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O processo de generalização das cláusulas abusivas sob a perspectiva da função social dos contratos

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22/05/2012 às 18:46
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É irrefutável que a Constituição, com seus princípios normativos e com as diretrizes firmadas pelos direitos sociais fundamentais, representa o caminho adequado para uma compreensão construtiva, integradora e unificadora de todo o conteúdo jurídico da relação contratual em tempos atuais.

RESUMO

O presente estudo discute a questão da generalização das normas sobre cláusulas abusivas dispostas no Código de Defesa do Consumidor. Propõe-se, inicialmente, uma análise de referenciais normativos como as cláusulas gerais do Código Civil e de princípios constitucionais, como o solidarismo e a justiça social, do que se conclui que a referida hipótese de aplicação teria como fundamento os preceitos constitucionais dos quais decorre a função social do contrato. Em seguida, discute-se o problema da amplitude semântica das cláusulas gerais do Código Civil, do que decorre o problema da discricionariedade na aplicação imediata dessas normas, que se afigura incompatível com as exigências impostas pela ordem constitucional democrática. Por fim, investiga-se a questão das condições de possibilidade de incidência de cláusulas abusivas nas relações contratuais de direito civil e empresarial, considerando uma progressiva generalização desse instituto típico do direito do consumidor, transcendendo, assim, seu campo de aplicação originário.

Palavras-chave: Liberdade contratual.  Função social dos contratos. Cláusulas abusivas


1.INTRODUÇÃO

O contrato é um pressuposto lógico da vida em sociedade. Toda a convivência entre os membros de um grupo social se baseia e se concretiza em acordos de vontade. Nesse sentido, não há dúvida de que a liberdade de contratar, ou, mais especificamente, a liberdade contratual, isto é, a liberdade para definir o conteúdo do contrato, deve ser garantida aos indivíduos. Pois o Estado não pode tolher irrestritamente a autonomia da vontade dos contratantes, a qual possibilita o desenvolvimento de toda uma rede de relacionamentos entre os componentes de todo e qualquer grupo social. Decerto, tais acordos de vontade representam algo intrínseco à vida em sociedade.

Entretanto, para dar equilíbrio a essas relações sociais, evitando que prevaleça a “tirania” dos indivíduos mais fortes sobre os mais fracos, a ordem jurídica estabelece limitações à liberdade de contratar (e contratual). Essas limitações vão se estabelecendo gradualmente, no curso natural da evolução histórica do direito, que acompanha, certamente, a própria evolução das condições possibilitadoras e condicionantes dos arranjos sociais predominantes em cada época e em cada momento histórico. Assim, as sociedades vão, ao longo dos tempos, definindo uma moldura jurídica, em cujos limites os indivíduos exercem o direito de celebrar seus contratos.

Negar essa historicidade seria negar a própria história dos institutos jurídicos. Basta lembrar que na antiguidade, ou mais precisamente, nas origens do direito romano, a célebre Lei das XII Tábuas concedia ao credor o direito de tornar escravo o devedor inadimplente, tendo assim o domínio do seu próprio corpo, e até mesmo, em determinadas situações, a Lei previa que o devedor inadimplente poderia ser “esquartejado” em tantos pedaços quantos fossem os credores[1]. Já nos dias de hoje, felizmente, superamos até mesmo a possibilidade da prisão civil por dívida (com exceção da dívida de natureza alimentícia).

Já na modernidade, em tempos do denominado Estado liberal, no pós-revolução francesa, a liberdade contratual consistiu em uma das mais amplas garantias individuais contra a ingerência estatal, erigindo-se como postulado fundamental do direito moderno, amparado no individualismo racionalista, traço característico daquele período histórico.

Com as revoluções políticas, sociais e filosóficas ocorridas no sec. XX, sobretudo a partir do segundo pós-guerra, das quais exsurge a noção de Estado Social Democrático de Direito, pode-se constatar uma importante reviravolta paradigmática operada nas sociedades contemporâneas da tradição ocidental, especialmente no que se refere ao sentido da liberdade contratual, vale dizer, tal princípio (ou postulado) passou a ser dirigido e pautado por normas de direitos fundamentais, do que se fez surgir a ideia de função social do contrato, dentro de uma nova perspectiva de eficácia das normas constitucionais, o que muitos passaram a denominar constitucionalização do direito privado.

