A questão jurídica que se destaca no vincula-se ao debate acerca da legitimidade ativa ad causam do Ministério Público para ajuizar ação civil pública com a finalidade de cessar poluição sonora causada por um determinado estabelecimento comercial.
Transcreve-se o julgado do STJ a ser analisado como paradigma no presente trabalho:
EMENTA:PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MEIO AMBIENTE. DIREITO AOSILÊNCIO. POLUIÇÃO SONORA. ART. 3°, III, ALÍNEA "E", DA LEI 6.938/1981. INTERESSE DIFUSO. LEGITIMIDADE AD CAUSAM DO MINISTÉRIO PÚBLICO.1. Hipótese de Ação Civil Pública ajuizada com o fito de cessar poluição sonora causada por estabelecimento comercial. 2. Embora tenha reconhecido a existência de poluição sonora, o Tribunal de origem asseverou que os interesses envolvidos são individuais, porquanto afetos a apenas uma parcela da população municipal.3. A poluição sonora, mesmo em área urbana, mostra-se tão nefasta aos seres humanos e ao meio ambiente como outras atividades que atingem a "sadia qualidade de vida", referida no art. 225, caput, da Constituição Federal.4. O direito ao silêncio é uma das manifestações jurídicas mais atuais da pós-modernidade e da vida em sociedade, inclusive nos grandes centros urbanos.5. O fato de as cidades, em todo o mundo, serem associadas à ubiqüidade de ruídos de toda ordem e de vivermos no país do carnaval e de inumeráveis manifestações musicais não retira de cada brasileiro o direito de descansar e dormir, duas das expressões do direito ao silêncio, que encontram justificativa não apenas ética, mas sobretudo fisiológica. 6. Nos termos da Lei 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente), também é poluição a atividade que lance, no meio ambiente, "energia em desacordo com os padrões ambientaisestabelecidos" (art. 3°, III, alínea "e", grifei), exatamente a hipótese do som e ruídos. Por isso mesmo, inafastável a aplicação do art. 14, § 1°, da mesma Lei, que confere legitimação para agir ao Ministério Público.7. Tratando-se de poluição sonora, e não de simples incômodo restrito aos lindeiros de parede, a atuação do Ministério Público não se dirige à tutela de direitos individuais de vizinhança, na acepção civilística tradicional, e, sim, à defesa do meio ambiente, da saúde e da tranqüilidade pública, bens de natureza difusa. 8. O Ministério Público possui legitimidade para propor Ação Civil Pública com o fito de prevenir ou cessar qualquer tipo de poluição, inclusive sonora, bem como buscar a reparação pelos danos dela decorrentes.9. A indeterminação dos sujeitos, considerada ao se fixar a legitimação para agir na Ação Civil Pública, não é incompatível com a existência de vítimas individualizadas ou individualizáveis, bastando que os bens jurídicos afetados sejam, no atacado, associados a valores maiores da sociedade, compartilhados por todos, e a todos igualmente garantidos, pela norma constitucional ou legal, como é o caso do meio ambiente ecologicamente equilibrado e da saúde.10. Recurso Especial provido.Decisão: Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça: "A Turma, por maioria, deu provimento ao recurso, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a ) Herman Benjamin que lavrará o acórdão. Vencido o Sr. Ministro-Relator que negava provimento ao recurso." Votaram com o Sr. Ministro Herman Benjamin os Srs. Ministros Humberto Martins, Mauro Campbell Marques e Eliana Calmon. (Acórdão REsp 1051306 / MG RECURSO ESPECIAL 2008/0087087-3 Relator(a) Ministro CASTRO MEIRA (1125) Relator(a) p/ Acórdão Ministro HERMAN BENJAMIN (1132) Órgão Julgador T2 - SEGUNDA TURMA Data da Publicação/Fonte DJe 10/09/2010 RIP vol. 63 p. 257 RT vol. 903 p. 168 Data do Julgamento 16/10/2008)
Para se chegar a uma conclusão sobre o tema, essencialé se definir no caso concreto, se se trata de violação a interesses edireitos transindividuais ou meramente individuais.
É consabido que, em se tratando de uma tutela de interesses meramente individuais, não é parte legítimao parquetpara o ajuizamento de ação civil pública. E foi justamente nessa senda que o Tribunal a quo proferiu seu julgamento.
Logo em seguida, modificando a decisão proferida em segunda instância, a 2ª Turma do STJ, no bojo do REsp 1051306/MG, de forma acertada, julgou legítimo o Ministério Público para ocupar o polo ativo da referida ação.
