4 QUANTUM INDENIZATÓRIO E A CULTURA DA MERCANTILIZAÇÃO DO DANO MORAL
Dois importantes desafios devem ser expostos neste trabalho a respeito dos pleitos por danos morais. O primeiro, direcionado ao Poder Judiciário, consiste na dificuldade de se aferir o que configura ou não dano moral e a sua quantificação. O segundo, direcionado à sociedade, consiste na difusão da ideologia social de que o dano moral poderia ser utilizado como instrumento de mercantilização.
Quanto ao primeiro, percebe-se que fixar o quantum a ser restituído à vítima em caso de danos materiais, em regra, não suscita dúvidas. Porém, o mesmo não ocorre quando se trata de dano moral. E, sob este aspecto o instituto enfrenta sérias polêmicas.
Aponta a jurisprudência que os critérios de valoração pecuniária do dano moral não são uniformes, cabendo ao magistrado defini-lo conforme cada caso concreto:
EMENTA: AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - AQUISIÇÃO DE PRODUTO VIA INTERNET - FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO - CONFIGURAÇÃO - DEVER DE INDENIZAR RECONHECIDO - DANO MORAL - QUANTUM INDENIZATÓRIO - CRITÉRIO - MODERAÇÃO. O fornecedor responde, independente da comprovação de culpa, pelos danos causados aos consumidores em razão dos defeitos relativos aos serviços prestados. O cancelamento prematuro do cadastro de consumidor pelo fornecedor de serviços que intermedeia transação de compra e venda via internet, bem como a ausência de devolução dos valores depositados por aquele, configura defeito na prestação do serviço, sendo devida a indenização por danos materiais e morais. À falta de critérios objetivos, deve o juiz agir com prudência ao fixar o quantum indenizatório, atendendo às peculiaridades do caso sob julgamento e à repercussão econômica da indenização, de modo que o valor não deve ser nem tão grande que se converta em fonte de enriquecimento, nem tão pequeno que se torne inexpressivo.
(...)Sendo assim, é necessário estabelecer parâmetros objetivos ao arbitramento do valor da indenização, tais como, as circunstâncias do caso concreto, o grau da culpa do agente, sua condição econômica e a extensão do prejuízo suportado pelo ofendido. Ademais, não se deve esquecer que a indenização consiste, ao mesmo tempo, em uma reprimenda pelo ato ilícito do ofensor e uma compensação pelo sofrimento do ofendido. Tendo, portanto, caráter pedagógico e reparatório. (TJMG. AC n° 1.0024.06.199230-1/001. Rel: Des.(a) Viçoso Rodrigues. Julg: 04/09/2007. Public.: 15/09/2007)
Como resultado, muitas das sentenças revelam discrepância de atribuição aos valores indenizatórios, fixando indenizações maiores para danos morais menores, como denotam os exemplos abaixo:
A dor de uma advogada que teve seu nome relacionado ao da ex-garota de programa Bruna Surfistinha no Google vale muito mais que a dos pais que perderam a filha de três anos assassinada durante uma briga familiar. A conclusão pode ser tirada da etiqueta de preço colocada pela primeira instância nos dois processos de indenização por danos morais.
Enquanto a advogada conseguiu uma indenização de R$ 4,3 milhões, a quantia fixada para os pais da menina foi de R$ 30 mil. A falta de parâmetros em processos de danos morais dá margem à subjetividade dos juízes de primeira instância na hora de arbitrar indenizações e as discrepâncias correm soltas em casos concretos semelhantes.
O valor do sofrimento de uma mãe que teve sua filha assassinada por outra criança no Rio Grande do Sul foi fixado em R$ 20 mil na primeira instância. Os pais da criança que atirou foram condenados a indenizar porque, segundo os juízes, foram negligentes ao deixar a arma ao alcance da criança. Os pais da vítima recorreram ao Tribunal de Justiça gaúcho. O valor foi aumentado apenas em R$ 10 mil. Passou de R$ 20 mil para R$ 30 mil.
Em outro caso, a Justiça entendeu que difamar uma namorada por e-mail custa R$ 30 mil. O ex-namorado da moça foi condenado por enviar mensagens eletrônicas afirmando que a ex era “garota de programa”. A ex-namorada ajuizou ação na Comarca de Porto Alegre. Alegou que recebeu diversas ligações telefônicas de pessoas que queriam contratá-la para programas sexuais.
Valor muito mais alto foi dado a uma cliente do Itaú confundida com uma ladra de banco. A juíza Lucilia Ferreira Lammertz, da 33ª Vara Cível do Rio de Janeiro, avaliou o abalo em R$ 200 mil. Para a juíza, é preciso ter mais respeito à honra alheia.
Já a família da servidora Sebastiana Monteiro dos Santos, que morreu em conseqüência de erro médico num hospital público do Distrito Federal, deve receber apenas R$ 40 mil do estado. Isso se não recorrer às instâncias superiores para aumentar o valor. A servidora morreu depois que um auxiliar de enfermagem, em vez de aplicar 0,3 mililitros de adrenalina por via subcutânea, injetou 3 mililitros de remédio na veia da paciente. Detalhe: a servidora deu entrada no hospital reclamando somente de coceira no pescoço.