A função social do contrato, limitadora da liberdade de contratar, está expressa no art. 421 do Código Civil[2] (BRASIL, 2012) e decorre de princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho e da livre iniciativa, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a redução das desigualdades sociais, a busca pela erradicação da pobreza e da marginalização e a função social da propriedade.

Nesse sentido, a manutenção do equilíbrio contratual, consubstanciada na proteção ao contratante que se encontre em situação de desvantagem, passa a condição de pressuposto do negócio jurídico, isto é, é condição de validade do contrato.

Assim, toda estipulação contratual, ainda que regularmente emanada da vontade dos contratantes deverá estar em consonância com essa nova base principiológica.

Como exemplo dessa perspectiva de proteção temos o instituto das cláusulas abusivas, previstas no art. 51 do Código de Defesa do Consumidor – CDC (BRASIL, 2012), essenciais para a proteção do consumidor contra a abusividade contratual cometida pelo fornecedor numa relação de consumo. O art. 51 enumera, de forma não exaustiva, as hipóteses de cláusula abusiva e as declara nulas de pleno direito[3].

Nesse contexto, a questão controversa que se avulta diz respeito a uma possível incidência, definição e alcance das cláusulas abusivas nos contratos civis e empresariais, já que tais dispositivos estão previstos, expressamente, apenas no CDC. Parte expressiva da doutrina sustenta que as cláusulas abusivas estão limitadas às relações de consumo, aplicando-se, nos contratos civis, em caráter excepcional, somente aos contratos de adesão. Todavia, em sentido contrário, boa parte da doutrina, como veremos, considera possível a hipótese de aplicação a ser analisada neste estudo.

Desse modo, o problema a ser enfrentado em nosso estudo consiste na seguinte indagação: haveria a possibilidade de reconhecimento de cláusulas contratuais abusivas nas relações jurídicas privadas, regidas pelo direito civil e empresarial? E, em tal hipótese, quais as possibilidades para a identificação dos elementos caracterizadores de tais cláusulas?

É, portanto, o que se analisará neste breve estudo, inicialmente, empreendendo-se um exame do princípio da função social do contrato e de sua relação com o instituto das cláusulas abusivas, seguindo-se então a apreciação específica das condições de possibilidade da incidência de cláusulas abusivas nas relações civis e empresariais.


2.A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS COMO FUNDAMENTO PARA O RECONHECIMENTO DE ABUSIVIDADE NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS

O contrato é a mais importante fonte de obrigações, e seus efeitos são disciplinados pela lei (GONÇALVES, 2009, p. 2), sendo a vontade humana o seu fundamento ético, desde que essa vontade atue em conformidade com a ordem jurídica (PEREIRA, 2005, apud GONÇALVES, 2009, p. 2). Evidentemente, as limitações impostas à liberdade contratual, ou, de modo mais amplo, ao próprio princípio da autonomia da vontade, consistem em aspecto nuclear e essencial de todo e qualquer ordenamento jurídico.

 Muito embora esse princípio tenha sido elevado a mais alta categoria de postulados da ciência jurídica em tempos recentes, pode-se dizer, até mesmo de forma dogmática, em um período histórico caracterizado pela preponderância de ideologias individualistas e da doutrina liberal, fortemente manifestadas nas estruturas jurídicas dos Estados do pós-revolução francesa[4], não se há, todavia, como assentir aos indivíduos uma liberdade absoluta para contratar. Até mesmo nesses períodos de uma quase supremacia da autonomia da vontade, a ordem jurídica tem atuado na determinação dos limites da liberdade conferida aos indivíduos em suas relações contratuais, limites esses, que, obviamente, seguem parâmetros definidos pelos princípios norteadores de cada ordenamento.

Decerto, no século XIX prevaleceu o individualismo, manifestado na clássica concepção do contrato como uma declaração de vontade destinada a produzir efeitos jurídicos, mormente a teoria de Savigny, dentre outros. Nos dias atuais, entretanto, prevalece o solidarismo, fortemente explicitado nas teorias contratuais vinculadas ao constitucionalismo contemporâneo, considerando-se o termo no sentido de preeminência do texto constitucional na consolidação dos direitos fundamentais, bem como em seu caráter inovador, como assevera Lenio Streck, de influência na determinação de aspectos de constitucionalização de direitos e, sobretudo, na obrigatoriedade de interpretação das leis a partir de uma compreensão constitucional do direito. (STRECK, 2004, p. 101).

