Em artigo anterior – Reconhecimento sem as formalidades legais – prova ilícita1, tratamos da absoluta necessidade de cumprir-se o princípio da legalidade processual penal – Art. 226 do CPP ao realizar-se a prova do Reconhecimento do acusado. Ao não fazê-lo, por tal ato ser irritual, desatende-se à tipicidade processual e torna-se inválido e ilícito nos exatos termos do artigo 157 do CPP que expunge dos autos aquela prova obtida em violação às normas legais.
A questão agora é outra. Vários tribunais têm plácita e temerariamente aceito o apontamento do acusado pela vítima ou testemunha em audiência, reconhecendo neste extrema força condenatória.
A pergunta é: Tal ato trata-se de reconhecimento, prova nominada no art. 226 do CPP?
A nosso ver, não. E, muito menos deveriam os Tribunais chancelarem este irritual proceder de juízes que, já aí, demonstram um vezo inquisitivo, buscando, sem que seja por complementação - art. 156 e 212, parágrafo único do CPP, - prova.
Imagine o eventual leitor a seguinte cena: Numa sala, onde todos estão paramentados de terno e gravata, o juiz aponta para um sujeito normalmente vestido de macacão vermelho, laranja ou qualquer outra cor berrante, de chinelos, que está comumente algemado (súmula 11 do STF?) e cercado por 2 (dois) policiais fardados e armados e, aí, com bastante ênfase, pergunta a testemunha ou vítima se aquele cidadão é quem teria cometido o delito.
De regra, olhando rápido e meio de lado, a resposta vem uma só: “É ele, doutor!”.
É o quanto basta para o julgador girar na sua cadeira em direção a escrevente e frisar: registre-se que a testemunha/vítima reconheceu o réu em audiência como sendo o autor do crime.
E aguarde-se a condenação, logo mais...
Para além da quebra do devido processo legal, que previu uma forma a atuar como garantia de realização do ato; para além da atipicidade processual penal que tal situação retrata; para além, até, do esquecimento de qualquer comezinha noção de que a função maior do magistrado é como garante constitucional, o fato é que tal conduta beira à maldade.
É patente demais, é obvio demais que
“a vítima ou testemunha que vê o acusado nessa condição ou chegando algemado para a audiência ou jurí, sofre inegável indução. Esta, a seu turno, é em geral reforçada pela incisiva pergunta, logo feita pelo juiz, se não foi ele o autor do crime.(...) o perigo de um erro judiciado é enorme, porque se dá ao reconhecimento judicial, embora feito contra a lei, valor quase absoluto.”2
De fato, ninguém que olhe ao acusado em tais condições e sob tal incisividade vê uma pessoa. Vê um crime.
Quando, em 1992, Delmanto publicou o artigo acima citado, não se tinha, ainda, pesquisas sérias e confiáveis sobre o tamanho do estrago que o desprezo ao rigor da forma imposta pelo legislador à prova do reconhecimento causava. Hoje, através da ONG norte-americana The Inocence Project, os aterradores dados desta informam que 75% de condenados nos Estados Unidos, alguns no corredor da morte, lá se encontravam por reconhecimentos falsos ou mal feitos ou, ainda pior, induzidos. Somente através do DNA a inocência veio à luz solar e vidas foram poupadas.3
Em terras brasileiras, com muitos juízes e tribunais atuando com pleno descaso na implementação das normas de garantia constitucional, e, sabe-se, “Direito Processual Penal é verdadeiro direito constitucional aplicado”4, não imaginemos que seja diferente.
O fato é que, como já o disse Holmes, Justice da Suprema Corte norte-americana, o Direito é instrumental, só se torna positivo após aplicado pelo juiz. Com beleza impar, Rui Barbosa assim define a questão: “Quem dá às Constituições realidade, não é o pergaminho que a estampa: É a magistratura que as defende.”5
O problema, o busilis todo, infeliz e lamentavelmente, esta aí: O Judiciário criminal brasileiro, em sua acachapante maioria, tem olimpicamente ignorado a luz da Magna Carta na implementação das garantias constitucionais não só ali previstas, como nos Tratados Internacionais de que, pelo menos aparentemente, somos signatários. É triste. Como já o disse Platão, “Podemos perdoar as crianças que tem medo da escuridão, o problema são os Homens que tem medo da Luz.”6 Temos para nós, que a excelência de uma nação é diretamente proporcional e imbricada à excelência de sua Justiça. “O judiciário penal não pode ser conivente com prova insegura, frágil, desleixada, pena de ser autofágico- Destruir a razão pela qual existe: garantir ao cidadão que não irá a presídio sem a certeza razoável a respeito da autoria do crime.”7
A consolidação da democracia exige respeito por parte do poder público às normas legais que ele mesmo produz e não tolera que em nome de uma política securitária se cumpra a lei somente quando a esta política interessa.
