4.A ÉTICA NA LEGISLAÇÃO MILITAR:
No que tange à específica legislação militar, o Estatuto dos Militares (Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980), no seu capítulo referente às obrigações e aos deveres militares (artigos 28 a 41), elenca uma série de regras de conduta que norteiam à atuação do militar, com vistas na hierarquia e na disciplina inerentes e essenciais à organização da instituição.
É assim que, por exemplo, o patriotismo é considerado uma manifestação essencial do valor militar (art. 27, I); o cumprimento às leis, regulamentos, instruções e ordens das autoridades competentes é tido como uma imposição de “ética” militar (art. 28, IV); assim como o respeito à hierarquia e à disciplina é um dever de natureza estritamente militar (art. 31, IV).
Mais à frente, o Estatuto preceitua que a transgressão a essas obrigações e deveres constituirá crime, contravenção ou transgressão disciplinar, de acordo com a gravidade da violação, na forma da legislação ou regulamentação específicas:
Art. 42. A violação das obrigações ou dos deveres militares constituirá crime, contravenção ou transgressão disciplinar, conforme dispuser a legislação ou regulamentação especificas.
§ 1º A violação dos preceitos da ética militar será tão mais grave quanto mais elevado for o grau hierárquico de quem a cometer.
A legislação específica a que se refere o referido Estatuto é o Código Penal Militar, onde estão prescritos os crimes e as penas decorrentes da infração àquelas regras e deveres militares; enquanto os regulamentos disciplinares de cada Força Armada especificam as contravenções e as transgressões disciplinares, com as suas respectivas penalidades:
Art. 46. O Código Penal Militar relaciona e classifica os crimes militares, em tempo de paz e em tempo de guerra, e dispõe sobre a aplicação das penas correspondentes aos crimes por eles cometidos.
Art. 47. Os regulamentos disciplinares das Forças Armadas especificarão as contravenções ou transgressões disciplinares e estabelecerão as normas relativas à amplitude e aplicação das penas disciplinares, à classificação do comportamento militar e à interposição de recursos contra as penas disciplinares.
Transportando esse conjunto de regras para o aspecto que aqui nos interessa, e apesar do uso inadvertido da expressão “ética”, temos por certo que elas não representam em si normas de natureza ética.
Isso porque, partindo do pressuposto que a ética se circunscreve a um conjunto de valores concernentes ao bem e ao mal, ao justo e ao injusto, a consequente exigência de um dado padrão ético de conduta no exercício da função pública não pode se fundar em normas de coercibilidade jurídica. Tanto é assim que as punições éticas hoje vigentes têm caráter estritamente moral e declaratório (recomendações, advertências, censuras), ao passo as penalidades propriamente ditas estão reservadas aos estatutos pertinentes e à legislação repressiva penal, sendo certo que a violação dos padrões éticos nem sempre implicará automaticamente na violação da lei. Essa lógica está bem demonstrada na Exposição de Motivos do Código de Ética do Servidor Civil:
Para melhor se compreender a total separação entre o Código de Ética e a lei que institui o regime disciplinar dos servidores públicos, basta a evidência de que o servidor adere à lei por uma simples conformidade exterior, impessoal, coercitiva, imposta pelo Estado, pois a lei se impõe por si só, sem qualquer consulta prévia a cada destinatário, enquanto que, no atinente ao Código de Ética, a obrigatoriedade moral inclui a liberdade de escolha e de ação do próprio sujeito, até para discordar das normas que porventura entenda injustas e lutar por sua adequação aos princípios da Justiça. Sua finalidade maior é produzir na pessoa do servidor público a consciência de sua adesão às normas preexistentes através de um espírito crítico, o que certamente facilitará a prática do cumprimento dos deveres legais por parte de cada um e, em conseqüência, o resgate do respeito aos serviços públicos e à dignidade social de cada servidor.
Portanto, julgamos que a exigência de um dado padrão ético de conduta previne e precede às faltas de natureza penal ou disciplinar, servindo de suporte para a correta aplicação dos estatutos jurídicos dos agentes públicos, sejam eles servidores civis ou militares.
