem má, mas tão somente “jurídica” de tal modo que a “validade” repousa sobre um juízo probabilístico de aplicação  (ibid., p. 339).

No discurso do pragmatismo tem valor o que é funcional, prático, real, ficando em segundo plano qualquer tipo de especulação ou transcendentalidade do pensamento jurídico. De acordo com Reale (2002, p. 168-69), “o pragmatismo sustenta uma teoria do conhecimento que traduz a verdade em critério de verdade e utilidade [...] O pragmatismo sustenta que devemos resolver o problema do conhecimento e do alcance do conhecimento reconhecendo que a teoria se insere ou se integra como momento da ‘ação’ ou da vida prática”.

Assim, uma verdade só é verdade porque vai ao encontro das exigências vitais do homem; e essas exigências se externalizam no plano da ação e não no plano teorético da especulação. Em todas as correntes do pragmatismo, “o critério de fixação da possibilidade do conhecimento não é mais posto no plano da teoria da especulação pura, mas no plano da práxis, tendo em vista as exigências da vida humana, quer da vida humana singularmente considerada, quer da vida do homem ordenada em sociedade” (ibid., p.179).

Os empiristas pretendem partir dos fatos jurídicos para atingir leis e princípios, e no fundo, pensam poder seguir os mesmos fatos para alcançar o conceito universal do Direito (ibid., p. 321). Mais recentemente, os adeptos do neoempirismo (ibid., p. 322) observam que quando se parte de um fato jurídico, recebe-se este fato em caráter hipotético, “como se” fosse jurídico, para depois, pelo cotejo de outras observações, verificar-se a verdade da hipótese em função dos dados das experiência. A verdade não é um valor teórico, mas apenas uma expressão para designar a função do juízo que conserva a vida e serve a vontade do poder (ibid., p. 52).

A validade das normas repousa sobre um juízo probabilístico sobre a sua futura aplicação pelos órgãos judicantes (ibid., p. 329). Segundo Reale (2002, p. 329), os autores Olivecrona e Ross são exemplos do “empirismo coerente”, e estabelecem entre fato e norma uma linha de continuidade estrita, visto ser contestado qualquer dualismo entre realidade e valor.

Nessa linha de pensamento, apenas são admitidas regras de direitos suscetíveis de verificação empírica, isto é, estabelecidas em função de fatores observáveis ou, então, redutíveis logicamente a enunciados normativos já comprovados.

Na definição original de Ross, por exemplo, “Direito válido indica um conjunto abstrato de ideias normativas que servem como esquema de interpretações dos fenômenos jurídicos em ação, o que por sua vez implica que essas normas sejam efetivamente seguidas, e seguidas por serem experimentadas e vividas como socialmente obrigatórias, ou seja, pelo juiz e outras autoridades judiciais ao aplicar o Direito” (in: ROSS, “Diritto e Giustizia”, Turim: 1965, p. 18 apud REALE, op. cit., p. 329). Para Olivecrona, por outro lado, “só nos resta aceitar o Direito como um sistema que aí está como um fato e que se impõe aos legisladores e aos juízes, embora possa ser modificado por eles” (apud REALE, op. cit., p. 329).

Na fenomenologia jurídica, diferentemente, a concepção interacionista das relações sociais se fundamenta no princípio de que o comportamento humano é autodirigido e observável em dois sentidos: simbólico e interacional. Isso permite a qualquer ser humano planejar e dirigir as suas ações em relação aos outros e conferir significado aos objetos que utiliza para realizar seus planos (MINAYO, 1994, p. 54).

Normas, instituições, discursos e valores sociais podem ser descritos numa escala gradativa de intensidade de sensações. A causa da variabilidade social deriva basicamente da percepção e do sentimento que as pessoas desenvolvem no espaço cotidiano.

O método fenomenológico na definição de Reale (2002, p. 368). “é um processo feliz de descrição e compreensão de um fenômeno, especialmente sendo de natureza cultural, mas o integramos na correlação subjetivo-objetiva, culminando numa reflexão histórico-axiológica”. De acordo com esse autor (REALE, loc. cit.):

O direito, qualquer que seja o conceito que sobre ele se tenha, corresponde sempre a algo de vivido como tal através dos tempos, a uma experiência da qual se teve maior ou menor consciência, mas que assinala uma direção constante para a garantia de algo”. Como consequência, o direito possui conteúdo histórico que nos cabe analisar como conjunto de significações e não apenas como sequência mais ou menos regular dos fatos. Não basta acolher um fato como se fosse jurídico, pois importa verificar como é que foi ‘recebido’ como tal através do tempo.

A fenomenologia é considerada como a Sociologia da vida cotidiana. Embora na sua elaboração sejam percebidas influências weberianas é na Filosofia de Husserl que a fenomenologia consolida seu nome e fundamentação metodológica. O argumento de Husserl é o mesmo de Dilthey e de Weber, isto é, os atos sociais envolvem uma propriedade que não está presente nos outros setores do universo abarcado pelas ciências naturais: o significado (MINAYO, 1994, p. 55).

Enquanto no positivismo sociológico se determina a separação entre fatos sociais e valores, a fenomenologia diz que a linguagem, práticas, coisas e acontecimentos são inseparáveis. A linguagem nesse quadro é essencial para que a realidade seja do jeito que é (ibidem, p. 58).

De acordo com Schutz (in: MINAYO, op. cit., p. 57) o mundo social é constituído sempre por ações e interações que obedecem a usos, costumes e regras ou que conhecem meios, fins e resultados. No lugar da coerção da sociedade sobre o indivíduo, a fenomenologia proclama a liberdade do ator social que através de sua história biográfica e inter-relação com seus semelhantes cria significados e constrói sua realidade.

O conteúdo intencional do Direito, no comentário de Miguel Reale, só pode nos ser dado na fenomenologia através da História, podendo-se afirmar, então, que a subjetividade sobre o que se dedica a reflexão fenomenológica é a do homem na temporalidade do ser histórico e em sua concreta universalidade.

A intersubjetividade é vivida em situação de familiaridade sobre a forma do nós e permite a captação do outro como único em sua individualidade. Ou em situação de anonimato que afasta a unicidade e a individualidade do outro e produz as situações de generalização. O grau máximo de anonimato é a consideração do outro como número ou função (MINAYO, 1994, p. 58).

Ao contrário do discurso positivismo que confere primazia ao reinado da ciência, a fenomenologia advoga sua submissão aos princípios da ética e da moral de determinada sociedade (ibid., p. 59). No estudo fenomenológico será de importância capital o recurso à Teoria da Linguagem como meio de acesso aos conteúdos espirituais: “tudo quanto o homem sabe, sabe através de palavras e símbolos, através da linguagem. Procurar a raiz de uma realidade muitas vezes é procurar a raiz de um vocábulo” (REALE, 2002, p. 371).

A etimologia das palavras, completa Reale, “é manancial precioso de verdades a respeito dos fenômenos, mesmo porque as palavras raramente surgem por acaso, mas são postas em função de algo que se impõe inicialmente ao espírito” (ibid., p. 372). As palavras envolvem de maneira imediata o real. O mesmo fato acontece no domínio das instituições jurídicas e judiciárias. Conforme explica textualmente Reale  (ibid., p. 373):

[...] Se, por exemplo, um jurista está convencido de que o Direito é apenas um conjunto de normas ou de regras, será relativo seu interesse por tudo que diga respeito ao Direito como fato social. Ao contrário, se o jurista se convence de que o objeto da Jurisprudência é dado pelo fenômeno social, ou econômico, as regras passarão a ter valor secundário e sua disciplina adquirirá cunho marcadamente sociológico.

No livro “Teoria do ordenamento jurídico”, Bobbio (1999) define o Direito como um conjunto normativo no meio de outros conjuntos ou ordenamentos sociais. Especialmente o Direito é produto da decisão do Estado. O  autor enfatiza que as normas positivas não existem no vazio social, pois estão inseridas historicamente numa determinada sociedade; além disso, os ordenamentos positivos precisam das instituições estatais para preservar e aplicar as suas regras.

Existem duas características fundamentais no ordenamento normativo segundo esse mesmo autor: a exterioridade e a institucionalização das sanções jurídicas. Aqui, nessa definição, reaparece a influência kantiana (presente no livro “Fundamentação da metafísica dos costumes”), onde se postula que a Moralidade pertence exclusivamente ao domínio da subjetividade, e o Direito, ao domínio da objetividade, exterioridade e formalidade das leis, cuja execução prática deve ser garantida unicamente através de uma sanção externa e institucionalizada.

Em geral, no positivismo considera-se que a aceitação das normas deve ter uma origem - o poder originário, sobre o qual não existe outro poder pelo qual se possa justificar o ordenamento jurídico. Esse poder funda a origem da ordem constitucional. É a fonte das fontes. O poder originário dos jusnaturalistas, por exemplo, é o pacto social. Para os positivistas, entretanto, nasce de um fato jurídico, ou legal instituído (um decreto, uma assembléia eleita, ou uma lei, por exemplo).

Todo ordenamento jurídico tem dois conceitos básicos de análise: unidade e sistema. A unidade, segundo Bobbio (1999), implica um todo formado por diversos componentes. O problema latente da unidade são as antinomias jurídicas. Devido ao volume de regras produzidas ao longo do tempo podem acontecer choques entre as normas federais, estaduais e municipais. A solução geral consiste exatamente em tentar neutralizar ou apagar o incêndio da antinomia, tendo em vista que a sua presença é nociva ao bom funcionamento do sistema, provocando inconsistência e confusão no processo produtivo da Justiça.

No conceito de sistema, por outro lado, a questão problemática latente é saber se o ordenamento está completo ou incompleto. Na opinião do autor o sistema nunca será completo, mas autocompletável. Para ele, felizmente, o ordenamento jurídico possui disponível interna e externamente matéria-prima que serve para solucionar as lacunas através de uma variedade de regras, princípios e critérios.

Na solução das antinomias reais, Bobbio descreve alguns critérios que trabalham em favor das regras. O primeiro deles é o critério “Lex superior”; nele, o operador do Direito vai preferir a norma superior, ao invés da inferior, pois do ponto de vista da hierarquia exclui-se o que apresenta menor força normativa. Nesse critério, percebe-se claramente a presença da ideologia positivista supervalorizando a hierarquia e a superioridade das normas.

Outro critério reconhecido pelo autor aborda a especialidade da norma, é o chamado critério “Lex specialis”. Neste critério, “a lei especial prevalece sobre a lei genérica ou então, quando se aplica o critério da lex specialis não acontece a eliminação total de uma das duas normas incompatíveis  mas somente daquela parte da lei geral que é incompatível com a lei especial. Por efeito da lei especial, a lei geral cai parcialmente” (BOBBIO, op. cit., p. 97). A especialidade da Lei reflete outra ideologia preciosa do positivismo em geral que é a preferência por aquilo que fica mais próximo do fato concreto.