A própria concepção de Rousseau (2002, p. 25 e 26) em sua formulação da clássica teoria do contrato social, não obstante sua influência no pensamento iluminista, aponta nesse sentido de uma espécie de pacto de solidariedade como fundamento da vida em sociedade:

Cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda sua autoridade, sob o comando supremo da vontade geral, e recebemos em conjunto cada membro como parte indivisível do todo. Logo, ao invés da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação produz um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quanto a assembleia de vozes, o qual recebe desse mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade.

Decerto, contemporaneamente, a noção de liberdade contratual tem se submetido a uma séria mudança de paradigmas, numa profunda reviravolta principiológica, em que saltamos da exaltação de “dogmas como a obrigatoriedade das convenções e a equiparação da vontade das partes à força da lei” (GOMES, 1997, apud SARDAS, 2008) para uma nova concepção das relações contratuais, com a ascensão da denominada função social dos contratos, assentada não somente nas cláusulas gerais do direito civil, como a boa-fé objetiva e o equilíbrio contratual, mas também, e fundamentalmente, nos princípios constitucionais característicos do Estado Social Democrático de Direito, máxime o solidarismo e a justiça social, assim como os direitos fundamentais a estes vinculados.

Essa fundamentação é firmemente atrelada à teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais (Drittwirkung der Grundrechte), teoria de origem alemã[5], que afirma a eficácia de direitos constitucionais nas relações jurídicas privadas, partindo da evidente constatação de que “na sociedade moderna determinados grupos dispõem de poder social e econômico capaz de afetar intensamente as relações interprivadas e os direitos e interesses essenciais dos indivíduos.” (GUEDES, 2012, p. 11).

Decerto, um consenso sobre o sentido e alcance dessa teoria ainda se mostra distante, seja na Alemanha, ou em quaisquer dos países onde a teoria teve repercussão. Discute-se, então, até que ponto os direitos fundamentais podem e devem interferir nas relações jurídicas de natureza privada. Contudo, parece-nos inegável o fato de que normas constitucionais devem, efetivamente, atingir toda e qualquer relação jurídica.

Conforme se afirma na formulação original da Drittwirkung, há uma dupla dimensão nos direitos fundamentais: a tradicional significação de direitos subjetivos públicos; e a condição de princípios objetivos informadores da totalidade do ordenamento, inclusive o direito privado. A Drittwirkung seria, portanto, a consequência lógica das transformações ocorridas no âmbito do Estado Social de Direito. (ESTRADA, apud VALE, 2004.).

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Nesse sentido, eloquente e esclarecedora é a lição do Min. Gilmar Ferreira Mendes[6]:

A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas em tema de liberdades fundamentais.

A necessidade de limitações jurídicas à autonomia privada se acentua frente à moderna noção de Estado Social, no âmbito do constitucionalismo contemporâneo, em que o Estado, por meio de uma ordem constitucional democraticamente estabelecida, passa a atuar não mais com uma simples função de jurisdição (no sentido estrito da segurança jurídica) e de defesa, mas sim como efetivo garantidor dos direitos fundamentais e como transformador das condições sócio-econômicas, máxime os direitos sociais, nos quais depositamos todas as expectativas de transformação das condições de vida da população.

Nas palavras do mestre Bonavides (2009, p. 188), “o velho liberalismo, na estreiteza de sua formulação habitual, não pôde resolver o problema essencial de ordem econômica das vastas camadas proletárias da sociedade”. Em face da inoperância da ideologia liberal frente às contradições sociais que assolavam os sujeitos menos favorecidos e conduziam ao irremediável desequilíbrio da sociedade moderna, exsurge o Estado Social, que, em sua concepção jurídico-constitucional, visa à tutela da dignidade humana e da justiça social, de modo a, inevitavelmente, interferir mais profundamente nas relações sociais privadas. Seguindo na lição do Professor Bonavides (2009, p. 200), “o Estado social, por sua própria natureza, é um Estado intervencionista, que requer sempre a presença militante do poder político nas esferas sociais.”

