O Superior Tribunal de Justiça decidiu recentemente, em acertada oposição ao entendimento doutrinário e jurisprudencial majoritário, que não se pode utilizar do “princípio” in dubio pro societate em decisões judiciais tomadas na esfera penal, uma vez que tal máxima além de não encontrar respaldo no ordenamento jurídico, também viola outros princípios processuais penais.
Diante disso, impõe-se examinar a paradigmática decisão que, certamente, representa um grande avanço no Processo Penal e, portanto, merece a reflexão mais detida pelos operadores do Direito, nos termos do que foi consignado abaixo pela Corte:
“In casu, a denúncia foi parcialmente rejeitada pelo juiz singular quanto a alguns dos denunciados por crime de roubo circunstanciado e quadrilha, baseando a rejeição no fato de a denúncia ter sido amparada em delação posteriormente tida por viciada, o que caracteriza a fragilidade das provas e a falta de justa causa. O tribunal a quo, em sede recursal, determinou o recebimento da denúncia sob o argumento de que, havendo indícios de autoria e materialidade, mesmo na dúvida quanto à participação dos corréus deve vigorar o princípio in dubio pro societate. A Turma entendeu que tal princípio não possui amparo legal, nem decorre da lógica do sistema processual penal brasileiro, pois a sujeição ao juízo penal, por si só, já representa um gravame. Assim, é imperioso que haja razoável grau de convicção para a submissão do indivíduo aos rigores persecutórios, não devendo se iniciar uma ação penal carente de justa causa. Nesses termos, a Turma restabeleceu a decisão de primeiro grau. Precedentes citados do STF: HC 95.068, DJe 15/5/2009; HC 107.263, DJe 5/9/2011, e HC 90.094, DJe 6/8/2010; do STJ: HC 147.105-SP, DJe 15/3/2010, e HC 84.579-PI, DJe 31/5/2010.” (HC 175.639-AC, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 20/3/2012).
Como forma de facilitar a compreensão do caso, cumpre descrever, ainda que de forma sucinta, algumas peculiaridades do processo. Tratou-se de habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública do Acre contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça daquele Estado que, em sede de recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público, deu provimento à pretensão recursal para reformar a decisão de primeira instância que rejeitara denúncia ofertada em desfavor dos pacientes, com fundamento na inexistência de indícios razoáveis de autoria. Com efeito, o Tribunal de Justiça entendeu que a dúvida existente acerca da participação dos pacientes seria suficiente para iniciar a ação penal, visto que, naquela fase, aplicar-se-ia o brocardo in dubio pro societate. Por outro lado, o writ buscava o restabelecimento da decisão que não recebeu a exordial acusatória alegando-se falta de justa causa, nos termos do atual art. 395, III, do Código de Processo Penal, visto que ausentes indícios mínimos de que os pacientes seriam autores dos crimes de roubo e quadrilha (arts. 157, § 2º e 288, caput, ambos do Código Penal) que lhes foram imputados, porquanto o único indício colhido no inquérito policial seria a palavra de corréu delator de forma isolada, em dissonância com os demais elementos informativos do caderno investigatório.
Diante disso, o Superior Tribunal de Justiça, em precedente que merece detida análise pelos operadores do Direito frente sua relevância na sistemática processual penal, entendeu que a decisão de primeira instância deveria prevalecer, uma vez que, em nosso ordenamento jurídico, não vigora o famigerado (e pouco questionado!) princípio in dubio pro societate. Tal decisão possui a capacidade, caso seja absorvida pelas demais instâncias e compreendida sob o ângulo da conformação do processo penal à Constituição Federal, de encerrar de vez a prática autoritária defendida por muitas vozes sem respaldo legal e constitucional de se iniciar ações penais ou se prolatar sentenças de pronúncia, sem que haja o mínimo probatório que legitime alteração tão grave de status do acusado dentro do processo.
Como se sabe, vigora no âmbito constitucional e convencional o princípio in dubio pro reo, ou seja, de que existindo dúvida no processo deve se resolvê-la em favor do acusado, visto que a sujeição ao processo configura, por si só, um gravame ao indivíduo e seus direitos fundamentais. Porém, na prática forense, como ressaltado acima, é comum a invocação da máxima in dubio pro societate como forma de legitimar a solução de eventual dúvida acerca da viabilidade da pretensão acusatória em favor da sociedade na fase de recebimento da denúncia e na sentença de pronúncia.
Ocorre que, numa análise da legislação aplicável ao processo penal, não se encontra fundamento legal que legitime a invocação de tal princípio, justamente porque inexistente em nosso ordenamento jurídico, eis que se trata de verdadeira criação jurisprudencial e doutrinária reproduzida de forma acrítica e costumeira, de modo que a decisão do Superior Tribunal de Justiça reforça a falta de previsão legal de tal preceito, e, além disso, reafirma a lógica do sistema processual penal que exige certos rigores para que alguém seja incluído no pólo passivo de uma ação penal, principalmente porque tal sujeição já configura mácula ao imputado, que somente pode ser excepcionada quando presentes elementos sérios e concretos. A situação aqui mencionada não passou despercebida pela doutrina que há tempos já afirmava que “não se pode admitir que juízes pactuem com acusações infundadas, escondendo-se atrás de um princípio não recepcionado pela Constituição” (LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. II. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 261).
Note-se ainda que, apesar da decisão examinada enfrentar tão somente o momento do recebimento da denúncia, nos moldes do que foi decidido, isto é, que a dúvida em favor da sociedade além de não possuir previsão legal também está em descompasso com a sistemática processual penal, é inegável que o posicionamento trará reflexos na sentença de pronúncia, impedindo que se submetam réus ao Tribunal do Júri para sanar considerável dúvida existente que deveria ter sido dissipada em seu favor na fase antecedente do processo. A doutrina também já se ocupou do tema, ao asseverar que “in dubio pro societate é frase que, a bem dizer — no contexto da Constituição Federal e considerando-se que ela traduz as mais altas aspirações da sociedade — só pode ser entendida na acepção de que, remanescendo dúvida quanto a qualquer dos pressupostos da condenação, deva o réu ser impronunciado” (ANTONINI, José Roberto. Pronúncia: “in dubio pro societate”. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 15, n. 177, p.13-14, ago. 2007).
Com efeito, a partir da análise do art. 5º, LVII, da Constituição Federal e art. 8º, 2, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (GOMES, Luiz Flávio. Comentários à convenção americana sobre direitos humanos: Pacto de San José da Costa Rica. São Paulo: RT, 2008, p. 85), que trazem a presunção de inocência e, por corolário, o princípio do in dubio pro reo, denota-se que não subsiste a interpretação de que na dúvida acerca da pretensão acusatória deve prevalecer uma suposta defesa da sociedade, visto que se trata de preceito estranho ao ordenamento jurídico pátrio, fruto de um processo penal de ranço autoritário que está em dissonância com a atual Carta Magna, o que impõe a prevalência da dúvida em favor do arguido em todos os momentos da persecução penal.
Conclui-se, portanto, em apertada síntese, que andou bem o Superior Tribunal de Justiça ao afirmar que não procede a interpretação dada de forma acrítica pela doutrina e jurisprudência quase de forma unânime acerca da existência de um propalado princípio in dubio pro societate, uma vez que inexiste respaldo legal em nossa sistemática processual penal que dê guarida a tal entendimento evidentemente prejudicial ao acusado. Espera-se, agora, que a decisão irradie efeitos para os demais Tribunais pátrios e contribua com o tormentoso e lento processo de constitucionalização do processo penal.