Outro critério empregado pelo positivista deve ser a cronologia das normas, é o chamado critério “Lex posterior”. No momento da antinomia, é preferível a Lei mais moderna do que a Lei mais antiga, mesmo que neste caso envolva o costume social. Neste critério, reaparece outra ideologia fundamental do positivismo filosófico que consiste em preferir a modernidade no lugar da antiguidade. 

Segundo Bobbio, a complexidade das normas pode ser catalogada da seguinte forma: existem normas que mandam ordenar; normas que proíbem ordenar; normas que permitem ordenar; normas que mandam proibir; normas que proíbem proibir; normas que permitem proibir; normas que mandam permitir; que proíbem permitir; que permitem permitir.

Inevitavelmente devido à complexidade das normas do Direito existem lacunas no plano ideal das leis e na prática dos legisladores e agentes do judiciário. Por exemplo, leis muito detalhistas deixam de fora inúmeros elementos significantes; por outro lado, leis muito genéricas, esquecem ou não capturam de determinados aspectos da realidade. A solução técnica no positivismo consiste em preencher a lacuna com uma determinada interpretação sistêmica ou com o uso da analogia tomando emprestados procedimentos de soluções anteriores bem sucedidas.

O preenchimento das lacunas, segundo Bobbio, pode ser feito através da heterointegração, ou seja, buscando-se ajuda de outros ordenamentos estrangeiros, de outras fontes sociais, ou através da auto-integração incluindo elementos que fazem parte do sistema jurídico estatal. Uma forma comum de heterointegração é buscar ajuda nos Direitos naturais ou Direitos humanos que estão fora do texto escrito nacionalmente. Na técnica de interpretação sistêmica, por outro lado, o esforço é construtivo procurando harmonizar a solução desejada com o sistema normativo inteiro.

Conclusivamente, pode-se afirmar ainda que existem muitos princípios, autorizados e reconhecidos legalmente que podem ser manipulados na tentativa de solução das lacunas. No positivismo, o Direito não deve tolerar antinomias porque este problema gera inconsistência, incerteza, e imprevisibilidade no cotidiano da ordem pública e privada. Quando uma norma obriga e outra autoriza, ou proíbe e outra autoriza, tal fato gera antinomia.

A caracterização do problema da antinomia se refere ao mesmo ordenamento e ao mesmo fenômeno jurídico. De acordo com o positivismo, a norma fundamental pertence ao ordenamento constitucional e sua validade orienta todos os cidadãos a se conduzirem de modo aceitável e convencional.

Na base da pirâmide positivista, ficam localizados os atos executivos e as leis ordinárias que executam as regras mais abstratas da constituição, como por exemplo: portarias, expedientes, resoluções dentre outros recursos infraconstitucionais. No meio da pirâmide, Bobbio considera pontualmente que existe o poder de negociação que é uma fonte produtora e também executora de subregras constitucionais.

Tradicionalmente com fizeram Kant e Hobbes, por exemplo, o Direito foi pensado como sendo uma ordem coativa através do uso incondicional da força. De acordo com Bobbio (op. cit.), é melhor pensar o Direito possuindo a possibilidade de coerção, através da coercibilidade não somente sobre o que aconteceu, mas sobre o que poderá acontecer na sociedade. Além disso, é importante admitir que as sanções nem sempre serão coercitivas. Nader (2005) lembra neste contexto que no Direito existem sanções positivas ou premiais. Exemplos imediatos são os prêmios, os descontos em IPTU entre outras vantagens especiais para o cidadão. De acordo ainda com Nader (op. cit., p. 62): “sanção premial seria a hipótese de benefício previsto no Direito para aqueles que, em determinadas circunstâncias, cumprem seus deveres jurídicos. Ela se daria, por exemplo, quando a lei concedesse desconto especial ao contribuinte que pagasse o seu imposto antes do vencimento”.

Na questão do sistema, alerta Bobbio, devemos averiguar a coerência entre as partes, ou seja, entre as normas. O sistema é uma totalidade, formada por elementos variados. No estudo sobre a estática do Direito, por um lado, as normas estão relacionadas entre si no que se refere ao seu conteúdo e relação material, entrosadas logicamente, dedutivamente e intelectivamente uma com as outras. No aspecto dinâmico do Direito, por outro lado, a relação é formal, ou seja, tem a ver com o exercício do poder de uma autoridade para outra.

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De acordo com o pensamento de Kelsen no livro Teoria pura do Direito, os sistemas jurídicos são dinâmicos porque a passagem de uma norma para outra depende sempre de alguma autoridade burocrática. Pontualmente, considera Bobbio (1999) que aquilo faz a dinâmica acontecer é na maioria das vezes a interpretação jurídica, “um dos ossos do ofício do jurista”. No positivismo, há predominância das regras, que são estruturas determinantes declarando o que pode ou não ser praticado pelos indivíduos e órgãos da comunidade. As regras em certo sentido são réguas sociais. Elas medem a extensão dos Direitos e deveres de cada um na sociedade. A visão positivista, a Lei somente tem força nos limites da nacionalidade onde existem soberania e monopólio estatal; fora do Estado-nação, ao nível internacional, a Lei perde a sua consistência. Por isso, tratados e convenções precisam ser validados na direção de uma agência centralizadora ou quase-estatal.

Criticando essa visão legalista é oportuno resgatar a crítica de Aristóteles na obra “Ética a Nicômaco”. Para ele, as réguas ou regras sociais deveriam acompanhar o caso concreto e ser mais flexíveis nas situações onde falham as disposições legais constituindo deste modo o critério da equidade. De acordo com Aristóteles (op. cit., Livro V: 10):

[...] é por isso que nem todas as coisas são determinadas por lei: é impossível estabelecer uma lei acerca de algumas delas, de tal modo que se faz necessário um decreto. Com efeito, quando uma situação é indefinida, a regra também é indefinida, tal qual ocorre com a régua de chumbo usada pelos construtores de Lesbos para ajustar as molduras; a régua adapta-se à forma da pedra e não é rígida, da mesma forma como o decreto se adapta aos fatos.

Admite o positivismo jurídico que existem valores do Direito e valores de Justiça. Aqueles juizo que se referem às pautas normativas, em função das quais se qualificariam as condutas como lícitas e ilícitas se inscreveriam na órbita da Ciência Jurídica e em seu aspecto abstrato, na Teoria Pura. Os valores de justiça, diferentemente, seriam subjetivos e transcenderiam os quadros da Ciência do Direito (NADER, 2005, p. 199).

A chamada “regra de ouro – Não faças aos outros que não queres que te façam a ti” - é censurada por Kelsen, que em seu livro recorre a várias situações fáticas possíveis para demonstrar a sua insustentabilidade. Essa regra popular pressupõe que as pessoas têm a mesma opinião a respeito dos fatos, o que constitui uma ilusão, pois os homens de forma alguma coincidem no seu juízo sobre aquilo que é subjetivamente bom (ibid., p. 209).

No positivismo, o juízo de valor não pode incidir sobre as decisões, portanto, o que é válido nem sempre pode ser justo, mas é obrigatório. O fundamental é a validade, ou seja, a oficialidade da norma. Nessa linha de pensamento, as fontes do Direito são apenas objeto do poder, ou seja, são fontes inspiradoras dos agentes jurídicos e judiciários, e nunca suas fontes determinantes.

Na prática positivista, o núcleo inviolável é o princípio da validade, por isso mesmo, devemos ir atrás daquilo que é oficial, ainda que a norma nunca tenha sido usada até então, ou seja, tenha sido realmente efetivada. A blindagem ideológica do positivismo declara neste sentido que se alguma Lei existe é porque simplesmente ela guarda alguma eficácia virtual para determinado problema. Se esse problema não emerge no cotidiano, melhor para a Sociedade!

A questão da validade é um aspecto ontológico do Direito na concepção positivista. Para se descobrir a validade jurídica, devemos verificar inicialmente quem promulgou a Lei, pois alguém possui poder legal para expedir normas. Além disso, é preciso verificar qual é a norma fundamental que inspira a produção de outras normas derivadas. Segundo Kelsen, o sistema jurídico tem poder para estabelecer o fim e o começo de uma norma. Entretanto, vigência e validade andam sempre juntas. Neste caso, o autor emprega a expressão “validez” para reforçar essa união conceitual. Deste modo, não basta simplesmente existir, a norma deve ter publicidade a partir de sua publicação oficial na comunidade.

Duas características básicas dos ordenamentos jurídicos são a exterioridade e a institucionalidade. De acordo com Bobbio (1999, p. 53) quando um órgão superior atribui a um órgão inferior um poder normativo, não lhe atribui um poder ilimitado. Ao estabelecer esse poder, estabelece também os limites entre os quais pode ser exercido. Assim como o poder de negociação e o poder jurisdicional são limitados pelo Poder Legislativo, também o exercício do Poder Legislativo é limitado pelo poder constitucional.

A ordem jurídica congrega normas que se vinculam dentro de uma organização hierárquica. A validez de cada norma é garantida por outra de instância superior, à exceção da norma fundamental, que é fonte de validade suprema de todas as demais. O papel das normas através das regras pode ser notado na crítica positivista contra o princípio da retribuição – onde se retribui o bem como outro bem e o mal com outro mal-  não se adapta à realidade definida por Kelsen (BOBBIO, 1999, p. 209). Para ele, as regras que serão aplicadas não representam o humor nem a informalidade dos princípios morais. 

As normas podem ser de conduta e de estrutura ou competência. Podem ser superiores, intermediárias e inferiores. Quando normas entram em conflito, ganham importância critérios da hierarquia, especialidade e cronologia dentre outros.

A teoria da imputação da norma jurídica é a expressão de um mandamento ou imperativo estatal. A conexão entre ilícito e a sanção não é de ordem causal na sociedade. O ilícito não é a causa da sanção, nem esta é a consequência do ilícito. Aplica-se a sanção pela prática do ilícito em razão de prescrição normativa (BOBBIO, 1999, p. 201).

A linguagem jurídica do positivismo tem duas qualidades artificiais: poder e dever. A produção jurídica é a expressão de um poder, a execução revela o cumprimento de um dever. Denomina-se poder, por outro lado, a capacidade que o ordenamento jurídico atribui a esta ou aquela pessoa de colocar em prática obrigações em relação a outras pessoas; chama-se obrigação a atitude a que é submetido aquele que está sujeito ao poder (BOBBIO, op. cit., p. 51-52).