A dor de um advogado ferido numa corrida de kart foi mais valorizada na 1ª Vara Cível de Belo Horizonte. A primeira instância condenou a empresa a indenizar o advogado em R$ 41.281,88. A empresa foi considerada negligente e culpada pelo acidente que provocou graves ferimentos. Segundo os juízes, a empresa não orientou a forma como o kart deveria ser conduzido. (PINHO; MILÍCIO, 2007, p.01)
Além disso, muitas das vezes, os valores fixados representam quantias ainda muito tímidas perante o poderio econômico das empresas, fazendo com que estas continuem a lesar os consumidores. Sob este aspecto, alguns estudiosos entendem necessário proceder a uma mudança de foco na responsabilidade civil pátria, de modo a deixar de analisar tão somente a figura da vítima e passar a ter olhos também para a conduta do agressor, alcançando um juízo mais abrangente. Ou seja, “a adoção do valor de desestímulo sobre a indenização imposta possibilita a conscientização do ofensor de que aquela conduta perpetrada é reprovada pelo ordenamento jurídico, de tal sorte que não volte a reincidir no ilícito”. E, deste modo, através da adoção desestimuladora seria possível estabelecer na prática não somente a função reparatória/compensatória, mas também a desestimuladora/preventiva, coibindo o ofensor a não mais repetir o ato ilícito. (OLIVEIRA, 2012, p.01)
Quando ao segundo, mais modernamente, percebe-se que, na ideologia social, é prática comum a existência de pedidos sem quaisquer embasamentos legais e, ainda, englobando somas pecuniárias[18] absurdas, ficando explícita a manifestação da tentativa de utilizar-se do dano moral como instrumento de mercantilização:
Hoje, praticamente quase tudo pode ser causa de dano moral: é o anúncio publicado em página diversa daquela que deveria ser; é a perda do embarque do passageiro por troca de terminal 30 minutos antes da hora do seu embarque; é a latinha de cerveja ou de refrigerante que contém uma quantidade inferior à indicada em sua embalagem; é o caso de inadimplentes com instituições que tiveram seus nomes negativados perante os órgãos de proteção ao crédito, sentindo-se ofendido pelo lançamento de seus nomes no rol de inadimplentes. Tais situações, feitas apenas a título de exemplo, espelham muito bem como é "visto" o dano moral no sistema jurídico do país.
Infelizmente, o Poder Judiciário tem utilizado de forma instigada a aplicação do dano moral para todo e qualquer fato, o que inexoravelmente vem causando verdadeira banalização desse instituto. Embora o termo seja pesado o fato é que a aplicação de forma reiterada tem trazido, sobretudo às empresas verdadeiros prejuízos. Esse ato de condenar por condenar, tornou-se, em muitos casos, verdadeira prática de comércio.
Portanto, é bom frisar que se a intenção do legislador era a de reparar de alguma forma a ofensa ou mácula causada no íntimo ou psique do ofendido, atualmente, com a aplicação inveterada desse instituto acabou gerando um certo oportunismo corroborando a ideia de existir hoje uma verdadeira indústria do dano moral. (GALVANI, 2009, p.01)
O ético descaracteriza-se enquanto reparação de natureza moral para se traduzir em ressarcimento material. Em outras palavras, “o dano moral é significativo não para reparar a ofensa à honra e a outros valores éticos, sim para acrescer alguns trocados ao patrimônio do felizardo que foi moralmente (?) enxovalhado”. Torna-se necessário refletir sobre que relação traduzível em dinheiro existe entre a ofensa e as pessoas do ofensor e ofendido. No mundo capitalista, até a honra tem um valor de mercado. (PASSOS, p. 01, 2002)
Pode-se concluir que os dois problemas acima expostos desvirtuam a real finalidade do instituto do dano moral.
É inteiramente pertinente a afirmação do Desembargador Décio Antônio Erpen (apud Perin, 2002, p.11)
Sem uma definição científica do que seja, realmente, o dano moral, sem uma norma estabelecendo as áreas de abrangência e, sem parâmetros legais para a sua quantificação, permite-se o perigoso e imprevisível subjetivismo do pleito, colocando o juiz numa posição de desconforto. Ele que deve ser o executivo da norma, passou a personalizá-la.
A prevalecer o instituto sem critérios legais definidos, os profissionais, em especial os prestadores de serviço, exercerão seu mister com sobressalto; os produtores não resistirão às indenizações de valores imprevisíveis. Sequer as seguradoras assumirão a cobertura ante a ausência de um referencial para a elaboração dos cálculos. Enfim, toda a sociedade estará submetida ao subjetivismo, o que conspira contra um valor supremo do direito, a segurança jurídica.