Não é possivel mais calar-se a quebra do ato de reconhecimento, realizada pelos nobres intérpretes, dotando-o de informalidade a que não estão legitimados, seja por respeito ao princípio da legalidade/tipicidade processual penal, seja por acatamento à reforma processual penal de 2008 que determina ao juiz a busca de prova de forma complementar, jamais, de forma incisiva e motu proprio como vem a ocorrer, diuturnamente, com as bençãos de uma jurisprudência nazista.
Como já o disse Nucci, tratando do especifico tema:
“Lamentavelmente, tornou-se a regra no Brasil o reconhecimento informal de pessoa ou coisa. Em audiência, a testemunha ou vítima é convidada a dizer se o réu – único sentado no banco apropriado – foi a pessoa que praticou a conduta delituosa. Olhando para o acusado, muitas vezes de soslaio, sem atenção e cuidado, responde afirmativamente. Houve reconhecimento formal? Em hipótese alguma. Trata-se de um reconhecimento informal e, não poucas vezes, de péssima qualidade.
Parece-nos deva o magistrado exigir, ao menos, da testemunha ou vítima que, realmente, visualize a figura do acusado e, antes disso, descreva quem foi a pessoa autora da infração penal. Esse procedimento não tem custo algum, tomando alguns minutos do depoimento. (...) a padronização e a automatização desses reconhecimentos informais, por vezes falhos e vulgarizados, podem levar ao cárcere inocentes, que estão clamando, desde o início da ivestigação policial, pela negativa de autoria.”8.
Concordamos, em parte, com o preclaro autor, não obstante, a conduta pelo mesmo sugerida ainda está abaixo do mínimo que essa delicada prova ritual exige.
Temos, com Scarance Fernandes, a seguinte opinião doutinária:
“Também tem sido admitido como prova atípica o ‘apontamento do acusado na audiência’, pela vítima ou pelas testemunhas, dando-lhe o mesmo valor probatório do reconhecimento pessoal formal.
A indicação do acusado é prova irritual, não podendo ser admitida no processo.
O reconhecimento pessoal, tal qual disciplinado no Código de Processo Penal (LGL/1941/8), envolve uma percepção presente e uma pretérita. Há, também, um ato de memória, invocando percepções guardadas na memória, para compará-la como percepções atuais. A única forma de se conferir a percepção pretérita bem como a correspondencia entre o confronto das percepções é com a descrição da percepção pretérita, o que não ocorre na simples indicação ou apontamento do acusado. Ao mais, mormente no caso em que o acusado está algemado na sala de audiencia, há um forte componente de sugestionabilidade no apontamento, retirando-lhe qualquer valor probatório.”9
Ainda neste diapasão, a respeitável doutrina de Tornaghi:
“Jamais, portanto, poderia aceitar-se como reconhecimento a identificação de uma pessoa insulada, sozinha. (...) Por não praticado pela forma prescrita em lei, ele não apenas seria írrito, mas inexistiria como reconhecimento.”10
Tal crítica ao apontamento, também ocorre além mar pois, como observa Florian:
“O reconhecimento seria risível se ao indíviduo que deve fazê-lo se apresentasse unicamente a pessoa que tem de reconhecer. Com toda razão o reconhecimento deve fazer-se entre vários, inter pluris, e por isso é necessário a presença de várias pessoas entre as quais deve colocar-se a pessoa que se tem de reconhecer.”11
Secunda-o, nessa crítica, o jurista Saponaro, para quem, “um reconhecimento sem as devidas formalidades, soa, no seu dizer, como uma escamotage.” 12
À derradeira, nisso de apontamento do acusado em audiência não tratar-se de prova de reconhecimento – art. 226 do CPP, encerramos com Aury Lopes Jr e sua necessaria veêmencia:
“É um absurdo quando um juiz questiona a testemunha ou vítima se “reconhece(m) o(s) réu(s) ali presente(s) como sendo o(s) autor(es) do fato”. Essa “simplificação” arbitrária constitui um desprezo à formalidade do ato probatório, atropelando as regras do devido processo e, principalmente, violando o direito de não fazer prova contra si mesmo. Por mais que os tribunais brasileiros façam vista grossa para esse abuso, argumentando às vezes em nome do “livre convencimento do julgador”, a prática é ilegal e absurda.