Na “Teoria pura do Direito”, Kelsen (capítulos 1-4) tem preocupação em definir o Direito como objeto de estudo de uma nova ciência, que ele denominou de “ciência jurídica”, inspirada no modelo da engenharia com a intenção de construir um edifício ordenado de normas que garantiriam, da melhor maneira possível, a segurança jurídica e a liberdade das pessoas. Na engenharia social desse autor, o esquema de pensamento jurídico é maquínico, operacional e artificialista. Por isso mesmo, Kelsen declara que a ciência jurídica não é um a subárea da Sociologia nem da Filosofia, uma vez que apresenta um corpo de conhecimento destinado à investigação lógica das regras do jogo social. Desse modo, o positivismo de Kelsen tem preocupação com a máquina jurídica perfeita e ideal, que deveria progressivamente ser melhorada e aplicada sobre o Direito positivo empírico (que é o objeto de estudo da ciência jurídica).

O positivismo de Kelsen é contra o individualismo e defende o comunitarismo institucional. No cotidiano, os indivíduos variam devido à renda, classe social, localização burocrática, autoridade, aspectos biológicos, preferências, convicções e interesses variados. Nesse modelo, admite-se que as pessoas apresentam interesses, preferências, posições socieconômicas, culturais e burocráticas variadas na sociedade. Na burocracia jurídica, por exemplo, os indivíduos podem ser juízes, promotores, desembargadores, delegados, defensores, procuradores ou mais simplificadamente, vítimas e culpados, comandantes e comandados. Os indivíduos podem ser pessoas naturais, civis, físicas e jurídicas.

A coercibilidade das normas varia entre o grau máximo, mínimo e zero de coerção e castigo. Gradativamente, as normas ou regras podem ser hierarquizadas numa escala do poder: supraconstitucionais, infraconstitucionais e intermediárias, ou então, abstratas, executórias e intermediárias. As regras podem proibir, mandar e permitir. Além disso, existem ordenamentos que estão abaixo, ao lado e pretensamente acima do Direito Nacional.

Adverte Bobbio (1999) a respeito da complexidade do sistema normativo que existem normas de conduta que proíbem, autorizam e obrigam; também há normas de estrutura ou de competência que informam condições e procedimentos para que o indivíduo possa ficar dentro da legalidade com liberdade de ação.

 O positivismo de Kelsen desenvolve uma história do Direito semelhante ao que foi delineado por Comte no século XIX. Primeiramente, observa Kelsen, existiram sociedades animistas e panteístas, onde até mesmo gafanhotos e cavalos foram julgados e levados à pena de morte diante da multidão na Antiguidade e na Idade Média. Depois, há uma fase de progresso considerável, através do crescente uso técnico do Direito moderno e positivado, desenvolvendo-se uma ideologia antropocêntrica, onde existiriam apenas criaturas humanas na condição de objetos do Direito positivo. A História positivista revela que houve um progresso nas relações humanas com o aperfeiçoamento do Direito positivo, ficando para trás o animismo, o panteísmo e as trevas da ignorância e da barbárie. Esse mesmo esquema de reflexão serve para produzir a microhistória recente de qualquer lei do ordenamento jurídico.

Bem diferente do positivismo, o existencialismo jurídico procura cultivar o individualismo coletivo através da coexistência pacífica, socialmente responsável e aberta entre culturas, pessoas e povos diferentes. Em lugar de submeter os indivíduos à camisa-de-força do tecnicismo da lei, mediante padrões uniformes, o existencialismo propõe diferentemente que se abra espaço para as preferências e que deste modo sejam personalizados os métodos jurídicos dentro da ordem. As normas não devem ser exclusivamente rígidas, mas também devem apresentar esquemas abertos e flexíveis de aplicação ao caso concreto (NADER, 2003 p. 237).

 Na Filosofia de Heidegger, no livro Ser e tempo, o discurso histórico é variável entre o passadismo e o futurismo, entretanto, segundo o autor, passado e futuro são elaborações da vivência momentânea dos indivíduos. Segundo Heidegger, deve-se buscar o fio condutor que liga o passado ao presente; entretanto, a destruição filosófica não é propriamente do passado, mas do próprio presente, o modo de ver e fabricar esse passado hoje.

A destruição do passado não é uma atitude negativa, mas positiva ou construtiva para o ser. Trata-se de desenvolver o estudo dos apegos e desapegos que definem a personalidade do ser. A interpretação da pre-sença implica sempre o uso de uma linguagem e raciocínio pessoal ligando o “eu com o tu”. No cotidiano, forma-se uma pre-sença mediana, um tipo normal, legal, social. Daí se espera que surjam pessoas medianas, pre-senças representativas do todo social. Consequentemente existirão sempre muitas possibilidades de ser na sociedade, mas num primeiro momento, é bem verdade, vazias de experiências, de histórias de vida e de sentimentos privados [neste caso, não existe o ser da pessoa, mas apenas do tipo social, do esquema, da pessoa artificial e jurídica].

Tentando levar o ente para o mundo, a analítica existencialista tem seus procedimentos próprios: é preciso desenvolver a responsabilidade do indivíduo; ele deve estar aberto para o mundo; ter disposição para se lançar à surpresa do outro desconhecido; ter bom humor; deixar e fazer vir ao encontro o outro diferente ou igual. Através do falatório, sugere Heidegger (podemos libertar o nosso ser e aumentar e melhorar a presença do ser no mundo. O que se pretende aqui é uma presença consciente no espaço público, sempre aberta à crítica do outro. Pelo falatório, despertamos a curiosidade que faz a impessoalidade cair por terra.

O ordenamento jurídico se apresenta como aparelho artificial, que se impõe aos homens e que não encontra fundamentação na Filosofia existencialista. Podemos cogitar, todavia um sistema normativo que embora não realize o projeto existencial, dele se aproxime. E isto deverá ser alcançado na medida em que se confira maior autonomia à vontade.

A liberdade de se firmar contratos torna possível a adequação de interesses às condições objetivas. As partes se sujeitam a regras eleitas livremente. Ao despertar a atenção sobre o singular que existe em cada ser humano, e na impropriedade de uma regra universal que alcance indistintamente as pessoas, a Filosofia da existência propõe ao  legislador indiretamente a organização de um sistema jurídico que permita o livre curso da vontade e que autorize os tribunais a adaptação das regras às peculiaridades do caso concreto (NADER, 2005, p. 236).

 No existencialismo de Heidegger, o essencial do ser não é algo estático, final, mas dinâmico, ou seja, implica o “estar no mundo”. Para  esse filósofo, a coexistência é um processo interativo onde o eu existe e se identifica com o outro. Nessa linha de pensamento, busca-se o sentido do ser e isso demanda uma visão compreensiva dos fatos e fenômenos e não uma linguagem matemática, exata, explicativa.

A pesquisa existencialista começa com a técnica do questionamento; o ser deve ser interrogado através da entrevista, questionário, formulário ou conversação. Elaborar a questão do ser implica tornar transparente o ente. Nesse questionamento ou mesmo questionário, busca-se a pre-sença do ser, ou seja, uma visão primeira do ser no mundo, visto que a presença humana é muito mais complexa e ampla do que se percebe no cotidiano.

O questionamento provoca repercussão sobre o ser do interrogado e do interrogador. Nesse processo, ambos acabam sendo sujeitos da pesquisa e não haverá totalmente um objeto passivo. Mais além, o questionamento não pode ser positivista, preso a conceitos que estejam acima do ente. Na verdade, a busca do existencialismo de Heidegger é exatamente observar os conceitos científicos e tecnicistas num permanente risco de crise. Melhor dizendo, o existencialismo desenvolve a intuição para entrar na essência do ser, na ontologia, sabendo que os conceitos são representações, aparências, mas não a essência dos entes ou pessoas humanas. Não se trata aqui de definir a ontologia como algo a priori, mas aproveita-se o esquema de pensamento a posteriori, na experiência, no jogo, pois “o ser está sempre sendo jogado”, afirma Heidegger. 

No olhar do cotidiano, o ser ontológico tem a sua pre-sença, ou seja, a sua existência banal e trivial. Ele se comporta de alguma maneira. A pesquisa existencialista deve buscar então o conjunto das existências no mundo, a existencialidade do ser. Não se pode negar que a pre-sença já faz a sua própria interpretação no mundo. Ou seja, é uma informação de primeira-mão.

A análise da espacialidade da pre-sença constitui o primeiro desafio no questionamento da questão do ser, pois começamos pela cotidianidade. A pre-sença existe dentro de estruturas ordinárias que conferem significados à vida de cada um. Além disso, precisamos considerar a temporalidade que dá sentido da pre-sença. O tempo é o ponto de partida, segundo Heidegger (op. cit.), mas mesmo havendo futuro e passado em discussão, o tempo será uma re-elaboração do presente do ser.

Através do tempo, o ser amplia ou reduz as suas potencialidades, as suas habilidades, os seus poderes. Curiosamente, existem casos em que a historicidade faz inclusive o sujeito desaparecer, ganhando destaque mais a tradição e o passado. Em outros casos, as utopias levam as pessoas para o futuro, escondendo a pre-sença do ente numa linguagem futurista. A falta de história fatual não quer dizer falta de história. Não é uma prova contra a historicidade da pre-sença, porém, uma forma deficiente dessa constituição ontológica.

Uma época só pode ser destituída de fatos históricos justamente por ser histórica explica o autor. A tradição dificulta o exame das fontes; desarraiga o indivíduo de sua biografia pessoal, dificulta o retorno mais detalhado sobre o passado. Portanto, na busca da transparência do ser, devemos abalar a rigidez e o endurecimento de uma tradição petrificada e remover os entulhos acumulados do passado e do futuro que ofuscam a individualidade e a presença do ser, segundo palavras textuais do autor.

Uma pessoa é, sobretudo, uma unidade de vivência diretamente vivenciada com as vivências – não uma coisa somente pensada além do além, afirma Heidegger (op. cit.). A pessoa não é uma coisa, uma substância, um objeto. Mas então o que é o homem? Segundo Heidegger, é um ser complexo. É sujeito, primeiramente. Em segundo lugar, tem pre-sença; em terceiro lugar: coexiste com outros, porém, o ser dele depende diretamente da vivência com outros seres humanos.

O mundo é uma faticidade para o ser, instituindo regras, papéis, instrumentos e funções sociais que não dependem de mim ou da minha pessoa. Por isso mesmo, o sistema social tem uma tendência clara ao anonimato e à impessoalidade porque todos os seres humanos são iguais e não se pode prever se será João, Pedro ou Manuel que assumirão estas ou aquelas ocupações sociais. Isso será impossível de se prever no futuro e no presente.