Nesse contexto de atuação do direito na busca pela justiça social, que, não se pode negar, aplica-se também às relações de direito privado, pode-se, então, constatar uma importante alteração na situação jurídica dos contratantes, que não podem mais exercer seus interesses de modo alheio ao interesse coletivo. Assim, o conteúdo do contrato deve refletir as exigências da nova ordem, cabendo ao Estado disciplinar e corrigir as vontades das partes na medida em que possam vir a contrariar o interesse da coletividade. (SILVA, 2011).

Nessa concepção de Estado social democrático, rejeita-se a ideia de que a irrestrita liberdade contratual e a igualdade formal entre os indivíduos seriam capazes de garantir a dignidade do ser humano, fundamento máximo da nossa ordem jurídico-constitucional. Ao contrário, a busca pela igualdade fática e pelo efetivo equilíbrio nas relações contratuais são condições impostas pelo ordenamento. Voltemos à lição do ilustre Professor Bonavides (1998, p. 378), “o Estado social é enfim Estado produtor de igualdade fática.”

A função social dos contratos, portanto, funda-se na predominância da Constituição como unificadora do ordenamento e reguladora definitiva das relações jurídicas. Essa supremacia da Constituição é, enfim, condição para a conquista, ainda que tardia, das “promessas da modernidade”[7], sobretudo, a justiça social, o solidarismo, a erradicação da pobreza, a diminuição das desigualdades sociais, a função social da propriedade e a defesa do consumidor, dentre outros princípios consagrados na Lei Fundamental.

Na lição de José Afonso da Silva (2010, p. 144), ter por objetivo a construção de uma sociedade justa, livre e solidária, cf. art. 3º, I, CF (BRASIL, 2012), significa apontar para uma realidade humanista de fundo igualitário, de superação de conflitos e de integração social. Nesse sentido, merece destaque, no texto constitucional, o caput do art. 170: “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”. (BRASIL, 2012).

Ademais, as cláusulas gerais do nosso Código Civil expressam a nova ordem regente das relações contratuais, nos termos do art. 421: “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”, bem como o art. 422: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”, e ainda no parágrafo único do art. 2.035: “nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”.(BRASIL, 2012).

Conforme observa Gonçalves (2009, p. 5), a concepção social do contrato, um dos pilares da moderna teoria contratual, tem por escopo a promoção de uma justiça comutativa, aplainando as desigualdades substanciais entre os contratantes. E nesse sentido, assevera o Professor Miguel Reale, na exposição de motivos do atual Código Civil: “firme consciência ética da realidade sócio-econômica norteia a revisão das regras gerais sobre a formação dos contratos e a garantia de sua execução equitativa.”

Ora, o que se pode (e se deve) entender por garantia de uma execução equitativa do contrato, referida pelo Professor Miguel Reale, consiste numa busca por aqueles objetivos dispostos no texto constitucional de solidarismo e justiça social e da igualdade (art. 3º, I, e art. 5º, caput, CF, Brasil, 2012), dentre outros princípios da Lei Maior. Portanto, o direito regula as relações civis no sentido de diminuir as desigualdades econômicas e sociais entre os indivíduos, tendo em vista a busca pela garantia da justiça social nessas relações.

Nesse sentido, pode-se asseverar que o reconhecimento de situações abusivas nas relações contratuais, ainda que não se tratem de relações de consumo, tem como pressuposto, como base principiológica e interpretativa, o princípio da função social do contrato, decorrente dos princípios constitucionais já referidos. Ademais, há de se considerar que toda compreensão jurídica exige um fundamento constitucional, o que, nesse caso, parece estar adequadamente evidenciado.


4.O PROBLEMA DA DISCRICIONARIEDAE NA APLICAÇÃO DA CLÁUSULAS GERAIS

Ressalte-se, porém, que não se afirma com isso uma opção pela aplicação direta das cláusulas gerais (ou abertas, ou conceitos indeterminados) aos contratos civis de modo a conferir ao julgador uma ampla discricionariedade na definição do conteúdo daquilo que seria uma relação contratual compatível com a função social dos contratos. Enfim, consentir que a simples declaração pelo julgador de que tal contrato, ou tal cláusula contratual é injusta, ou não equitativa, ou simplesmente abusiva, com base unicamente no conceito indeterminado das cláusulas gerais do Código Civil, seria apostar na discricionariedade judicial, enfim, um perigoso convite à arbitrariedade.

