RESUMO
A Lei Complementar (LC) n. 135, de 4 de junho de 2010, foi a quarta de iniciativa popular a se tornar lei no Brasil. Conhecida como Lei da Ficha Limpa, alterou a LC n. 64, de 18 de maio de 1990 estabelecendo novos casos de inelegibilidades e prazos de cessação, bem como outras providências. Dentre as inovações incluiu-se a expressão “ou proferida por órgão colegiado” tornando possível que o candidato seja considerado inelegível antes da sentença ter transitado em julgado, como era exigido na antiga lei. A entrada em vigor da referida Lei gerou controvérsia no cenário político eleitoral. Para os que atestam a sua legalidade, tratar-se-ia de um passo importante para o aprimoramento da democracia brasileira, no sentido se assegurar e proteger a probidade administrativa e a moralidade para exercício do mandato. Contudo, alguns defendem que a Lei não passa de um casuísmo político, favorecendo apenas os interesses de pequenas parcelas da sociedade. O presente artigo discute a constitucionalidade da lei, à luz do princípio da não culpabilidade, da probidade administrativa e moralidade pública, todos consagrados pelo atual ordenamento jurídico brasileiro.
Palavras - chave: inelegibilidade, ficha limpa, não culpabilidade, moralidade, probidade, vida pregressa
1 Introdução
O fenômeno da corrupção no Brasil e suas consequências negativas para o Estado Democrático de Direito devem ser compreendidos a partir da própria sociedade brasileira.
Diversamente das sociedades politicamente organizadas, estruturadas pela racionalização da ação política e administrativa, com mecanismos de controle eficientes e capazes de impor punição exemplar aos infratores, no Brasil os mecanismos legais de fiscalização não se prestam efetivamente aos objetivos oficiais a que se destinam, servindo muitas vezes como mera formalidade para justificar práticas corruptas institucionalizadas.
A Lei Complementar (LC) n. 135, de 4 de junho de 2010, Ficha Limpa, evidencia a descrença da sociedade brasileira quanto aos ocupantes de cargos políticos, colocando um marco didático na importância da participação do cidadão para a construção de uma representação política mais honesta e comprometida com as verdadeiras necessidades da sociedade.
A principal inovação da Lei está no fato de possibilitar que os candidatos se tornem inelegíveis antes de a decisão ter transitado em julgado, bastando a condenação por órgão colegiado. Percebe-se desde logo que a intenção da Lei é clara no sentido de exigir uma fiscalização mais rigorosa e uma vigilância permanente dos cidadãos que optem pelo compromisso da prática política, tendo como foco a busca pela punição àqueles responsáveis pelo mau uso do dinheiro público, que acentuam sobremaneira o processo de corrupção.
2 Histórico e inovações relevantes da ficha limpa
Em setembro de 2009, o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), constituída por uma rede de 44 organizações da sociedade civil, encaminhou a proposta de alteração legislativa ao Congresso Nacional visando ampliar as hipóteses de inelegibilidades.
A iniciativa popular prevista no artigo 61, § 2°, da CRFB/88, poderá ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de um projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles. A Lei n. 9.709/98 estabeleceu que o projeto de iniciativa popular deve restringir-se a um único assunto e que não se pode rejeitar proposição decorrente de iniciativa popular por vício de forma (art. 13, § 2°). Nos termos do Regimento interno da Câmara dos Deputados, não haverá o arquivamento das proposições legislativas decorrentes de iniciativa popular[1].
No entendimento de Bonavides, et al. (2009, p. 1020):
[...] deve-se entender que os percentuais exigidos atenderam à realidade populacional e eleitoral. Com efeito, uma tal iniciativa só pode ter êxito naqueles considerados ‘’grandes’’ Estados, cujo número situa-se em torno de 10, dos 26 que integram a federação: dificilmente um projeto de lei popular poderia ser viabilizado se fosse buscar os aludidos percentuais em Estados com baixa concentração demográfica. Assim a exigência de 5 Estados é plausível; além disso a previsão de no mínimo três décimos por cento em cada um dos Estados, tende a facilitar a sua consecução.