À contrário sensu, vimos que a violação das regras constantes do Estatuto dos Militares implicam em crime, contravenção ou transgressão disciplinar, de acordo com a gravidade da violação (art. 42). Note-se que a mera transgressão disciplinar poderá dar ensejo à prisão, tal como autorizado pelo art. 5º, inciso LXI, da CF/88. Ora, ainda que se reconheça a legalidade e a legitimidade do tratamento jurídico mais gravoso ofertado aos militares, é inconcebível aceitar que uma mera falta ética importe em uma transgressão disciplinar sujeita à prisão.
Por conseguinte, podemos concluir dizendo que o Estatuto dos Militares e os respectivos regulamentos disciplinares somente veiculam regras de caráter notoriamente penal e disciplinar, sem oferecer um tratamento jurídico adequado à questão ética.
Não se quer dizer aqui, contudo, que os militares não se sujeitam a um padrão ético de conduta, mesmo porque as normas de natureza penal e disciplinar encerram também em seu bojo, por essência, padrões de conduta ética. Não obstante, a legislação militar é omissa quanto à instituição de padrões de conduta de caráter exclusivamente ético.
5. A INDEPENDÊNCIA DAS INSTÂNCIAS:
É consabido que o ordenamento jurídico pátrio alberga normas de diversas naturezas destinadas a orientar a atuação da Administração Pública e de seus agentes. Tais comandos normativos estão presentes na Constituição Federal, nos estatutos jurídicos dos servidores públicos civis e dos militares, assim também na Lei de Improbidade Administrativa, nos citados códigos de ética e até mesmo no Código Penal, todos eles independentes entre si e com natureza jurídica distintas, mas que convergem no intento de elevar o padrão ético na Administração Pública.
Nessa senda, temos os princípios constitucionais da Administração Pública constantes do caput do art. 37, da CF/88. O princípio da legalidade impõe ao agente público o dever de atuar nos limites determinados pela lei, diferentemente do particular, para quem é lícito fazer tudo aquilo que a lei não proíbe. Já o princípio da impessoalidade tem a nítida função de separar o público do privado e afastar qualquer possibilidade de concessão de preferências não eleitas em razão do interesse público. Por seu turno, pelo princípio da moralidade não basta que o ato seja formalmente legal, na medida em que se impõe ao agente público o dever de distinguir o que é honesto ou desonesto. Pelo princípio da publicidade exige-se a transparência no trato com a coisa pública e a correspondente divulgação ampla de todos os atos da administração pública. Por fim, a eficiência administrativa estampada no art. 37 da CF tem o escopo de exigir da Administração e dos agentes públicos a constante busca pelos melhores resultados.
No plano infraconstitucional, diversas normas consubstanciam e dão aderência prática a esses princípios constitucionais.
Uma delas é o Estatuto dos Servidores Públicos Civis, que trata, dentre outros aspectos, do regime disciplinar e dos deveres e proibições do ofício cuja inobservância pode configurar uma infração disciplinar. É assim que todo servidor público tem o dever de exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo; ser leal às instituições a que servir; observar as normas legais e regulamentares; cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais; guardar sigilo sobre assunto da repartição; manter conduta compatível com a moralidade administrativa; ser assíduo e pontual ao serviço; representar contra ilegalidade, omissão ou abuso de poder; dentre outros deveres (art. 116).
Na mesma linha norteadora, o art. 117 do Estatuto enumera um rol de proibições, dentre elas: ausentar-se do serviço durante o expediente; recusar fé a documentos públicos; opor resistência injustificada ao andamento de documento e processo ou execução de serviço; promover manifestação de apreço ou desapreço no recinto da repartição; coagir ou aliciar subordinados no sentido de filiarem-se a associação profissional ou sindical, ou a partido político; manter sob sua chefia imediata, em cargo ou função de confiança, cônjuge, companheiro ou parente até o segundo grau civil; receber propina, comissão, presente ou vantagem de qualquer espécie, em razão de suas atribuições; proceder de forma desidiosa; utilizar pessoal ou recursos materiais da repartição em serviços ou atividades particulares.