A tendência ao anonimato se expressa na fala cotidiana onde “a gente pensa”, “nós somos iguais”, ou “todo mundo concordou”. A constituição fundamental (que não é escrita) da pre-sença é o “ser-no-mundo”. Uma forma de constituição é o conhecimento social, a socialização nas escolas, e em outros círculos, criando o sentimento de pertença social, entrando em contato com o mundo. Assim adquire-se uma interpretação preliminar do mundo cotidiano ou circunvisão.

Devemos, no entanto, retratar criticamente as estruturas de entrada neste mundo, buscar os seus significados, seus valores; portanto, conhecer uma parte da essência do ser. Existirão também submundanidades dentro de uma mesma mundanidade. Nesse caso, o cotidiano é que o temos de mais imediato, mais real, mais ordinário de nossa mundanidade; porém, é verdade, existem fatos que nunca poderemos conhecer, pois acontecem em outros países. Especialmente a mundanidade imediata cria em nós a rotina, a repetibilidade, o ordinário. Ficamos condicionados, ou acostumados a realizar certos padrões e esquemas e assim nos fechamos para o novo, o desconhecido, o diferente nas relações sociais.

O cotidiano nos leva ao hábito; o senso comum nos limita ao que é prático, ao que funciona. Criamos máximas, fórmulas, receitas que facilitam rapidamente nossa pre-sença no mundo. O modo de lidar com as ferramentas e equipamentos e saberes sociais vai sendo limitado ao longo do tempo. Aprendemos a usar o sapato, o martelo e agulha, pois dispomos de manuais para esta finalidade. De posse dos manuais da vida, o ente passa a ter poder e conhecimento.

A surpresa no cotidiano com o aparecimento de algum fato novo ou estranho pode se manifestar através do discurso da “inoportunidade” e “impertinência” do caso concreto.  No processo de massificação do comportamento, os manuais sociais subestimam as surpresas e tratam com frieza e calculismo o comportamento diferente do outro. De qualquer modo, a crise causada pela surpresa declara o seguinte: o mundo não é o manual! Portanto, precisamos estar psicologicamente abertos para o mundo, pois os manuais não existem para serem fechaduras do mundo. Exemplo apontado por Heidegger é o sinal de trânsito que é um sinal de referência para motoristas e pedestres. O fato de o sinal estar verde não obriga o motorista a ignorar o movimento do pedestre em qualquer ponto da avenida no seu raio de visão. O sinal é apenas uma referência, uma serventia, e não uma ditadura, explica o autor.

Realmente, o mundo está repleto de sinais e traduzimos seus significados de modo impessoal. Consideramos os sinais como fechaduras existenciais, mas também eles podem e devem ser interpretadas como peças de abertura para o mundo circundante. Além da funcionalidade, os sinais geralmente passam a bitolar ou alienar a nossa consciência humana; todavia, o que não se pode esquecer é que eles funcionam no cotidiano justamente porque, de alguma forma, tocam em nossa subjetividade e precisam ter valor para cada um de nós.

 Nessa mesma linha de pensamento existencialista, Hannah Arendt (no livro “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”, in: BOENO e MONTARROYOS, 2009) descreve a experiência nazista e a trajetória de um funcionário público de nome Eichmann, um burocrata mediano, que sempre buscou progredir na carreira, trabalhando com responsabilidade máxima, obedecendo incondicionalmente às ordens superiores.

No Tribunal de Jerusalém, o alemão Eichmann não conseguia imaginar a sua pessoa fora da máquina administrativa. Ao longo dos anos, ele ajudou a elite nazista a separar legalmente os judeus da sociedade, controlando o serviço de migração e os trens que levavam os judeus para as fronteiras com outros países; chegou inclusive a gerenciar o transporte e a logística de alemães defeituosos, ciganos e judeus que foram levados para os campos de concentração.

No sistema de governo nazista, através da Lei de Nuremberg, os judeus não eram mais cidadãos e perdiam Direitos de fazer cultos públicos, de transitar livremente em certas áreas, inclusive toda sua riqueza privada foi confiscada para o bem do povo alemão. Desse modo, o judeu foi transformado em lixo humano ou social o que dificultava ainda mais a recepção hospitaleira nos países vizinhos dessa multidão de pessoas.

Eichmann participou de todos esses episódios, mas se defendia perante o Tribunal de Jerusalém afirmando que ele não fazia parte da cúpula do governo. Naquele momento, muito tempo depois da guerra, considerava-se apenas um funcionário mediano porque executava ordens administrativas que vinham dos chefes superiores.

Terminada a segunda guerra mundial, o burocrata alemão fugiu e se escondeu na Argentina. Descobrindo seu paradeiro secreto, a política de Israel o sequestrou sem pedir autorização da Argentina e assim deu-se início no ano de 1962 o Tribunal de Jerusalém onde Hannah Arendt se fazia presente como jornalista a serviço de um jornal americano.

Durante o relato dos fatos, ficou claro para a autora que Israel não deveria julgar sozinho o alemão, pois o crime de que se pretendia julgar não era contra o povo judeu, mas contra a humanidade. O problema visualizado por Hannah Arendt naquele momento histórico é que depois de tantos anos, ainda não exista uma corte internacional previamente oficializada para julgar os crimes contra a humanidade, o que aconteceu apenas a partir de 1998, com a declaração do Estatuto de Roma.

Naquele momento histórico, o Tribunal de Jerusalém não possuía condições técnicas nem filosóficas para promover justiça humana, e simplesmente deste modo somente poderia realizar alguma forma de justiça estatal. Deveriam estar presentes outros países no episódio e serem propiciados meios jurídicos de ampla defesa do acusado para que ficasse então transparente a verdade dos fatos, entretanto, isto não aconteceu no Tribunal de Jerusalém.

O acusado se defendia através de seu advogado dizendo que cumpria ordens nacionais e que, portanto, décadas depois, no ano de 1962, em território de outro Estado estrangeiro, e fora do contexto da segunda guerra, todas as acusações que lhe eram imputadas não tinham legitimidade nem legalidade. Por outro lado, a acusação dizia que o burocrata tinha causado a morte de milhões de seres humanos judeus. Ele se defendia repetidamente explicando que transportava os judeus para os campos de concentração, mas a solução final planejada por Hitler contra esse povo não foi culpa sua, nem planejamento seu.

Pelo que sugere a observadora Hannah Arendt (no pós-escrito do livro), o que estava em conflito naquele momento do tribunal de Jerusalém era a validade do Positivismo e a emergência ainda tímida do Existencialismo no campo do Direito Internacional e dos Direitos humanos. Na fala do alemão acusado de crime de genocídio e de guerra contra o povo judeu, sua conduta era justificada pela teoria clássica da obediência e dos atos impessoais do Direito administrativo. Por outro lado, na fala acusatória dos judeus do Tribunal de Jerusalém, surgia pouco a pouco, timidamente, o Existencialismo Jurídico questionando a intolerância e a violência do povo alemão contra os outros diferentes.

Diante desse quadro crítico, a autora começa a ter uma visão paralela ou intuitiva sobre os fatos do tribunal, avaliando gradativamente que quem estava sendo julgado não era a pessoa do burocrata Eichmann, nem o povo alemão que legitimou o nazismo na época, nem o positivismo jurídico, mas a própria Humanidade. Tudo o que aconteceu não foi desumano, mas simplesmente humano. Em sua crítica existencialista Hannah Arendt não viu provas materiais no julgamento, apenas argumentos e contra-argumentos o que a levou a introduzir um novo elemento conceitual no Direito internacional durante as suas observações jornalísticas. Para a autora, existia claramente na experiência do burocrata alemão um novo crime internacional onde a vítima era culpada, e o culpado era vítima.

Para entender a manifestação histórica desse paradoxo penal, Hannah Arendt (pós-escrito da obra) utiliza um conceito que explica não a causa dos fatos, mas as condições em que o crime contra a humanidade ocorreu. Esse conceito é a “massificação administrativa” (cf. BOENO e MONTARROYOS, 2009). Essencialmente neste conceito constata-se a progressiva dependência do funcionário às ordens superiores, que é transformado em objeto do poder, cumprindo com eficiência e zelo suas atividades dentro da Lei. Nesse contexto, a impessoalidade administrativa é a regra fundamental.

Na época do nazismo, não havia preocupação com o outro diferente, apenas preocupação com os iguais. Também não havia sentimento em jogo, mas sim objetividade, usando o manual administrativo nazista, portanto, Eichmann não fazia mal algum para os judeus, tanto é que nunca foi acusado pelo Tribunal de ter matado por conta próprio algum judeu a seu bel-prazer em situações banais, aqui e ali, do cotidiano. Ele apenas cumpria ordens e gerenciava a máquina burocrática da morte criada pelo governo da época, no melhor estilo fordista-taylorista, desse modo, o burocrata Eichmann desejava apenas projetar-se como funcionário responsável e eficiente no controle dessa máquina mortífera: o Estado alemão. Diante dessa constatação, ficava bastante claro para Hannah Arendt que o burocrata Eichmann não havia cometido crime algum contra o seu Estado-nação. Metodologicamente, entretanto, a massificação administrativa usou várias técnicas de dominação e de sedução do poder, ao ponto  final que a maioria esmagadora dos alemães obedecia ao poder de Hitler sem qualquer resistência, incluindo Eichmann.

Na época, uma forma de dominar a consciência do funcionário público foi distribuir prêmios, privilégios, honrarias, medalhas, condecorações, bons salários, projeção social, poder maior, entre outros incentivos, o que fez com que milhares de servidores públicos se prendessem ao lado aristocrático e sedutor do poder. Ao mesmo tempo, a máquina nazista criou uma indústria de guerra e de matança dos judeus e de outras minorias, o que era realizado de maneira tecnicamente racional, onde da mesma forma a cúpula do governo contratava milhares de funcionários, tendo em vista a manutenção de uma complexa divisão do trabalho, cujo fim trágico deveria ser praticado de maneira moderna e não artesanal [recentemente, na invasão do Iraque, soldados americanos foram punidos por torturarem artesanalmente os inimigos, o que é uma atitude que atenta contra a inteligência artificial e a eficiência da máquina mortífera de guerra]. Na divisão do trabalho nazista, havia departamentos burocráticos para transportar, prover alimentos, escalar médicos e soldados, contratar mecânicos, engenheiros, cavadores de covas coletivas para os cadáveres, atiradores, serventes, enfermeiras, fiscais, policiais, informantes, entre outras funções reconhecidas como tecnicamente necessárias no processo de produção do genocídio.