É ato formal que visa a confirmar a identidade de uma pessoa ou coisa. O problema é a forma como é feito o reconhecimento. Em audiência, o código afasta apenas o inciso III (que pode perfeitamente ser utilizado...). Logo, não é reconhecimento quando o juiz simplismente pede para a vítima virar e reconhecer o réu (único presente e algemado...), pois descumpre a forma e é um ato induzido. Contudo, os juízes fazem a título de “livre convencimento”(...) Entendemos que tal prática constitui uma prova ilícita (ou nula, a exemplo do disposto no art. 213.3 do CPP italiano) e que deve ser banida da prática forense e dos autos dos processos, na medida em que viola o sistema acusatório (gestão da prova nas mãos das partes); quebra a igualdade de tratamento, oportunidade e fulmina a imparcialidade; constitui flagrante nulidade do ato, na medida em que praticado em desconformidade com o modelo legal previsto; e, por fim, nega eficácia ao direito de silêncio e de não fazer prova contra si mesmo. Em suma, é uma teratologia judicial inadmissível.”13
E é isso. Viu-se, pois, em todo o acima dito, que o apontamento em audiência é ato simultaneamente avesso à lei processual penal, à Magna Carta e aos tratados internacionais. Ao se informalizar tão delicado ato, reduz-se, drasticamente, a esfera das garantias fundamentais e “não é necessário que entre o crime e a persecusão penal tenha-se que espremer cada vez mais o núcleo que dá vida a uma Constituição”14. Urge que os julgadores estejam dispostos a defender o Princípio da Legalidade que, nesse caso, atua como garantidor do direito a um justo processo e rejeitem como falsa a escolha entre nossa segurança e nossos ideais – arts. 1° e 3° da CF/88. Que entendam, em definitivo, que Justiça Criminal, onde se albergam incomensuráveis valores da humanindade, não pode ser entendida como industrial linha de produção.
Era o que tinhamos a dizer sobre o tema.
Referências Bibliográficas
1 – Site: www.ibccrim.org.br, publicado em 02/2012 e site www.conjur.com.br, publicado em 04/2012.
2 - Delmanto, Roberto, O reconhecimento de pessoas precisa ser aperfeiçoado, RT 676/390
3 – Site: www.inoccenceproject.org
4 - H.Henkel in Roberto, Welton, Paridade de Armas no Processo Penal, Ed. Forum, ano 2011, pg. 16
5 - Barbosa, Rui in Alberto, Zacharas Toron, Advocacia criminal: um estorvo perigoso, Boletim IBCcrim, 10 anos, Out/2002
6 - Platão in Jornal Tribuna do Direito, set/ 2000, pag. 06
7 - Suannes, Adauto- Os fundamentos éticos do devido Processo Penal, Ed. RT
8 - Nucci, Guilherme de Souza - Provas no Processo Penal, Ed. RT, 2° Edição, ano 2011, pag. 184
9 - Scarance Fernandes, Antonio, Prova e Sucedâneos de Prova no Processo Penal Brasileiro, RBCC. Vol. 65, pag. 175
10 - Tornaghi, Hélio – Instituições de Processo Penal, Ed. Saraiva, 2ª Edição, ano 1978, Tomo 4, pg. 120/21
11 - Florian, Eugenio - De las Pruebas Penales, Ed. Temis, Bogotá, 1998, t II, p. 494
12 – Saponaro, Armando. Brevi Riflessioni in tema di rilognizioni informale: uma mai sopita e ditattuta querelle, em Cassazione penale, 1995, p. 3035 apud Nereu José Giacomolli, A fase preliminar do Processo Penal, Ed Lumen Juris, ano 2011, pg. 163
13 – Lopes Jr, Aury, Direito Processual Penal ED. Saraiva, 9° Ed., ano 2012, pag 681/ 682.
14- Malzoum, Ali, Direitos ficam de lado em nome do combate ao crime in Consultor Jurídico, 10/04/2012.