Noutro sentido, deve-se ressaltar que a democracia não é discricionária. A democracia, ao contrário, busca no Direito uma proteção contra a discricionariedade, baseada no respeito à lei e em uma decisão de caráter intersubjetivo definidora e construtora dos fundamentos, objetivos e princípios prevalentes no convívio entre os membros de uma sociedade. No Estado Social Democrático de Direito essa decisão é projetada (e legitimada) na Lei Fundamental. A democracia, portanto, funda-se nessa decisão intersubjetiva, que antecipa os sentidos possíveis, isto é, consiste numa atribuição e produção de sentidos que se antecipa ao aplicador do direito, de modo a se garantir a normatividade e efetividade da Lei Maior.

É nesse sentido, de respeito a essa decisão democrática projetada na Constituição, que o dever de fundamentação de toda decisão judicial disposto no art. 93, IX, CF[8] (BRASIL, 2012) exige uma explicitação dos motivos determinantes da sentença, isenta de vaguezas, ambiguidades ou obscuridades, vale dizer, pressupõe (e exige) um dever do julgador de convencer a sociedade sobre o acerto da sentença proferida (STRECK, 2011, p. 635).

Ora, não se convence com vaguezas, e afinal, é preciso superar a ilusão de que o convencimento somente tem de se dar na consciência do magistrado. Pensar assim, repita-se é apostar no solipsismo, o que pode representar um perigoso e indesejável convite ao autoritarismo, enfim, apostar na consciência do julgador como instância definitiva de solução dos problemas jurídicos não é compatível com sistema democrático constitucional que adotamos. Nesse sentido, vale citar, novamente, Lênio Streck (2010, p. 56): “em regimes e sistemas jurídicos democráticos, não há mais espaço para que a 'convicção pessoal do juiz' seja o 'critério' para resolver as indeterminações da lei, enfim, 'os casos difíceis'.”

Portanto, uma aplicação do direito no sentido de superação das desigualdades nas relações contratuais, garantindo sua composição e execução equitativa, pressupõe não somente a aplicação das cláusulas gerais, mas, sobretudo, a construção de uma precisa e adequada fundamentação de aplicação/interpretação baseada na Lei e na Constituição, de modo a garantir em cada caso concreto, uma inequívoca explicitação de que existe ali uma situação de desequilíbrio justificadora de uma intervenção do Direito em favor do contratante mais fraco, a fim de estabelecer uma situação contratual tendente ao equilíbrio.

Não se deve acatar também o velho argumento de justificação da discricionariedade judicial baseado no confronto que teria de um lado o juiz que decide com base nos princípios, “por equidade”, e do outro o “juiz boca da lei”. Poupemo-nos dessas “descobertas”. Afinal, se por um lado os últimos duzentos anos de teoria do direito serviram para sepultar o tal “juiz boca da lei”, o positivismo que aqui se critica, o positivismo normativista, que é decisionista e discricionário, é o próprio superador do positivismo exegético, do tal “boca da lei”.

Referimo-nos, pois, a uma superação do decisionismo do positivismo normativista, o qual se baseia no uso dos princípios como um instrumento de abertura semântica que daria ao julgador uma ampla discricionariedade para decidir “conforme sua consciência”, ou, nos moldes das teorias da argumentação, por meio de uma “ponderação” de princípios, de modo que a decisão permanece submisa ao solipsismo de quem pondera. Essa superação, enfim, pode (e deve) ter na própria Constituição o seu locus de compreensão e unidade de sentidos.

Decerto, depois de tantas conquistas no direito, mormente os avanços possibilitados e impulsionados pela nossa Constituição democrática dirigente compromissória, com sua pretensão de promoção da justiça social e de transformação da sociedade, seria descabido e,  como bem ressalta Lênio Streck (2011, p. 36), sem sentido, que apostássemos as nossas esperanças de realização dessas conquistas do direito na “loteria do protagonismo judicial”.

Nas palavras de Streck (2011, p. 39): “é preciso compreender a discricionariedade com sendo o poder arbitrário 'delegado' em favor do juiz para 'preencher' os espaços da 'zona de penumbra' do modelo de regras”.