Conceitualmente, na massificação administrativa o valor fundamental é a exclusão dos diferentes, anunciando que o outro pode ser perigoso para a soberania nacional. A vida humana é algo descartável, e neste sentido até mesmo alemães defeituosos foram na época executados pelo governo nazista. As práticas de exclusão precisavam ser modernas e burocratizadas naquele momento histórico. Não era uma prática pessoal de alguém contra alguém, mas sim uma prática pública impessoal de limpeza técnica, étnica e estética da sociedade alemã; dentro desse contexto filosófico, a maioria do povo não ficava atormentado nem se responsabilizava por nada, pois todos os atos administrativos eram efetivados pela máquina e por pessoas jurídicas ou artificiais, e nunca por pessoas  humanas. Quem executava todas as atrocidades consideradas politicamente necessárias era o Estado, essa pessoa artificial ou jurídica, e nunca o “eu” de ninguém.

Uma vez transformados juridicamente os judeus em “lixo social”, os funcionários públicos não cometiam crime algum, pelo contrário, faziam um trabalho louvável removendo resíduos poluentes e nocivos à saúde pública do nazismo. Daí ser pertinente pela autora Hannah Arendt ser aplicado o termo “banalização do mal”. 

Na opinião da autora, esse tipo de crime paradoxal do burocrata Eichmann seria cada vez mais comum na Modernidade, não só envolvendo o Estado, mas também o mercado e as sociedades burocráticas alucinadas pela Modernidade. Considera a autora que a cultura capitalista continuaria levando as pessoas a serem coisas descartáveis. No ideal de ser moderno, sempre serão excluídos aqueles que atrapalham a modernidade [por exemplo, desejamos uma praça moderna, mas se há vendedores ambulantes fora da lei no local o destino desses trabalhadores pouco interessa para o cidadão modernista, pois é um problema que o Estado, o mercado e sociedade devem resolver; e não “eu” propriamente tenho que me preocupar com esta situação ilegal, embora haja aqui um problema social envolvendo famílias, homens, crianças, mulheres, pessoas humanas]. Concretamente, sugere a autora, Eichmann podia ter declarado no tribunal que desenvolveu minimamente alguma resistência durante o nazismo. Imaginamos, oportunamente, que ele poderia ter atrasado o genocídio no momento exato de ida e vinda dos trens que transportavam os judeus; podia ter sugerido aproveitar a mão-de-obra dos judeus em trabalhos forçados no lugar de condená-las à morte; podia ter pedido demissão do cargo; podia não ir atrás da progressão funcional, ficando mais longe da cúpula; podia se mostrar um funcionário relaxado e incompetente para cargos mais superiores. Entretanto, em pleno Tribunal, Eichmann continuava reafirmando com vigor que não sabia do destino trágico dos trens. Cumpria ordens, repetia a fala do réu. No tribunal, ele não demonstrava arrependimento algum por ter obedecido às leis, e reconheceu inclusive que trabalhava para o bem do povo alemão.

Pouco a pouco, no tribunal o prazer legalista do acusado confirmava a sua enorme culpabilidade diante do massacre do povo judeu e da Humanidade; mas ao mesmo tempo, conforme sugerem as reflexões de Hannah Arendt, o fenômeno da massificação tirava a culpabilidade do acusado porque ele foi vítima de um sentimento de alienação fabricado pela máquina pública ao ponto extremo da alienação de não se preocupar com as consequências das atividades burocráticas que afetavam o outro diferente, entre eles o povo judeu. O burocrata apenas se preocupava em fazer o bem para o seu povo, e nessa direção, a sua consciência  ficou fechada nos manuais do governo.

Diante desse novo crime paradoxal, Hannah Arendt sugere algumas alternativas. Por exemplo: 1-manter a liberdade de opinião e de organização política dos funcionários públicos; 2-estabelecer um tribunal internacional para julgar crimes contra a humanidade e não contra um povo, especificamente; 3-criar mecanismos de fiscalização não estatal na política; 4-produzir legislação que aumente a comunicação entre as culturas dentro e fora do país; 5-condenar Estados e não apenas pessoas ou funcionários públicos nos crimes contra a humanidade.

De outro modo, considera o pensamento de Roberto Lyra Filho (2005) que as normas estatais apesar de definirem tecnicamente o que é o Direito reforçam a ilusão de que o Estado é amigo do povo, representando um suposto pacto social que lhe atribuiu a prerrogativa e o monopólio da força para produzir leis e garantir coercitivamente a ordem pública, conforme sugere a ideologia do contratualismo moderno. Uma leitura dialética da história do Direito mostra, no entanto, que o pressuposto de amizade e da cumplicidade do Estado com a sociedade civil é uma farsa ideológica.

A representação positivista da história tenta ocultar as lutas de interesses na sociedade civil ao longo do tempo, envolvendo capital e trabalho; pobres e ricos. Na abordagem histórica que segue o positivismo, não existem pessoas humanas, reais, de carne e osso, apenas instituições, regras e conceitos jurídicos em franca evolução no tempo. O Estado aparece como protagonista do processo civilizatório, como bem sugere o idealista Hegel, e nunca, oficialmente, a sociedade civil. Nessa direção, fica patente que a ideologia jurídica esconde a unilateralidade do poder e distorce o real significado do Direito no espaço público não estatal.

Na prática, Lyra Filho recomenda que não se jogue fora a tradição intelectual do ordenamento jurídico vigente, mas que se faça o “uso alternativo do Direito”, desenvolvendo uma contra-ideologia que venha de dentro do sistema constitucional, radicalizando os pressupostos oficializados pelo jus naturalismo e jus positivismo a fim de levar à exaustão filosófica esses dois discursos pretensamente libertadores e racionalistas.

O autor admite que a linguagem constitucional contemporânea se baseia historicamente nessas duas ideologias, por isso mesmo, o debate revolucionário para ser inteligível e transformador do ponto de vista democrático deve promover inicialmente uma comunicação social subvertendo os signos tradicionais do poder existentes. A trajetória crítica começa no “céu” indo na direção da “terra”, como sugeriram Marx e Engels na Ideologia Alemã.

Na história da sociedade civil não-estatal, o Direito positivo tem sido usado frequentemente como instrumento político de dominação e manipula sua burocracia para censurar, reprimir e excluir a voz das minorias, dos trabalhadores, sindicatos, associações e da oposição política em geral. O Direito positivo esvazia o sentido histórico das instituições públicas, supervalorizando as regras do Estado em detrimento das vivências humanas, da Ética, da religiosidade, os princípios ecológicos e da emancipação da sociedade civil.

O discurso competente do Estado e dos especialistas em Direito é material político relevante no debate ideológico. Há uma falsa consciência ou alienação que ocupa os espaços da Política, da Cultura, da História e do Direito. Especialmente no caso do Direito, legalizou-se a crença de que todos os homens são iguais; que todos terão garantidos seus direitos à moradia, justiça, saúde e ao lazer; que receberão um salário mínimo digno, dentre outros benefícios individuais e sociais, conforme anunciam, por exemplo, os artigos sexto e quinto da Constituição brasileira de 1988.

A realidade dos fatos mostra infelizmente uma distância abismal em relação à idealidade jurídica sonhada pela Constituição. Nesse aspecto a crise do Direito na sociedade civil é também a crise de autoridade de duas ideologias jurídicas historicamente consolidadas que são o jus naturalismo e o jus positivismo. O que se deve perguntar neste contexto histórico, conforme sugere o autor Lyra Filho, é por que o Estado tem o monopólio da força, da violência, da Política e do Direito? Quem lhe deu autoridade para corromper o pacto social e violar os Direitos humanos? Onde está o seu poder originário na perspectiva histórica a fim de se avaliar o desempenho contratual da burocracia do Estado no interior da sociedade civil?

Na tradição do jus naturalismo,encontra-se a possibilidade do “direito de resistência” contra os abusos dos governos, assim considerado por Locke no “Segundo tratado do governo civil”, porém, esse direito é historicamente reprimido por Lei e censurado ideologicamente pelo jus positivismo. Eis aqui o primeiro o curto-circuito ideológico dentro sistema jurídico apontado pelo autor.

Diante dos abusos do poder público, o desafio contra-ideológico do neomarxismo é exatamente promover a dialética entre o “direito de resistência” e o “direito de obediência”, porém, essa tarefa não será apenas um novo tipo de exercício intelectual. Vale a pena relembrar Marx e Engels neste ponto, na obra “Ideologia alemã”, que os filósofos já pensaram muito, mas o momento exige alguma forma de ação concreta e transformação crítica da realidade.

Com o objetivo de transformar o contexto jurídico, as pesquisas sociais devem mostrar que existe uma sociedade em movimento numa constante contradição entre o ideal jurídico e o real social. Essa visão sociológica do direito implica a aproximação da  Filosofia com a História, entretanto, excluindo a Sociologia positivista durkheimiana marcante nos manuais acadêmicos, onde o direito é definido como “fato social”, representando conceitualmente toda a maneira de pensar, agir e sentir exterior ao indivíduo e que tem poder de coerção sobre a sua liberdade e escolha individual.

A Sociologia do Direito deve subsidiar o argumento do direito libertador e mostrar que existem movimentos sociais que reelaboram, reinterpretam, refazem as ideologias do jus naturalismo e do jus positivismo a partir de suas concretudes [configurando na prática do cotidiano uma “teoria impura do Direito!”].

Trabalhadores, camponeses, pescadores, indígenas, mulheres, jovens entre outros setores precisam descobrir que o ideal da dignidade da pessoa humana já está posto discursivamente pelo sistema jurídico e judiciário, mas paradoxalmente não se faz presente na vida concreta da maioria dos cidadãos. Essa falta de organicidade [como bem sugere o marxista Gramsci] é o ponto nevrálgico para a Sociologia do Direito definir uma nova agenda de realização dos Direitos sociais e individuais.

Nesse contexto, a Sociologia do Direito deve localizar os agentes sociais no tempo histórico e no espaço constitucional. Por isso mesmo, trata-se de um processo de socialização das ideias jurídicas através de uma pesquisa emancipatória e engajada, onde o ideal do Direito fica diante do real e se busca meios para transformá-los criticamente. Deve então surgir uma nova metodologia sociojurídica, não mais burguesa, elitista, burocrática, idealista, ou racionalista, mas agora policêntrica, social, civil, engajada e desalienante.

As ideologias jurídicas proporcionam aspectos interessantes nesse processo crítico porque traduzem elementos de realidade de forma distorcida, apresentando imagens que não são inventadas mas apenas distorcidas. Desse modo, o Direito “alongado ou achatado como reflexo numa superfície côncava ou convexa, ainda apresenta certas características reconhecíveis”.Resta desentortar o espelho, torná-lo tanto quanto possível, plano e abrangedor, dentro das condições atuais de reexame global” (LYRA FILHO, op. cit., p. 23).