O desrespeito a essas determinações pode dar ensejo à cominação das seguintes penalidades disciplinares (art. 127): advertência, suspensão, demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade, destituição de cargo em comissão e destituição de função comissionada.
Note-se que essas regras estão circunscritas unicamente ao aspecto disciplinar da relação estabelecida entre a Administração Pública e seus servidores públicos. Em nenhum momento o vergastado Estatuto adentra na seara “ética” ou sequer faz uso dessa expressão.
Outra norma que orienta a atuação da Administração Pública e seus agentes é o já citado Estatuto dos Militares, que também traz uma série de regras de natureza manifestamente disciplinar, embora inseridas na seção titulada erroneamente “Da Ética Militar”.
Seguindo para o campo da ética que aqui já foi exposto, temos o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal, o Código de Conduta da Alta Administração Federal e o Código de Conduta Ética dos Agentes Públicos em exercício na Presidência e Vice-Presidência da República.
Tais Códigos estabelecem uma série de valores de natureza deontológica que se espera sejam buscados diuturnamente pelos agentes públicos, seja na sua relação com a Administração Pública, seja na relação com os administrados.
Por fim, e também em outra instância, podemos citar ainda o Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), notadamente no que tange à prescrição dos crimes praticados por funcionários públicos contra a administração em geral, a exemplo do peculato, da concussão, da corrupção, da prevaricação, da advocacia administrativa, da violação de sigilo funcional, dentre outros diretamente relacionados à atuação dos agentes públicos perante a Administração. Isso sem falar na instância civil, onde encontramos o dever geral de reparação estabelecido no Código Civil, e ainda a Lei de Improbidade Administrativa, que elenca os atos de improbidade que importam em enriquecimento ilícito, causam prejuízo ao erário ou atentam contra os princípios da Administração Pública.
Fizemos esse breve esboço para dizer que as instâncias administrativa, cível, ética e penal não se confundem. Cuida-se da independência e autonomia das instâncias, postulado amplamente consagrado na doutrina e jurisprudência pátrias, inclusive por meio de súmula do Supremo Tribunal Federal:
Súmula nº 18
Pela falta residual, não compreendida na absolvição pelo juízo criminal, é admissível a punição administrativa do servidor público.
É com fulcro nessa independência que uma única conduta pode ser classificada e punida ao mesmo tempo como ilícito administrativo, civil, penal, e ainda contrário aos padrões éticos estabelecidos, sem que isso represente um “bis in idem”.
Destarte, à guisa de exemplo, o enriquecimento ilícito no exercício da função pública pode configurar ao mesmo tempo:
a) um crime de concussão (art. 316, do Código Penal) ou corrupção passiva (art. 317, do Código Penal), sujeito aos procedimentos regrados no Código de Processo Penal, perante o Poder Judiciário, após o oferecimento de denúncia pelo Ministério Público, e suscetível às penas estabelecidas no Código Penal, dentre as quais, inclusive, a privação de liberdade (responsabilidade criminal);
b) uma infração disciplinar (art. 117, IX, da Lei nº 8.112/90, para o civil, ou art. 28, XVII, da Lei nº 6.880/80, para o militar), sujeita a apuração administrativa na forma da legislação de cada agente público (responsabilidade administrativa);
c) um ilícito civil, caracterizado como ato de improbidade administrativa nas modalidades dos artigos 9º e 10 da Lei de Improbidade Administrativa, e ainda dar ensejo ao dever de reparar o dano (art. 927, do Código Civil);
d) uma violação ética, na forma dos Códigos Éticos aplicáveis, a exemplo do inciso XV, alínea “a”, do Código de Ética do Servidor Público Civil (“uso do cargo ou função, facilidades, amizades, tempo, posição e influências, para obter qualquer favorecimento, para si ou para outrem.”)
Como se pode observar, a hipótese acima abarca de uma só vez diferentes órbitas de responsabilidade. Nesses casos, a aplicação das sanções penais, administrativas, cíveis e éticas poderá ocorrer de forma cumulativa e independente, a bem da preservação da regularidade do serviço público e da moralidade administrativa, sem que isso represente uma dupla punição.