A LC 135/2010, conhecida como ‘Ficha Limpa’ foi a quarta de iniciativa popular a se consagrar como tal, sancionada pelo Presidente da República, desde que a CRFB/88 assegurou, aos eleitores, o direito de apresentar projetos dessa natureza[2].
A nova Lei, que teve como norte a proteção da probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato, modificou aspectos de ordem material e procedimental na Lei Complementar n. 64, de 1990, conhecida por Lei de Inelegibilidades.
Dispõe o artigo 1[3]°:
Art.1º Esta Lei Complementar altera a Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o § 9º do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências.
O artigo 1°, inciso I, da LC 64/90, é taxativo ao dispor: “art.1° são inelegíveis: I – para qualquer cargo.” As alíneas a e b permanecem inalteradas, trazendo nas alíneas c, d, e, f, g, h, j, k, l, m, n, o, p, q, a primeira inovação significativa: o prazo da sanção após o cumprimento da sentença, que antes era de 3 (três), ou 5 (cinco) anos foi alargado para 8 (oito), se tornando uniforme em todas as hipóteses.
A alínea d trouxe outra mudança expressiva, incluindo a hipótese de que a inelegibilidade por abuso de poder econômico ou político tenha incidência já a partir de decisão proferida por órgão colegiado, ou seja, antes mesmo da sentença ter transitado em julgado. Reza a referida alínea:
d) os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes. (grifo não original)
Na alínea e, houve a ampliação do rol de crimes comuns que ensejam inelegibilidade, e nos casos de crimes eleitorais aplica-se somente para aqueles que a lei comina pena privativa de liberdade, quais sejam reclusão e detenção.
No parágrafo 4°, houve ainda o cuidado em deixar explicitado que ações penais privadas ou ações penais públicas relativas a crimes culposos ou de menor potencial ofensivo não são capazes de originar o afastamento de candidaturas. Ficou clara a intenção do legislador em evitar que questões de menor relevância ou motivadas por interesses particulares (como nos crimes contra a honra) pudessem implicar em limitação à condição de elegibilidade.
As alíneas j, k, l, m, n, o, p e q, são inovações novidades trazidas pela LC 135/10, não tendo correspondência na antiga redação. Destaca-se:
j) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição;
[...]
l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena;
[...]
q) os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos;
O parágrafo 5°, ainda do artigo 1° determina que a inelegibilidade prevista na alínea k não se aplica às renúncias feitas para atender a desincompatibilização com vistas a candidatura a cargo eletivo ou para assunção de mandato, a menos que a Justiça Eleitoral reconheça fraude ao disposto nesta Lei Complementar.
A LC 135/10 entrou em vigor na data de sua publicação, 4 de junho de 2010, o que gerou grande controvérsia no cenário político brasileiro, uma vez que o artigo 16 da CRFB/88 prevê expressamente a proibição na aplicação da lei que altere o processo eleitoral.
3 Princípio da anualidade versus aplicabilidade imediata
A CRFB/88 estabelece em seu artigo 16 que a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que se realizar até um ano da data de sua vigência[4].
A norma é clara no sentido de proteger a estabilidade e a qualidade do processo eleitoral. Sua finalidade é especialmente evitar a mudança nas regras de um jogo que já começou, como acontecia comumente nos regimes autoritários, por força do casuísmo. Mendes (2009), enfatiza que o principio da anualidade tem por base moderar eventuais impulsos de viradas jurisprudenciais súbitas, no ano eleitoral, acerca de regras legais de densas implicações nas estratégias partidárias.
Desse modo, a Lei Ficha Limpa, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 04 de Junho de 2010, acendeu enorme discussão acerca da possibilidade de sua aplicação para as eleições daquele ano.
O presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Ophir Cavalcante Junior, em sua obra intitulada “Ficha Limpa: a vitória da sociedade” defendeu impetuosamente que a Lei Complementar 135/10 deveria ter eficácia imediata, aplicando-se já às eleições de 2010.
Neste sentido assegurou Cavalcante Junior (2010, p. 27):
A norma entrou em vigor na data de sua publicação e possui eficácia imediata, tendo em vista que não se trata de alteração do processo eleitoral, em alguma de suas fases, mas de casos de inelegibilidade e de normas de direito processual, donde se conclui que não há causa para a incidência do princípio da anualidade previsto no art. 16 da Constituição Federal.
Fundamentando seu posicionamento Cavalcante Junior (2010, p. 27), assegura:
Ao apreciar a Consulta 112026, relatada pelo Ministro Hamilton Carvalhido, o TSE, em 10 de junho de 2010, respondeu afirmativamente, concluindo que a nova lei terá aplicação para as próximas eleições. A consulta apresentou a seguinte indagação: a “lei eleitoral que disponha sobre inelegibilidades e que tenha a sua entrada em vigor antes do prazo de 05 de julho poderá ser efetivamente aplicada para as eleições gerais de 2010”. Tratava-se, em verdade, de verificar se seria incidente ao caso o art. 16 da Constituição Federal, segundo o qual a lei que altera o processo eleitoral não se aplica à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência. Asseverou o Ministro-Relator no TSE que “o processo eleitoral não abarca todo o direito eleitoral, mas apenas o conjunto de atos necessários ao funcionamento das eleições por meio do sufrágio eleitoral”. Deste modo, a nova lei não altera o processo eleitoral, não atraindo a incidência do princípio da anualidade eleitoral prevista no art. 16 da Carta Constitucional.
Ainda em 2010, a discussão acerca da sua aplicação para aquele ano foi submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 630147, ajuizado na Corte pelo candidato ao governo do Distrito Federal Joaquim Roriz (PSC). Contudo, em razão da aposentadoria do Ministro Eros Grau, o Supremo contava naquela ocasião, com um ministro a menos e o julgamento, que se estendeu por dois dias, empatou em 5 votos a 5[5].
O ministro Luiz Fux, que assumiu o cargo em março de 2011, ficou responsável por dar o voto crucial. A decisão aconteceu no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 633.703, proposto por Leonídio Bouças, que teve negado por improbidade administrativa, o registro de sua candidatura para deputado estadual de Minas Gerais[6].
O Ministro Mendes (2011, p. 40), relator do processo defendeu:
O princípio da anterioridade eleitoral constitui uma garantia fundamental também destinada a assegurar o próprio exercício do direito de minoria parlamentar em situações nas quais, por razões de conveniência da maioria, o poder legislativo pretenda modificar, a qualquer tempo, as regras e critérios que regerão o processo eleitoral. Se hoje admitirmos que a uma nova lei pode ser publicada dentro do prazo de um ano que antecede a eleição para aumentar os prazos de inelegibilidade e atingir candidaturas em curso, amanhã teremos que também admitir que essa mesma lei possa ser novamente alterada para modificar os mesmos prazos de inelegibilidade com efeitos retroativos. E assim a cada pleito eleitoral os requisitos de elegibilidade ficariam a mercê das vontades políticas majoritárias.[7]
Seguindo o relator, o ministro Fux (2011, p. 38) corroborou:
A criação de novas inelegibilidades erigidas por uma lei complementar Lei da Ficha Limpa no ano da eleição efetivamente cria regra nova inerente ao processo eleitoral, o que não só é vedado pela Constituição Federal, como pela doutrina e pela jurisprudência da Casa. Houve uma intervenção no pleito eleitoral com a criação de novas causas de inelegibilidades. O que é alteração no processo eleitoral no mesmo ano da eleição? Se a lei produziu efeitos no mesmo ano desconsiderou o comando da Constituição Federal, violou a Constituição Federal[8].