O “uso alternativo” do Direito significa para o autor que as normas devem constituir um meio facilitador para promover a dialética entre o ideal e o real. Entretanto, o militante [na verdade, o “cooperador” social do Direito, e não mais o “operador de máquinas jurídicas”!] deverá desenvolver um modelo critico de sociedade, reconhecendo que existe espoliação, desumanidade e injustiça no sistema econômico e jurídico vigentes.

O diferencial desta metodologia emancipatória aplicada na sociedade civil apresenta algumas características inovadoras na tradição marxista. Busca-se um tipo de socialismo não estatal, ou seja, a exemplo do que já sugeriu a Filosofia de Gramsci e outros marxistas culturais, a meta é criar uma nova cultura juspolítica onde o cidadão possa pelo menos reconhecer que possui direitos e que é capaz de vivenciar e criticar a disparidade existente entre o ideal da Constituição e o real da sociedade civil.

Como técnica de combate, o neomarxismo propõe um verdadeiro deboche ou ironia dialética sobre o jus naturalismo e o jus positivismo, confrontando essas duas ideologias no sentido de radicalizar a ética dos Direitos naturais e a legalidade em favor dos grupos oprimidos e marginalizados que estão na periferia da ordem legal-constitucional.

O desafio é subverter o uso das ideologias dominantes do pensamento burguês e autoritário, radicalizando e perseguindo as promessas tradicionais em termos de justiça, igualdade, liberdade, Direitos constitucionais, Direito de resistência, cidadania, humanidade, independentemente da classe social. Lyra Filho chama isso de “socialismo democrático” que, segundo ele, deve ser uma solução ao “problema do capitalismo espoliativo e ao socialismo gorado”.

A contradição começa na infra-estrutura econômica, pois é nesta região que emergem as demandas reais de pessoas vivas e concretas, conforme declaram Marx e Engels na obra “Ideologia alemã”. Entretanto, o direito, segundo Lyra Filho, não está em lugar nenhum, “está sempre sendo e vindo a ser”.

Com essa filosofia constitucional, a ameaça política é exatamente reduzir o poder dos aparelhos ideológicos e repressivos do Estado, ao mesmo tempo, aumentar o poder e a consciência constitucional das microorganizações e do cidadão na sociedade civil [que juntos podem religar criticamente os fios elétricos do jus naturalismo com os fios do jus positivismo, cujo resultado deve aumentar o risco ainda de acontecer um grande curto-circuito ideológico no sistema constitucional vigente como um todo]. É a sociedade civil organizada através dos movimentos sociais reivindicatórios e emancipatórios, quem irá religar o ideal da justiça com a realidade social; atitude esta bastante ameaçadora para a estabilidade fria e calculista da ordem jurídica e judiciária vigente.

No processo de militância, não existe necessariamente uma Constituição, mas uma “reconstituição permanente”, segundo terminologia do próprio autor, através da qual surgirá um processo comunicativo, pedagógico e discursivo perturbador fazendo com que o Direito seja transformado em instrumento de comunicação social e não mais de dominação de uma classe sobre outra. Como resultado esperado, configura-se uma profunda subversão ideológica no sistema constitucional hegemônico.

Os valores sociais e políticos variam entre o grau máximo e zero de formalidade jurídica, e o grau máximo e zero de informalidade ética, sendo o ponto ideal o equilíbrio constitucional de natureza prático-transcendental, neste caso demandando uma constante reconstituição da constituição federal confrontando legalmente a realidade sócio-histórica com a idealidade dos princípios constitucionais.

Os cidadãos devem fazer essa ligação subversiva e marcadamente constitucional da idealidade com a realidade. Devem religar a ética com a legalidade; o direito de resistência com o direito de obediência; radicalizar essa relação; fazer uso alternativo do Direito; enfim, estimular o progresso jurídico dentro de uma revolução cultural sem derramamento de sangue, como sugere Gramsci e outros marxistas culturais [ou mais precisamente realizando uma revolução constitucional]. Marx já advertiu que não somos totalmente livres, nem totalmente determinados. Se podemos superar as determinações, elas são, portanto antes condicionamentos (determinações vencíveis e não fatais) e é assim que se entende melhor a posição de Marx ao dizer que a maneira de superar as “determinações”  é conscientizá-las (“Ideologia Alemã”, p. 20).

O máximo que se pode fazer é o “uso alternativo do Direito positivo” como propõem Barcellona e seus seguidores; isto é, explorar as contradições do Direito positivo e estatal em proveito não da classe e grupos dominantes, mas dos espoliados e oprimidos (ibid., p. 45).

Ao contrário da tradição burguesa, onde o partido se enquadrou no sistema eleitoral e governista de cada época, a proposta do “socialismo democrático” do autor é disseminar uma nova cultura constitucional, que não fique limitada ao idealismo nem ao tecnicismo do poder. À medida que a crise social desenvolve as contradições do sistema, emergem as conscientizações que apontam os seus vícios estruturais e surge um pensamento de vanguarda, que vê mais precisamente onde estão os rombos, superando a ideologia e fazendo avançar a ciência.

Um jurista atual não pode mais receber o seu rubi de bacharel repetindo com serenidade, “a cada um o que é seu”, como se fosse a serena verdade do direito (ibid., p.21). Segundo Lyra Filho, as ideologias jurídicas nos deram com seus reflexos distorcidos uma visão dos problemas que surgem, quando o homem pensa abstratamente sobre o Direito [...].

A Sociologia jurídica é a única base sólida para iniciarmos a reflexão, a nova Filosofia Jurídica, a fim de que esta última não se transforme num jogo de fantasmas ideológicos perdendo nas nuvens o que vem da terra (ibid., p. 46; 47). As  ideologias absorvidas e definidas por este ou aquele sujeito não são por ele criadas, mas recebidas. É isto que suscita a abordagem da ideologia como instituição, como algo que se cria e se manifesta na sociedade e não na cabeça deste ou daquele indivíduo (LYRA FILHO, op. cit., p. 19).

O anarquismo jurídico também se preocupa, semelhantemente, com a desordem constitucional e propõe uma saída democrática contra os excessos de legalidade e de arbitrariedade privada dos cidadãos, através da instituição de um conjunto de leis que possibilitem o exercício do máximo de liberdade e de responsabilidade pública do indivíduo na sociedade.

O anarquismo jurídico é uma releitura neocontratualista dos direitos econômicos individuais e reivindica a integração da racionalidade econômica com a liberdade e a responsabilidade civil nos limites da ordem jurídica. Nesta Filosofia política, encontramos uma nova instituição dotada de poder público não estatal: o cidadão através do individualismo democrático-constitucional.

 De acordo com a crítica do economista e filósofo James Buchanan (1975), a desordem constitucional desestimula o cidadão a buscar legalmente a intervenção da burocracia judiciária, que neste contexto é identificado apenas como problema pelos indivíduos e não como solução institucional. Tradicionalmente, anarquismo e positivismo são adversários ideológicos, porém, no momento de crise do Leviatã, Buchanan (1975) sugere a construção de um modelo contratual híbrido ou sincrético que funcionaria como alternativa pública para o cidadão escapar da desordem constitucional influenciada pela ganância dos partidos e burocratas que procuram se acomodar no poder. Buchanan (1975) propõe neste contexto o conceito da “anarquia ordenada” que pode existir concretamente na ordem pública, desde que o Leviatã seja domesticado e existam livres relações entre cidadãos igualmente livres. 

O anarquismo jurídico tenta equilibrar os interesses públicos e privados com o mínimo de intervenção do Estado, que deve ser na prática apenas uma garantia virtual, e não efetiva, da ordem pública. Este paradigma jurídico reune a doutrina da anarquia com o positivismo, culminando na institucionalização da anarquia ordenada ou positivada. O anarquismo jurídico parte do princípio que mercados e governos falham na produção da ordem e da justiça. Em consequência disso, devem ser reforçados os direitos individuais na tentativa de melhorar a qualidade de vida constitucional do cidadão.

No modelo buchaniano, a anarquia ordenada seria uma forma contemporânea de ampliação dos direitos econômicos com mais eficiência sem comprometer diretamente a autoridade constitucional do Leviatã. Segundo a análise complementar de Montarroyos (2011; 2006) a Lei de Arbitragem - lei 9.307, de 1996 - é um exemplo imediato de anarquia ordenada nos termos sugeridos por Buchanan, onde concretamente os cidadãos podem superar seus litígios através do diálogo em comum acordo no procedimento arbitral.

No modelo contratualista intermediário entre a anarquia e o Leviatã, os cidadãos reassumem na esfera microssocial o poder jurídico e judiciário, ficando diretamente responsáveis pela produção da justiça privada sem necessariamente solicitar a intervenção burocrática do Estado protetor, desde que o procedimento arbitral se desenvolva em completa normalidade (MONTARROYOS, 2006; 2009; 2011).

De maneira geral, o discurso do anarquismo jurídico postula que “tudo pode ser feito dentro de uma lei específica”. Nessa direção, é preciso desenvolver um meio-termo que seja capaz de equilibrar a permissividade ética com a repressividade da lei de tal modo que o cidadão consiga ser mais livre e responsável na garantia da ordem pública e simultaneamente de seus próprios interesses privados.

O anarquismo jurídico sintetiza a obediência civil com a eficiência e o consenso moral. Na Lei de Arbitragem brasileira, por exemplo, existem critérios, regras e princípios que são convergentes na tentativa de otimizar o equilíbrio dos interesses privado-públicos. A critério das partes, podem ser escolhidas regras de Direito ou de equidade. Os árbitros devem ser moralmente íntegros e imparciais. O procedimento observa como princípio básico a constitucionalidade, atribuindo responsabilidade pública ao juiz arbitral, que por lei é juiz de fato e de Direito. Também as partes são obrigadas a realizar o procedimento arbitral se foi estabelecido voluntariamente na cláusula compromissória do contrato original, ficando impedidas por Lei de buscar a intervenção do Poder Judiciário se todos os pré-requisitos da arbitragem estejam plenamente garantidos e acessíveis às partes litigantes no momento da demanda.

O anarquismo jurídico procura maximizar a autonomia e a responsabilidade do cidadão de forma constitucional e democrática. De acordo com Buchanan, anarquismo jurídico é uma alternativa contra o excesso de burocracia do Leviatã. Possibilita legalmente evitar a desordem constitucional dentro de um modelo que se aproxima bastante do sistema da anarquia moral, valorizando principalmente a liberdade de escolha, a privacidade, o individualismo democrático, o consenso, a racionalidade e a eficiência. Ao mesmo tempo, o anarquismo jurídico mantém a validade jurídica da Lei, a autoridade dos órgãos da comunidade e os parâmetros constitucionais especialmente aqueles concernentes aos Direitos individuais econômicos que também são Direitos humanos.