A corrente belicosa, se vitoriosa, gerará uma sociedade intolerante, na qual se promoverá o ódio, a rivalidade, a busca de vantagens sobre outrem ou até a exaltação ao narcisismo. A promissora indústria do dano levará a esse triste quadro.(..)”
Para uns, além da discrepância na atribuição dos valores por parte dos juízes, na prática, há predominância de fixação de indenização em valores muito baixos e, em alguns casos, até mesmo “mesquinho”, considerando o porte da empresa e a intensidade do dolo corporativo. Por outra via, atualmente, fala-se muito em massificação do dano moral. Ou seja, o entendimento é que “se a Justiça começar a conceder indenizações elevadas, a demanda vai aumentar porque as pessoas vão querer buscar valores milionários, deixando o Judiciário ainda mais afogado.” (AMARANTE, 2008, p.01)
5 DANO MORAL E USO ABUSIVO DO DIREITO DE AÇÃO NAS RELAÇÕES DE CONSUMO: UMA INVERSÃO DE VALORES
Como já apontado, no ordenamento jurídico pátrio, o direito de ação e o direito de reparação em face do dano moral são constitucionalmente garantidos, e, através destes, todos que se sentiram lesionados estão autorizados a buscar a tutela jurisdicional. Contudo, muito embora se trate de garantias constitucionais ínsitas ao Estado Democrático de Direito da ordem de 1988, diversas pessoas se utilizam deles de maneira abusiva. E, embora à primeira vista talvez não seja possível notar, na verdade é toda a sociedade quem perde com isso:
O Direito é um sistema, não é racional-dedutivo, mas nutre-se com os casos e os conflitos que constituem sua razão de ser.
A análise de casos é enriquecedora e realista, mas pode levar ao caos social se a única perspectiva são os interesses dos indivíduos. É necessário conhecer quais os benefícios ou prejuízos que sofre a sociedade, que é o terceiro ausente no conflito bilateral, sendo imprescindível dispor de uma perspectiva sistemática. (LORENZETTI, 1998, p.448)
Todas essas explanações conduzem à reflexão de que, apesar de toda a evolução do dano moral no ordenamento jurídico brasileiro, o seu futuro revela-se ainda incerto. Enquanto que, para se chegar ao reconhecimento do dano moral pela norma constitucional precisou-se despatrimonializar a forma de ver o humano, futuramente precisar-se-á descapitalizar a forma de ver o dano moral[19].
O abuso do exercício do direito de ação acaba congestionando o Judiciário e gerando demora na prestação jurisdicional. Com isso, geram-se gastos e desgastes psicológicos dos partícipes da lide, além de refletir diretamente no congestionamento processual nos tribunais, como bem pontuado na seguinte jurisprudência:
Os Tribunais brasileiros, sobretudo os Tribunais Superiores, estão abarrotados de demandas retóricas, sem a menor perspectiva científica de sucesso. Essa prática é perversa, pois além de onerar sobremaneira o erário público - dinheiro que poderia ser empregado em prestações do Estado - torna todo o sistema brasileiro de justiça mais lento e por isso injusto. Não foi por outro motivo que a duração razoável do processo teve de ser guindado ao nível constitucional. Os advogados, públicos e privados, juntamente com os administradores e gestores, têm o dever de se guiar com ética material no processo. A ética formal já não mais atende aos preceitos constitucionais do devido, eficaz e célere processo legal. A construção de uma Justiça célebre eficaz e justa é um dever coletivo, comunitário e vinculante, de todos os operadores do processo. A legitimação para o processo impõe o ônus público da lealdade processual, lealdade que transcende em muito a simples ética formal, pois desafia uma atitude de dignidade e fidelidade material aos argumentos. O processo é um instrumento dialógico por excelência, o que não significa que possa admitir toda ordem de argumentação. (TRT/3ª Reg., RO 0760/2008-112-03-00, 4ª T, Rel. Juiz Convocado José Eduardo de Resende Chaves Júnior, DJMG 21/2/2009)
Dessa maneira, tentar fazer do dano moral um instrumento de mercantilização somente servirá para banalizar a concepção social[20] do instituto que tanto demorou para ser reconhecido como tal pelo ordenamento jurídico. É preciso refletir seriamente sobre esta questão.
Conforme Schreiber (2009, p.191), às lesões a interesses não patrimoniais o ordenamento jurídico continua oferecendo como única resposta um remédio tradicional, de conteúdo patrimonial. O que se vê é uma inversão axiológica, através da qual invoca-se a dignidade da pessoa humana e interesses existenciais com vistas à obtenção de ganhos pecuniários. A isso, soma-se a consequência não do desenvolvimento social de ideologia reparatória, mas sim a inércia da comunidade jurídica ao oferecer como solução à vitima do dano o pagamento em dinheiro, estimulando sentimentos mercenários[21]. E ainda pior: manter um remédio exclusivamente pecuniário aos danos extrapatrimoniais, induz à ideia de que a lesão a interesses existenciais é a todos autorizada, desde que haja disposição em arcar com o preço correspondente.