Mesmo com argumentos plausíveis fundamentando a eficácia da lei para 2010, a Lei Ficha Limpa não foi validada para o pleito daquele ano, prevalecendo a tese de que o princípio constitucional da anualidade seria violado. O STF reconheceu ainda, por unanimidade, a repercussão geral do tema, permitindo que os ministros aplicassem, monocraticamente, o entendimento adotado neste julgamento aos demais casos análogos, com base no artigo 543 do Código de Processo Civil.
Num ato de inconformismo, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, representado pelo então presidente Ophir Cavalcante Junior, ajuizou no Supremo Tribunal Federal, em maio de 2011, a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) n° 30, que foi distribuída por prevenção nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 4578, e Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 29, devido a coincidência parcial de objetos. Nos pedidos, solicitou a intimação do Procurador Geral da República para manifestar-se acerca do conteúdo em debate.
A ADI n. 4578, foi proposta pela Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL), questionando a alínea “m” da Lei Complementar n. 135/10, que torna inelegível quem for excluído do exercício da profissão por decisão de conselho profissional. Para a entidade, os conselhos profissionais são apenas órgãos de fiscalização, não podendo as sanções aplicadas aos fiscalizados transbordarem de seu universo corporativo[9].
Elaborada pelo Partido Popular Socialista (PPS), a ADC 29 defende que seja reconhecida e validada na íntegra a Lei da Ficha Limpa, para que seu conteúdo abarque fatos ocorridos antes da vigência da norma, visto que não acarreta qualquer prejuízo ao principio da irretroatividade das leis e da segurança jurídica[10].
Em 25 de agosto de 2011, o Procurador - Geral da República, Roberto Monteiro, em conjunto com a Vice – Procuradora, Deborah Macedo, já haviam concluído pelo conhecimento da ação e, no mérito, pela procedência do pedido. Asseguraram que o texto é integralmente constitucional, não violando o princípio da presunção de inocência e da segurança jurídica, devendo portanto, ter aplicação imediata.
4 Presunção de inocência versus probidade administrativa e moralidade pública
Outro embate figurado na discussão acerca da constitucionalidade da LC. 135/2010 é o argumento de que o princípio da presunção de inocência foi maculado pela aplicação de uma sanção, antes que o processo tenha chegado ao fim, tornando a decisão irrecorrível.
Rangel (2008, p. 23), define:
O princípio da presunção de inocência tem seu marco principal no final do século XVIII, em pleno Iluminismo, quando, na Europa Continental, surgiu a necessidade de se insurgir contra o sistema processual inquisitório, de base romano – canônica, que vigia desde o século XII. Nesse período e sistema o acusado era desprovido de toda e qualquer garantia. Surgiu a necessidade de se proteger o cidadão do arbítrio do Estado que, a qualquer preço, queria sua condenação, presumindo-o, como regra culpado. Com a eclosão da Revolução Francesa, nasce o diploma marco dos direitos e garantias fundamentais do homem: a declaração dos direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Ficando consignado em seu art. 9° que “Todo homem é considerado inocente, até o momento em que, reconhecido como culpado, se julgar indispensável a sua prisão: todo o rigor desnecessário, empregado para a efetuar, deve ser severamente reprimido pela lei”.
O Brasil, pela primeira vez, consagrou o chamado princípio da presunção de inocência, proclamado, em 1948, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, na ONU. Sendo esculpido no artigo 5°, inciso LVII, da CRFB/88.
Imperioso ressaltar, de início, que apenas a nova redação do art. 1°, I, e, da LC. 64/90, poderia, em tese, atritar com a norma constitucional da presunção de inocência. Isto porque, todas as outras novas situações de inelegibilidades na qual se mitiga o trânsito em julgado da decisão (alíneas d, h, j, l e p) não se referem a ilícitos penais, mas a ilícitos civis, objetos de instrução na Justiça Eleitoral e na Justiça Comum, sendo este quanto ao ato de improbidade administrativa.