Nesse aspecto, há uma nítida convergência com a doutrina do humanismo jurídico que postula que toda pessoa humana tem Direitos em qualquer parte do mundo. Cada ser humano deve ter a possibilidade de exigir o respeito e a garantia de sua dignidade tanto no aspecto econômico, como religioso e intelectual. O núcleo transcendente dessa teoria é a “inviolabilidade da garantia dos direitos humanos”. Em geral, o humanismo jurídico postula como valor prático-transcendental a inviolabilidade da garantia dos direitos humanos. Na axiologia humanista, todos os processos e instituições devem ser humanizados, o que significa converter a realidade em favor da pessoa humana e não na direção da pessoa artificial ou abstrata. Os direitos humanos não são exclusividade das fronteiras nacionais; são assunto da comunidade universal das nações (BIELEFELDT, 2005), por isso mesmo, um dos maiores problemas para se consolidar institucionalmente os direitos humanos é o pluralismo cultural, de um lado, e o monismo jurídico ou soberania dos Estados, de outro.

 Dallari (2003) no livro “Os direitos da pessoa” afirma que é preciso reconhecer que existem obstáculos e dificuldades nesta área, mas a história da humanidade demonstra que é possível avançar no sentido de construir sociedades mais justas, onde todos sejam livres e iguais em dignidade e direitos. Entretanto, somente ocorrerão novos avanços, adverte o autor, se houver trabalho constante, demonstrando organização social e valorizando a pessoa humana. Os que gozam de posição mais favorecida, escreve o autor, devem usar seus direitos de modo justo e fraterno, demonstrando solidariedade efetiva aos que ainda esperam o dia da libertação.

O que geralmente existe, entretanto, é uma simples aparência de direito, escondendo o egoísmo e a desumanidade dos que não se envergonham de usar a força e a imoralidade para conseguir vantagens pessoais. De acordo com Dallari, todas as pessoas humanas são iguais, embora tenham particularidades e modos próprios de apreciar os acontecimentos. Por isso mesmo, a produção das regras não pode ser um trabalho unilateral; é preciso que todos da comunidade participem e sejam tratados igualmente perante a Lei. Não basta apenas delegar poder, é preciso fiscalizar, acompanhar e opinar.

Existe uma concordância discursiva de que os direitos humanos precisam ser garantidos formalmente por cada governo, sem o que jamais surgirá uma sociedade justa e fraterna. Ao mesmo tempo, fugindo do risco de legalismo, o humanismo jurídico declara que existem direitos absolutos, universais, inalienáveis e imprescritíveis que nunca precisarão ser reconhecidos legalmente pelas normas do Estado para receberem apoio e proteção universal de todos os povos e Estados estrangeiros (por exemplo, direito à vida).

O discurso dos direitos humanos varia entre a visão individualista ocidental e a visão comunitarista dos muçulmanos. Existe uma tendência histórica dos direitos humanos à racionalização segundo a análise indicada por Bielefeldt (2005), colocando em xeque a tradição religiosa, com seus hábitos e vícios, além de estabelecer a democracia como valor universal para todos os povos.

Absorvendo uma tendência iluminista os direitos humanos no chamado “Ocidente” têm sido aplicados dentro da lógica e da razão pura, ficando cada vez mais dependente da ciência e do direito materialista, tecnicista e individualista.

Na visão do neotomismo jus político (OLIVEIRA, 2001 b), diferentemente, a discussão sobre a dignidade da pessoa humana deve desenvolver uma releitura religiosa mais ampla, aproveitando as proposições clássicas de Santo Tomás de Aquino e da Bíblia na tentativa de se argumentar, favoravelmente, sobre o reconhecimento do poder de Deus na Terra através da aplicação plena dos direitos naturais teológicos no interior dos ordenamentos jurídicos contemporâneos.

Existem inúmeras propriedades institucionais específicas dos direitos humanos fundamentais, como a imprescritibilidade, a irrenunciabilidade e a inalienabilidade (OLIVEIRA, 2001, a, p. 146). Muitas vezes, no entanto, o Direito tem sido utilizado para garantir privilégio e diferenças injustas, o que faz muita gente pensar que não pode existir um Direito justo que proteja a liberdade e a dignidade de todos.

Segundo Bielefeldt (2005, p. 141), existe um meio-termo considerando que os direitos individuais e sociais estejam abertos um para o outro e que se entrelacem dialogicamente; além disso, afirma o autor, é preciso considerar que os direitos humanos constituam espaço hermenêutico de conversação onde são elaborados concreta e legitimamente novos discursos prático-transcendentais no cenário internacional.

Na filosofia hermenêutica, a objetividade do conhecimento é subjetivada e a subjetividade é inversamente objetivada; enquanto no positivismo, os fatos sociais são coisas exteriores ao indivíduo, conforme recomenda Durkheim entre outros, na fenomenologia nota-se que os fatos sociais seriam inicialmente coisas interiores, daí a importante colaboração da Psicologia. Recebem destaque neste paradigma os princípios, que são estruturas pensantes e imaginativas; são eles que vão administrar e subordinar as regras e os critérios decisórios. As pessoas neste quadro teórico estão sempre interpretando e argumentando em favor de seus interesses ou de quem estejam representando. Aqui, os indivíduos variam porque são criaturas opinativas e interpretativas.

A divergência empírica sobre o Direito nada tem, portanto, de misterioso, segundo Ronald Dworkin em seu livro “O império do Direito”. Normalmente, as pessoas podem divergir sobre o propósito de certas palavras que estão no código da mesma forma que divergem sobre as questões fatuais do acontecimento que está sendo julgado. A divergência mais problemática na visão desse autor se reporta particularmente aos fundamentos do Direito. Os profissionais divergem, por exemplo, sobre o que o Direito realmente é; sobre a questão da segregação racial ou dos acidentes de trabalho mesmo quando estão de acordo com as leis e as autoridades envolvidas.

É inquestionável que os juízes recriam ou mesmo criam novo direito todas as vezes que eles decidem um caso importante. Eles incluem repentinamente uma regra, um princípio, uma ressalva a uma disposição – por exemplo, que a segregação é inconstitucional ou que uma vítima de acidente de trabalho não pode ser indenizada pelos seus colegas de trabalho que provocaram o acidente. Juízes e advogados fazem regularmente novas formulações das leis e assim as proposições jurídicas aparecem como relatos aperfeiçoados daquilo que o Direito já é oficialmente definido. Esse relato, entretanto, faz uma percepção necessária dos acontecimentos, algumas vezes, reelabora o que a Constituição já declarou, outras vezes, inventam-se direitos novos inspirados na ética humanista e nas tendências sociais.

A verdade do Direito transparece facilmente nos arquivos onde ficam os registros de decisões judiciais. No arquivo das experiências jurídicas, escreve Dworkin, juízes e advogados divergem não sobre o Direito, mas sobre o que ele “deveria ser”. Divergem sobre questões de moralidade e de fidelidade, e não sobre o Direito em si.

No cotidiano, o público se preocupa muito mais com a conformidade dos fatos ao Direito, do que realmente sobre o direito em si mesmo. O público sabe que está em jogo a fidelidade do juiz ao Direito vigente. Entretanto, alguns juízes, como assim acredita o senso comum, chegam a submeter as leis aos seus objetivos ou opiniões políticas ou religiosas. São estes os maus juízes, usurpadores e destruidores da democracia na opinião popular. O juiz também usa o seu discernimento para preencher lacunas onde o Direito silencia; ou seja, quando está vago. Tendo em vista, por exemplo, que existiriam “vagas diretrizes sobre o caso da morte do marido, a viúva deveria ter um tempo razoável para pagar o seu aluguel”, ilustra o autor. Conclusão: os advogados podem perceber que não existe absolutamente legalidade jurídica alguma, mas simplesmente “moralidade jurídica”.

Na questão de reparação moral, por exemplo, o juiz pode se deparar diante da falta de uma norma específica, e novamente introduz um novo direito ou regra preenchendo a lacuna com prudência e preservando ao máximo a essência do Direito em questão, desenvolvendo assim uma interpretação sistêmica da Lei. Para outros analistas, entretanto, o juiz deve radicalizar o sentimento de justiça e de sua sabedoria independentemente de qualquer norma específica ou geral.

Em um extremo teórico existem, portanto analistas que definem a divergência no Direito como sendo uma questão de fato, de linguística, de semântica, ou de técnica. Os analistas mais radicais, por outro lado, dizem que as questões teóricas declaram que o Direito é “instinto”, que só pode então ser identificado através de técnicas especiais cuja descrição ideal é impressionista, quando não, misteriosa na prática. Afirmam esses analistas que julgar é uma arte, e não propriamente uma ciência, e que o bom juiz mistura analogia, ciência, sabedoria política e a consciência pessoal de seu papel para chegar a uma sentença finalmente intuitiva. Nessa linha de pensamento, o juiz “vê” o direito com mais clareza do que consegue explicá-lo, e mesmo o melhor texto jurídico não será capaz de abarcar a plenitude do seu discernimento pessoal no caso difícil em questão.

Segundo Dworkin (2004), a experiência jurídica e judiciária não é oito nem oitenta, mas está no meio desses dois extremos. Na visão do autor o positivismo é uma doutrina semântica e explica as divergências no cotidiano judiciário pela dificuldade que se tem de achar palavras certas entre os juízes e advogados para casos concretos dentro da Lei. No pragmatismo jurídico, por outro lado, os profissionais jurídicos apenas se preocupam com a efetividade e funcionalidade do Direito, por isso mesmo as divergências têm a ver com as particularidades que surgem no hábito ou cotidiano por razões puramente instrumentais. Para Dworkin, todavia, existe uma terceira possibilidade que pode superar as limitações da teoria semântica e da teoria do relativismo pragmatista. Essa alternativa crítica se fundamenta em larga medida no modelo da arte. Lembra o autor que o livro “Moby Dick” inspira filmes, debates e infinitas questões de prova, e nem por isso se vê ameaçada a integridade dessa obra literária. Neste caso, as pessoas usam critérios diferentes e modos seletivos para selecionar livremente este ou aquele trecho da obra. O que existe no exemplo da interpretação literária é uma ação combinada de forças intuitivas, positivistas e pragmatistas.

Na sociedade, igualmente surgem regras que determinam o que pode ou não ser falado, autorizado ou proibido na ação interpretativa do leitor ou do cidadão. Exemplo é a cortesia (DWORKIN, loc. cit.) Esse comportamento determina, por exemplo, que seja demonstrado respeito aos indivíduos superiores da hierarquia social. Existe aqui concordância, ou na pior das hipóteses, revolta contra os padrões da cortesia. Os que concordam, começam a usar construtivamente critérios ou depurar a cortesia incluindo formas de deferência desconhecidas ou não no dia a dia. Como cada ato do indivíduo implica uma atitude interpretativa, logo se percebe que o instituto da cortesia muda ao longo do tempo para mais ou para menos, para melhor ou pior, porque as pessoas são criaturas opinativas.