Conforme adverte Dworkin, essa discricionariedade, em sentido forte, implica a incontrolabilidade da decisão judicial nos termos de um padrão antecipadamente estabelecido, no que se assenta a crítica de Dworkin ao positivismo de Hart, que afirma ter o juiz um poder decidir discricionariamente sempre que não lhe esteja disponível uma regra clara e preestabelecida (STRECK, 2011, p. 42-43). Essa abertura de sentido e essa falta de controle de conteúdo, portanto, aproximam perigosamente a decisão judicial discricionária da decisão arbitrária, e isso, repita-se, é deletério às conquistas da democracia.

Não basta, portanto, dizer simplesmente que o contrato não está cumprindo sua função social e, por isso, declará-lo nulo, ou declarar nula (s) alguma (s) de suas cláusulas. Isso seria uma forma extrema de discricionariedade, não legitimada no âmbito da democracia. É preciso que haja em cada ato decisório uma configuração suficiente para que o grau certeza do direito aplicado possa ser aferida, ou seja, a decisão tem de ser controlável, pois todo ato impassível de controle representa um lugar aberto e receptivo à arbitrariedade, ao autoritarismo.

É nesse contexto que se ressalta a questão da coerência e integridade do direito, no sentido proposto por Dworkin (2007, p. 271-273), de que a integridade do direito exige uma prática jurídica que identifique direitos e deveres legais que se evolvem e se desenvolvem em continuidade com passado e futuro, como se fossem obra de um único autor, a própria comunidade jurídica em seu conjunto, uma integridade que se configura ao mesmo tempo como produto e fonte da prática jurídica, capaz, assim, de garantir que uma decisão judicial possa ser considerada como uma decisão de toda a comunidade jurídica, no sentido de que aquele sujeito, naquela situação, é titular daquele direito, ou daquele dever.

Com isso, deve-se considerar que uma aplicação direta (imediata) das cláusulas gerais pode representar uma perigosa abertura semântica incapaz de oferecer um possível caminho para aplicação do direito que contemple essa integridade, que, ao menos, caminhe no sentido de construção de critérios harmonicos para a interpretação dessa problemática.

Observando, pois, questões suscitadas por parte da doutrina, quanto às hipóteses de aplicação direta das cláusulas gerais, é relevante aduzir, v.g., o que expõe Nery Júnior (apud GONÇALVES, 2009, p. 8), ao afirmar que diante do que se apresentar no caso concreto, e por ser de ordem pública a norma do art. 421, o juiz poderá declarar a nulidade do contrato com base no art. 166, VI, CC[9]  (BRASIL, 2012).

Dito de outro modo, ao aplicar a cláusula geral do art. 421, CC (BRASIL, 2012), o juiz poderia declarar a nulidade do negócio jurídico, preenchendo o conteúdo aberto do texto do art. 421, CC, por meio de uma discricionária atribuição de sentido, é o que se poderia depreender do referido trecho, considerando, evidentemente, sua leitura de forma isolada, ressalte-se, apenas para nos servir como exemplo, e tendo em vista, ainda, o que supõe a própria amplitude semântica da norma.

Como se pode notar, não se trata aqui de uma crítica à doutrina do eminente jurista, o qual, aliás, adota claro posicionamento contra as diversas formas de decisionismos e ativismos judiciais[10]. Decerto, Nery Júnior aponta para uma possibilidade de aplicação das cláusulas gerais que merece, evidentemente, ser seriamente considerada. Diante, portanto, das condições que se apresentam no caso concreto, deve-se buscar uma solução que contemple uma devida adequação à função social do contrato.

Ademais, é preciso anotar que na própria doutrina de Nery Junior (2003, p. 427), conforme exposta por Gonçalves (2009, p. 8), busca-se uma delimitação teórica para esta hipótese de aplicação do art. 421, ao afirmar-se que “o contrato estará conformado à sua função social quando as partes se pautarem pelos valores da solidariedade, da justiça social, da livre iniciativa, for respeitada a dignidade da pessoa humana e não se ferirem valores ambientais”. No mesmo trecho, vê-se um esboço traçado por Nery Junior, de forma exemplificativa, do que seria o desatendimento da função social do contrato, nas situações em que: “a prestação de uma das partes for exagerada ou desproporcional, extrapolando a álea normal do contrato; quando houver vantagem exagerada para uma das partes; ou quando se quebrar a base objetiva ou subjetiva do contrato.”