Os defensores da inconstitucionalidade deste diploma argumentam que a sanção imposta quando da decisão proferida por órgão colegiado fere diretamente o principio constitucional da presunção de inocência. Embora alguns concordem que a corrupção seja um mal a ser exterminado, defendem que não se pode fazê-lo por meio da relativização de princípios e garantias constitucionais.
Ramos (2010, p. 01) argumenta:
Mesmo sabendo que, do ponto de vista ético e moralizador, é extremamente louvável a atitude daqueles que pretendem evitar a candidatura dos que não possuem conduta pessoal ou profissional compatível com a moralidade político-representativa, não há como defender uma lei que, à guisa de moralizar a política, ofende Direitos e Garantias Fundamentais, ou seja, que com o escopo de preservar a moralidade, limita o exercício de direitos (capacidade eleitoral passiva) antes do definitivo e irreformável trânsito em julgado. [11]
Ramos (2010, p. 01), completa:
Ora, o princípio da presunção de inocência (uma das mais importantes garantias constitucionais, pois, através dela, o acusado deixa de ser um mero objeto do processo, passando a ser sujeito de direitos dentro da relação processual), que deita raízes no direito romano e que teve previsão expressa na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, não pode, em absoluto, sufragar diante de uma lei flagrantemente inconstitucional que, cedendo ao clamor da opinião pública (que, justiça seja feita, se encontra cansada de políticos corruptos e desonestos), relativiza uma das mais valiosas conquistas do nosso Estado Democrático de Direito[12].
O argumento mais coerente acerca desse posicionamento, está embasado no julgamento da ADPF n. 144, que diz respeito à avaliação da constitucionalidade da negação do registro da candidatura, daqueles que estejam respondendo a processos criminais.
Após o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidir que o registro de candidatura dos que respondessem a processos criminais só poderia ser negado após o trânsito em julgado, a Associação de Magistrados Brasileiros (AMB) ajuizou a ADPF 144, visando obter a permissão para negar tal registro antes de findado o processo. Porém, O STF por maioria, julgou improcedente a ADPF, confirmando que os juízes eleitorais só poderiam negar o registro de candidatura após o trânsito em julgado da decisão condenatória.
O Ministro Celso de Mello votou pela improcedência da ADPF defendendo que não é possível invocar a moralidade para derrubar direitos fundamentais, pois sem o trânsito em julgado, não é possível impor a inelegibilidade (CRFB/88, art. 15, III). Há violação da garantia da não culpabilidade e da presunção de inocência e que não existe previsão constitucional para os juízes eleitorais avaliarem a vida pregressa dos candidatos.
Em sentido oposto, o Ministro Carlos Ayres Britto defendeu que o principio da presunção de inocência não é absoluto, que a situação em debate não se equipara a suspensão ou perda dos direitos políticos, nem de inelegibilidade, é sim causa de elegibilidade. Argumentou ainda que os direitos políticos decorrem da soberania popular e do Estado democrático de direito, não se prestando a servir exclusivamente a seus titulares, mas sim ao bem comum.
Neste sentido, Pinto (2008, p. 35) é categórico ao afirmar:
O princípio da presunção de inocência costuma afastar a vigência de todos os demais princípios. É aplicado como se fosse uma regra jurídica. A sua prevalência absoluta sem qualquer ponderação tem resultado em graves aberrações, consistentes na garantia de elegibilidade a muitos, reconhecidamente criminosos. Para resolver, sob o ponto de vista jurídico esse problema, amenizando o drama da cidadania chocada com essas constatações, basta ter em mente, que, diante de tensão ou conflito aparente entre princípios, em matéria eleitoral, deve prevalecer aquele que preserve melhor o interesse público.