A interpretação da Lei para Dworkin é semelhante ao trabalho artístico. Todas as práticas interpretativas são formas criativas. Poemas e leis falam ou tentam falar algo para nós. Aqui, devemos atentar para as intenções e para não as causas e formalidades. Deste modo, a relação entre autor, leitor e obra implica sempre uma relação mais que conversacional, pois também é construtiva e o leitor é um intérprete crítico. A interpretação de uma obra de arte busca o propósito e não a causa de sua produção; o propósito é uma percepção ou construção do leitor intérprete sobre o objeto. Entretanto, em cada interpretação familiar, existem princípios coordenadores que nem sempre estão explicitados – cabe ao pesquisador hermeneuta fazer essa descoberta [por exemplo, princípios da caridade e do respeito podem ser partes da estrutura da cortesia].

Em síntese, Dworkin afirma que toda interpretação busca levar um objeto ao seu melhor estado possível. A interpretação assume formas diferentes em vários contextos porque empreendimentos diferentes envolvem diferentes critérios de valor ou de sucesso. A interpretação artística só difere da interpretação científica porque julgamos o sucesso das obras de arte segundo critérios diferentes daquele que utilizamos para julgar as explicações de fenômenos físicos.

Ao se tentar descobrir intenções dos autores, não no sentido psicológico, mas sim histórico e social, busca-se compreender a intenção, que é algo semelhante ao trabalho dos diretores de uma peça de teatro. Uma determinada obra é refeita pelo leitor ou diretor, não no sentido de destruir essa obra, mas a fim de ampliá-la, valorizá-la, atualizá-la, em uma palavra, adaptamos os textos. O resultado final desse tipo de teoria também denominada de “estética jurídica” resulta na convergência de três aspectos cruciais para o autor: estética, ética e técnica, portanto, tentativa de fazer o bem através da justiça, o profissional do Direito deve evitar o tecnicismo jurídico do pragmatismo e o esteticismo retórico da linguagem jurídica positivista.

Considerando o modelo da arte, Dworkin afirma que a prática jurídica e judiciária é sempre vinculada a determinada comunidade intelectual, deste modo, dentro do paradigma existe uma tendência à uniformidade de interpretações, mas fora dele, existem outros paradigmas concorrentes no cenário jurídico que divergem radicalmente entre si [a concepção de Dworkin desenvolve, talvez inconscientemente neste ponto, o conceito de “paradigma” de Thomas Kuhn, conceituado no posfácio da obra “Estruturas da revolução científica”, apesar de Dworkin enfatizar que suas ideias tentam se afastam do modelo racionalista da ciência]. No conceito original de paradigma científico, considerou Thomas Kuhn (posfácio do livro “Estruturas das revoluções científicas”:

[...] Há escolas nas ciências isto é comunidades que abordam o mesmo objeto científico a partir de pontos de vista incompatíveis [...] No interior de tais grupos, a comunicação é relativamente ampla e os julgamentos profissionais relativamente unânimes. Uma vez que a atenção de diferentes comunidades científicas está focalizada sobre assuntos distintos, a comunicação profissional entre grupos é algumas vezes árdua. Frequentemente resulta em mal-entendidos e pode se nela persistirmos, evocar desacordos significativos e previamente insuspeitados.

No direito, o ser humano encontra e defende as suas condições de subsistência  moral; sem o direito, ele regride à condição animalesca. Portanto, a defesa do direito é um dever de autoconservação moral (IHERING, 2002, p. 41). O direito não é uma simples ideia, é uma força viva; por isso mesmo a justiça sustenta numa das mãos a aliança com que pesa o direito, enquanto na outra segura a espada por meio da qual o defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada, a impotência do Direito. Uma completa a outra; e o verdadeiro Estado de Direito só pode existir quando a justiça sabe brandir a espada com a mesma habilidade com que manipule a balança (ibid., p. 27). A vida do direito é a luta dos povos, dos governos, dos indivíduos, das classes sociais. De acordo com Ihering: “o caminho percorrido pelo direito em busca de tais conquistas muitas vezes está assinalado por torrentes de sangue, sempre pelos direitos subjetivos pisoteados”.

O direito objetivo compreende os princípios jurídicos manipulados pelo Estado, ou seja, o ordenamento legal da vida. O direito no sentido subjetivo representa a atuação concreta da norma abstrata, de que resulta uma faculdade específica de determinada pessoa. Nos dois sentidos, o direito encontra resistências e em ambos se faz necessário a luta, enfatiza Ihering (2002), no livro “A luta pelo direito”. Sempre que o direito da sociedade existente esteja maculado pelo interesse privado de alguns, o direito novo terá de travar uma luta para impor-se, uma luta que muitas vezes dura séculos, e cuja intensidade se torna maior quando os interesses constituídos se tenham corporificada em forma de direitos adquiridos

O movimento histórico do direito oferece um quadro de anseios, lutas e batalhas, ou seja, de esforços penosos (ibid., p. 32). Um dos desvios da jurisprudência contemporânea, segundo observa Rudolf von Ihering (ibid., p. 86), consiste na idéia de que a lesão do direito do indivíduo põe em jogo apenas o valor pecuniário, desprezando o sentimento de justiça, que exige reparação do tipo não material (como honra, dignidade, liberdade).

Na concepção capitalista do direito, o padrão pelo qual se medem todas as coisas é exclusivamente o do materialismo rasteiro e desolador vem do interesse. O movimento histórico do direito oferece um quadro de anseios, lutas e batalhas. Ou seja, de esforços penosos. Segundo Ihering (op. cit., p. 86): “a idéia de que a formação do direito segue um processado indolor e espontâneo, independente de qualquer esforço, tal qual o crescimento de uma planta, tem feição nitidamente romântica, já que repousa sobre uma falsa idealização de situações passadas: a realidade nua e crua revela um quadro bem diferente”.

A defesa da existência é a lei suprema de toda vida, e aparece pelo instinto de autoconservação. No homem, trata-se não apenas da vida física, mas também da existência moral; e uma das condições para defesa deste instinto é a defesa do direito (IHERING, op. cit., cap. 3). Portanto, alega o autor, “a defesa do direito é um dever de autoconservação moral. O abandono total do direito é um suicídio moral”. Para o autor (ibid., cap. 4), o direito é “idealismo”, mas não é um idealismo fantasioso, pois representa o caráter do homem que vê uma finalidade em si mesmo e esquece tudo mais quando se sente ofendido no núcleo de sua personalidade.

O que determina o grau de resistência à agressão sofrida, escreve textualmente o autor, não é a pessoa do agressor; mas a intensidade do sentimento de justiça, a energia moral com que a pessoa costuma afirmar-se. Certamente, diz o autor (ibid., cap. 4), “o idealismo do autêntico sentimento de justiça abalaria seus próprios alicerces se ficasse restrito à defesa do interesse do indivíduo, sem se preocupar com o resguardo da lei e da ordem desse campo”. O fim do direito é a paz e o meio de que se serve para consegui-lo é a luta (IHERING, 2002, cap. 1).

 O dever mais sagrado do Estado consiste na defesa da idéia pela própria idéia. Nesse ponto, a idéia do direito e o interesse do Estado caminham juntos. Entretanto, adverte o autor: “nem mesmo o sentimento mais vigoroso de justiça resiste por muito tempo a um sistema jurídico defeituoso: acaba embotando, definhando, degenerando. A luta pelos Direitos é um trabalho nem puramente prático, nem puramente transcendental. É prático-transcendental” (ibid., cap. 3).

Em suas reflexões, Ihering deixa transparecer que existem três graus de envolvimento dos indivíduos com o idealismo do Direito: 1)  mínimo; 2) moderado;  e 3) máximo.

Primeiramente, a pessoa procura a Justiça porque sofreu “danos materiais”. Nesse caso, o roubo e o assalto provocam um ataque ao patrimônio privado, mas sempre será uma agressão moral contra a pessoa do proprietário. Portanto, explica o autor (ibid., cap. 3), “ao defender a sua propriedade, o homem defende a si mesmo, a sua personalidade”.

Em segundo lugar, existem aquelas pessoas que procuram o Poder Judiciário considerando que estariam sofrendo “danos morais” em grau maior que o sentimento dos “danos materiais”. Nesse caso, considera o autor (loc. cit.), “a energia da reação efetiva do sentimento de justiça diante de uma lesão de direito representa a pedra de toque do seu estado de sanidade. A meu ver, a suscetibilidade isto é a capacidade de sentir a dor diante de alguma ofensa ao direito, e a energia, isto é, a coragem e a determinação de repelir a agressão, constituem os critérios pelos quais se confere a presença do sentimento sadio de justiça”.

No grau mais transcendental de idealismo as pessoas procuram a Justiça não por estar sofrendo “danos materiais” ou “danos morais”, mas fundamentalmente por sentirem “danos ideais” [expressão nossa que não é formalmente elaborada por Rudolf von Ihering, mas acreditamos que resume e esclarece bem a sua leitura gradativa do direito]. Nesse tipo de situação, a pessoa defende o direito subjetivo de maneira altruísta, pensando muito mais no bem que faz à sociedade e à segurança das normas do que no propriamente em seu interesse privado imediato. Nessa direção, explica o autor (ibid.,  cap. 3):

O interesse pela atuação do titular e as consequências dessa atuação transcendem em muito a esfera puramente individual. O interesse geral ligado a essa atuação não é apenas o interesse ideal da manutenção da autoridade e da majestade da lei. Trata-se também de um interesse real e eminentemente prático, sentido por todos, mesmo por aqueles que não tenham a menor compreensão pelo interesse ideal a que acabamos de aludir: é o interesse pela salvaguarda e manutenção de uma ordem permanente nas relações entre os indivíduos, que toca a cada um de nós em determinado setor. A todos cabe o dever de esmagar a cabeça da hidra do arbítrio e do desrespeito à lei, sempre que esta sair da toca. Todo aquele que desfruta as bênçãos do Direito deve contribuir para manter a força e o prestígio da lei. Em poucas palavras, todo homem é um combatente pelo Direito no interesse da sociedade.

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Sobre o autor
Heraldo Elias Montarroyos

Professor da Faculdade de Direito da UNIFESSPA MARABÁ, PARÁ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTARROYOS, Heraldo Elias. Teoria pluridimensional do Direito: variantes e aplicabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3216, 21 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21567. Acesso em: 25 dez. 2024.

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