É verdade que, como regra geral, toda vez que um agente público comete alguma infração disciplinar ou mesmo um ilícito penal, fatalmente ele também estará violando os valores éticos exigidos, ainda que não previstos de forma expressa no respectivo regramento ético. Sob esse enfoque, todas as infrações disciplinares e os crimes contra a Administração Pública necessariamente configuram condutas que violam os valores éticos.
Contudo, o oposto não é verdadeiro. Nem sempre uma infração ética representará também um ilícito penal ou administrativo-disciplinar. Não é outro o entendimento consubstanciado na Exposição de Motivos nº 37, de 18.08.2000, que instituiu o Código de Conduta da Alta Administração Federal:
Na verdade, o Código trata de um conjunto de normas às quais se sujeitam as pessoas nomeadas pelo Presidente da República para ocupar qualquer dos cargos nele previstos, sendo certo que a transgressão dessas normas não implicará, necessariamente, violação de lei, mas, principalmente, descumprimento de um compromisso moral e dos padrões qualitativos estabelecidos para a conduta da Alta Administração.
Ademais disso, já restou assentado que a ética tem natureza peculiar e inconfundível com os regimes jurídicos e suas regras disciplinares que regem as relações entre a Administração Pública e seus agentes.
Dito isto, reputamos que, em função da independência d as instâncias administrativa, cível, ética e penal, a instituição de um regramento de conduta ética voltado aos militares não representaria um “bis in idem” em relação à legislação militar hoje vigente, que, como visto, não alberga regras de natureza ética.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Por tudo que foi exposto, julgamos que é plenamente viável juridicamente a criação de um código de conduta ética que abarque em seu bojo tanto os servidores públicos quanto os militares do Ministério da Defesa e dos Comandos das Forças Armadas, como forma de uniformizar os padrões de conduta ética entre militares e civis.
Primeiro porque, salvo os militares da reserva que ocupam cargo em comissão no Ministério da Defesa e os militares que atuam na Presidência e Vice-Presidência da República, os militares em exercício no Ministério da Defesa e os demais militares das Forças Armadas não integram o chamado “Sistema de Gestão da Ética do Poder Executivo Federal”.
Também porque foi demonstrado que o Estatuto dos Militares é omisso na instituição de uma disciplina jurídica de natureza estritamente ética, o que permite a criação desse código de conduta ética sem que se fale em dupla punição, mormente diante do princípio da independência das instâncias.
Ademais disso, vimos que um regramento de idêntica natureza já existe no âmbito da Presidência e da Presidência da República, cujo código de ética não distingue militares e civis.
Com efeito, tal qual o referido Código de Ética Presidência e da Presidência da República, reputamos que essa regulamentação deve apresentar uma definição ampla para “agente público”, de forma a não deixar dúvidas quanto ao seu alcance indistinto a todos os agentes públicos em atividade no referido órgão, inclusive os militares.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo, 19ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
MADEIRA, José Maria Pinheiro. Servidor Público, 3ª edição, Rio de Janeiro: América Jurídica, 2005.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34ª edição, São Paulo: Malheiros, 2008.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22ª edição, São Paulo: Malheiros, 2007.
OLIVEIRA, Regis Fernando de. Servidores Públicos, 2ª edição, São Paulo: Malheiros, 2008.
PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo, 22ª edição, São Paulo: Atlas, 2011.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 28ª edição, São Paulo: Malheiros, 2007.
Notas
[1] Direito Administrativo Brasileiro, 34ª edição. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 76.
[2] Manual de Direito Administrativo, 19ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 531.
[3] Curso de Direito Administrativo, 22ª edição, São Paulo: Malheiros, 2007.
[4] Op. cit.
[5] Direito Administrativo, 24ª edição, São Paulo: Atlas, 2011.
[6] Servidores Públicos, 2ª edição, São Paulo: Malheiros, 2008, p. 12
[7] Curso de Direito Constitucional Positivo. 26ª edição, São Paulo: Malheiros, 2006, p. 776.
[8] Op. Cit., p. 526.
[9] José Maria Pinheiro Madeira, Servidor Público. 3ª edição, Rio de Janeiro: América Jurídica, 2005, p. 21/22.