Pinto (2008, p. 36), esclarece:
Não é o caso de revogação de um princípio por outro, mas de interpretação harmônica, para levar o Direito a cumprir seu grande papel de preservador da harmonia e nunca transformá-lo em instrumento de destruição do grupo social.
Neste contexto admite-se que, se configurada, a mitigação deste princípio se prestaria a atender tão somente ao relevante mandamento constitucional do artigo 14, parágrafo 9°, prevalecendo o princípio da probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, do candidato, sempre em favor do povo.
Filho (2011), lembra ainda que ao possibilitar no art. 26-C que o candidato formule pedido de suspensão da inelegibilidade ao tribunal ad quem responsável pelo julgamento do recurso contra a decisão condenatória do órgão colegiado, o legislador, mais uma vez, buscou ao máximo harmonizar os princípios constitucionais em tensão, não podendo, se falar em inconstitucionalidade.
Há de se concordar que toda e qualquer norma que restrinja o direito à elegibilidade para cargos públicos tem a mesma finalidade de estabelecer o mínimo esperado dos postulantes. Por seu intermédio, delineia-se negativamente o perfil dos candidatos, aspirando-se a evitar que o futuro posto venha a ser alcançado por quem se enquadre em uma das hipóteses de exclusão. Tais conceitos não se configuram como de caráter punitivo-criminal, tampouco tratam de pena de natureza administrativa.
Reis (2010) assegura que tais vedações possuem natureza preventiva e sua base constitucional se assenta nos princípios da moralidade e da probidade administrativas. Não se trata de punir alguém, mas de considerá-lo incurso em uma circunstância que a lei reputa inconveniente para quem pretenda exercer as elevadas e sensíveis funções de mandatários públicos.
Sendo assim, a Lei Ficha Limpa justifica-se no sentido de criar meios de enfraquecimento aos pretendentes a cargos públicos que tenham perfis que se identificam com a corrupção e o mau uso do dinheiro público.
Reis (2010) compara a exigência dirigida ao candidato de que ostente uma vida pregressa a qual observe certo padrão exigido pela lei, a uma regra tão objetiva quanto a de que possua filiação partidária ou tenha a idade mínima exigida para o cargo postulado.
A diferença salutar dessa visão controvertida reside na seguinte premissa: o estado de liberdade é natural e, portanto, só com a observância dos máximos rigores pode o Estado restringi-lo; a condição de mandatário político é uma concessão social, e exatamente por essa razão somente a alguns é permitido exercê-la. Destaca-se que tal restrição não parte de qualquer juízo baseado na responsabilidade criminal do acusado, mas tão somente do risco potencial que ele tende a representar para a vitalidade das instituições políticas e para o cumprimento dos seus compromissos com a sociedade.
No direito penal predomina a máxima do in dubio pro reo, onde nos casos de conflito entre a inocência do réu e a sua liberdade, a decisão tomada deve ser em favor do acusado. Por outro lado, quando dispositivos processuais forem interpretados com dúvida razoável quanto ao seu real alcance e sentido, deve-se optar pela posição mais favorável à coletividade, o que no direito eleitoral configura-se pela expressão: in dubio pro societate.
Neste sentido não há que se pensar em risco de liberdade do candidato pela atuação do Estado, mas sim exatamente o oposto, o pretendente já condenado em primeira ou segunda instância, independente de sentença transitado em julgado, é que representa ameaça aos bens comuns da sociedade.
A CRFB/88, apelidada de Constituição cidadã, promulgada sob o manto da democracia, ampara os direitos e garantias individuais com intuito de proteger o bem maior, que é o povo brasileiro. Não há que se falar em macula ao princípio da não culpabilidade na aplicação da LC 135/2010, uma vez que a sua finalidade precípua é a tutela da segurança pública, visando sempre a proteção da sociedade.
Diante disto, fica claro que o princípio da proporcionalidade deverá ser suscitado com intuito de, quando necessário, relativizar os direitos e garantias do candidato, sempre a favor do princípio pro societate.