No acórdão em comento, entendeu-se que os ruídos sonorosocasionados pelo estabelecimento comercial se enquadram no conceito amplo de poluição (por força do art. 3°, III, alínea "e" da Lei 6.938/80), e que, portanto,restava inafastávela aplicação do art. 14, § 1°, da mesma Lei, que confere legitimação para agir ao Ministério Público.
Ademais, o Egrégio “Tribunal da Cidadania” não vislumbrou um simples incômodo restrito aos lindeiros de parede, mas entendeu que o recorrido colocou em risco bens de natureza ontologicamente difusa, como a própria defesa do meio ambiente, da saúde e da tranquilidade pública.
Os doutos ministros entenderam que, além da dificuldade de individualização das vítimas, a natureza jurídica dos bens afetado estão associados a valores maiores da sociedade, compartilhados por todos, e a todos igualmente garantidos, pela norma constitucional ou legal, como é o caso do meio ambiente ecologicamente equilibrado e do direito à saúde.
A nosso sentir, in casu, houve uma violação a direitos transindividuais, uma vez que, conquanto fosse possível vislumbrar quais as pessoas eram mais afetadas pela poluição sonora, não se podia determinar ou individualizar de forma precisa essas supostas vítimas dos ruídos sonoros.
Nas palavras de Rodolfo de Camargo Mancuso, o dano depassou “a esfera de atuação dos indivíduos isoladamente considerados, para surpreendê-los na dimensão coletiva.”[1]
Como bem explicitado no acórdão, a indeterminação dos sujeitos, considerada ao se fixar a legitimação para agir na Ação Civil Pública, não é incompatível com a existência de vítimas individualizadas ou individualizáveis.
Nessa esteira, diferenciando de forma didática os direitos individuais homogêneos em face dos direitos transindividuais (difusos e coletivos), DéltonWinter de Carvalho assinala que:
na defesa de interesses transindividuais (coletivos ou difusos), através da ação civil pública, por haver uma indeterminação absoluta dos titulares (nos interesses ou direitos difusos) ou uma determinação relativa dos titulares (nos direitos coletivos), há a impossibilidade de titularidade individual, pois tais direitos são decorrentes de uma circunstância de fato, no caso dos interesses e direitos difusos, e uma relação jurídica-base, nos direitos coletivos. Aqui a defesa em juízo desses direitos ocorrerá sempre por substituição processual.[2]
É também clara a natureza indivisível do direito, uma vez que a lesão ou satisfação de uma só vítima implica a lesão ou satisfação de todos.
Como já dito, a questão envolve o direito ao silêncio e a sadia qualidade de vida mencionada em vários dispositivos constitucionais. Sobre o caráter difuso do direito à saúde, vale transcrever as lições de Celso Antônio Pacheco Fiorillo:
A saúde, enquanto direito de todos (art. 196, da CF/88), ao se adequar perfeitamente enquanto direito difuso (transindividual, de natureza indivisível tendo como titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato) visa possibilitar o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.[3]
Ante o expendido, escorreito o entendimento jurídico consubstanciado no acórdão proferido no REsp 1051306 / MG. Os interesses e direitos tutelados possuem clara natureza transindividual, motivo pelo qual se mostra totalmente cabível a sua tutela através da ação civil pública.
A poluição sonora é indiscutivelmente um dos fatores de degradação do meio ambiente que mais repercutem negativamente no direito à saúde (art. 196 da CF/88), tornando no caso indispensável a propositura de uma ação judicial apta a acolher e defender tais valores e interesses difusos tão essenciais para o homem.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
CARVALHO, DéltonWinter de. A Proteção Jurisdicional do Meio Ambiente. In: MILARÉ, Édis; MACHADO, Paulo Affonso Leme (orgs.). Direito Ambiental: tutela do meio ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. A Ação Civil Pública e a Defesa dos Direitos Constitucionais. In: MILARÉ, Édis; MACHADO, Paulo Affonso Leme (orgs.). Direito Ambiental: tutela do meio ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1991.
Notas
[1]MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 275
[2] CARVALHO, DéltonWinter de. A Proteção Jurisdicional do Meio Ambiente. In: MILARÉ, Édis; MACHADO, Paulo Affonso Leme (orgs.). Direito Ambiental: tutela do meio ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 337
[3]FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. A Ação Civil Pública e a Defesa do Direitos Constitucionais. In: MILARÉ, Édis; MACHADO, Paulo Affonso Leme (orgs.). Direito Ambiental: tutela do meio ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.293-322