Note-se, contudo, que nesse esboço permanece a questão da abertura semântica, isto é, como se definir o que é prestação ou vantagem exagerada? Como definir o que seria a quebra da base objetiva ou subjetiva do contrato? Qual a relação desses conceitos com o texto normativo? E qual a relação e a posição desses conceitos no âmbito da integridade do direito?

Enfim, todas essas questões precisam ser suficiente e constitucionalmente respondidas, ou seja, não se há como negar que essa hipótese é dependente de uma adequada fundamentação do ato de aplicação, assentada em preceitos constitucionais, com a descrição e delimitação, nos termos legais, da situação exata de desequilíbrio contratual, sob pena de configurar uma aposta na discricionariedade, sobretudo, se considerarmos que em nosso ordenamento ainda convivemos com a primazia do “livre convencimento” do julgador. Por oportuno, a esse respeito, indispensáveis são os ensinamentos de Lênio Streck (2008):

Sob outra perspectiva, esse fenômeno se repete no direito civil, a partir da defesa, por parte da maioria da doutrina, do poder interpretativo dos juízes nas cláusulas gerais, que devem ser preenchidas com amplo “subjetivismo” e “ideologicamente”; no processo penal, não passa despercebida a continuidade da força do “princípio” da verdade real e do livre convencimento; já no direito constitucional, essa perspectiva é perceptível pela utilização descriteriosa dos princípios, transformados em “álibis persuasivos”; com isso, cinde-se a interpretação: para os casos fáceis, aplicam-se as regras mediante a subsunção (sic); já os casos difíceis abrem espaço para o uso da ponderação de princípios (como se pondera, afinal?), circunstância que, uma vez mais, fortalece o protagonismo judicial.

Assim, na hipótese de aplicação do art. 421, CC (BRASIL, 2012), fundada no subjetivismo e no simples convencimento do julgador, corre-se o risco (é importante que se repita) de se infligir a “legitimação” de decisões judiciais arbitrárias.

É no mínimo temerário outorgar ao julgador tanta amplitude de atribuição de sentido para determinar se uma cláusula contratual está ou não cumprindo sua função social, e com essa interpretação, “por equidade”, construir a norma aplicável ao caso concreto, e dizer, com isso, se o contrato é válido ou não. Seria, enfim, algo como uma “desmesurada moldura semântica”, lembrando o conceito da moldura kelseniana[11], exposta no célebre capítulo VIII da Teoria Pura do Direito, um conceito de interpretação jurídica que há muito permanece consagrado e amplamente aplicado no direito brasileiro.

Enfim, pode-se afirmar que nas cláusulas gerais do CC, constitutivas da noção de função social do contrato, e nos princípios constitucionais da igualdade, solidarismo e justiça social, há de se encontrar os fundamentos para aplicação do instituto das cláusulas abusivas nas relações civis e empresariais.

No entanto, é preciso investigar e delimitar cuidadosamente o alcance dessa hipótese específica de aplicação, dentro dos parâmetros traçados no ordenamento, fundamentados, também, na Constituição, o que demandaria, além de uma prévia e adequada compreensão das cláusulas abusivas, um processo hermenêutico de construção de proposições jurídicas capazes de oferecer uma noção satisfatória dessa nova hipótese de aplicação. A indagação inevitável, portanto, é a seguinte: seria possível chegar-se seguramente a tais proposições?

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Sobre o autor
Luis Alberto da Costa

Auditor Fiscal da Receita Estadual do Ceará.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Luis Alberto. O processo de generalização das cláusulas abusivas sob a perspectiva da função social dos contratos . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3247, 22 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21835. Acesso em: 16 abr. 2024.

Mais informações

Artigo originalmente publicado no livro "A constitucionalização do direito privado: o Estado Democrático de Direito e as novas perspectivas jurídicas nas relações privadas". Organizadoras: Paula Maria Tecles Lara e Renata Furtado de Barros. Raleigh, Carolina do Norte, Estados Unidos da América: Lulu Publishing, 2012, pp. 497-534. Obra organizada e coordenada pela Academia Brasileira de Produção Jurídica Discente.

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