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Acerca da relação dúbia entre prevenção e retribuição na pena criminal.

Uma análise sobre o sincretismo teleológico da individualização da pena e seus reflexos na legislação penal brasileira recente

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11/07/2012 às 15:55
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3. A função da pena no direito brasileiro: o art. 59, do Código Penal.

À vista de tudo quanto se expôs até agora, é possível uma rápida análise acerca da opção legislativa brasileira.

O Código Penal, no art. 59, expressa:

Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:

I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;

II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;

O citado dispositivo legal é, certamente, reflexo legislador da garantia constitucional da individualização da pena, já que importa que a dosagem da reprimenda penal não pode encaminhar em um só sentido, mas precisa cumprir a função “sincrética” de reunir em uma única oportunidade todos os desejos que se põe sobre a sanção penal.


4. Os reflexos do sincretismo na legislação penal brasileira

À vista de tudo quanto já se mencionou até aqui, algumas coisas já se fazem autoevidentes: existe uma relação de difícil composição entre prevenção e retribuição, tal como já exposto por Günter Jakobs, face a seus critérios norteadores incomponíveis, e esta conexão está presente no sistema jurídico-penal brasileiro. Assim, no ordenamento jurídico brasileiro propõe-se que uma mesma espécie de sanção cumpra a tarefa de punir o sujeito, retrospectivamente, pelo ato praticado; sirva de “lição” para os mais membros da comunidade jurídica, a partir do reconhecimento da importância dos valores sociais e, via de consequência, pelo receio da seriedade da reprimenda; e, por fim, que sirva ao próprio condenado como força dissuasiva de futuros comportamentos criminosos, repessoalizando o condenado pelo cumprimento da pena.

A adoção do sistema unitário pelo ordenamento jurídico brasileiro traz diversas conseqüências na legislação do país, criando, na maioria das vezes, situações incongruentes, diante da enorme dificuldade, ou mesmo, da impossibilidade, de se compatibilizar sistemas que não tem qualquer ponto em comum.

A seguir, passa-se a exemplos concretos, na legislação brasileira recém modificada, da incongruência tratada até aqui.

4.1. A Lei 11.464/07

Em sua redação original, a Lei 8.072/90, que regulamentou o tratamento penal para os crimes hediondos e assemelhados, previu que a pena privativa de liberdade fixada em razão do cometimento dessa espécie de crimes deveria ser cumprida em regime integralmente fechado. Disse André de Abreu Costa (2011) que

No contexto dessas restrições, um dos assuntos mais tormentosos e que já tiveram diversas tratativas diferentes por parte da legislação e da jurisprudência nacionais é a questão do regime de cumprimento da pena privativa de liberdade nos hediondos e assemelhados. Isto porque, a redação original da Lei 8.072/90 previa, no art. 2º, §1º, que “A pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado”; de sorte que o sentenciado por crime hediondo ou assemelhado a hediondo deveria cumprir sua reprimenda penal totalmente no citado regime, sem possibilidade de progressão de regime prisional.

Essa vedação legal prevaleceu no direito brasileiro, mesmo contra o posicionamento de setor importante da doutrina (COSTA, 2011[14]), até o ano de 2006, quando o STF, através do julgamento do Habeas Corpus 82.959-7/SP, entendeu pela inconstitucionalidade de tal vedação e passou aplicar para os crimes hediondos e assemelhados a mesma regra de progressão de regime vigente para os mais crimes, conforme art. 112, da Lei de Execução Penal. Assim, cumprido um sexto da pena e observados os mais requisitos, os condenados por crime hediondo também poderiam progredir de regime de cumprimento de pena privativa de liberdade.

Em 2007, a Lei 11.464 deu nova redação ao art. 2º, da Lei 8.072/90, dizendo que, para progredir de regime, os condenados por crimes hediondos e assemelhados deveriam cumprir dois quintos da pena, se primários; ou três quintos, se reincidentes. Isso significou, à evidência, tratamento mais severo dado a esse tipo de criminalidade.

Fazendo-se uma análise, rápida até, da forma como a mencionada lei tratou as hipóteses de crime hediondo e a possibilidade de progressão de regime, tomando como ponto de partida a decisão anterior do STF que conferia a possibilidade do benefício nos mesmos patamares para todas formas de criminalidade, vê-se que a lei é essencialmente de cunho retributivista, já que trata todos os crimes hediondos como necessitados de maior reprovação pela pena.

4.2. A Lei 12.433/11

A Lei n.º 12.433, recentemente inserida na ordem jurídica brasileira, ao tratar das possibilidades de remição da pena pelo estudo, alterou sensivelmente o entendimento doutrinário-jurisprudencial reinante e apresentou à comunidade jurídica brasileira um expressivo viés de prevenção especial positiva como há muito não se via em direito positivo.

A mencionada lei, ao reformar o art. 126, da Lei de Execução Penal, ampliou o espaço de alcance do benefício concedido ao apenado de, durante o cumprimento da reprimenda, poder abater no montante a cumprir certa quantidade em razão de estudar e/ou trabalhar.

Na redação original, a Lei de Execução Penal previa que, a cada três dias de trabalho do sentenciado, interno ou externo, abater-se-ia um dia de condenação. A partir, especialmente, da edição da Súmula 341, o Superior Tribunal de Justiça passou a reconhecer, também, como possível a remição pelo estudo formal. Dizia o citado enunciado que “A freqüência a curso de ensino formal é causa de remição de parte do tempo de execução de pena sob regime fechado ou semi-aberto.” O entendimento que se pacificou a partir da Súmula mencionada era de que a cada três dias de estudo em estabelecimento formal, haveria o abatimento de um dia na pena e que não haveria possibilidade de cumulação das formas de remição: pelo estudo e pelo trabalho. A realização das duas atividades importaria em apenas uma remição. De mencionar-se, também, que apenas a frequência a estabelecimento formal de ensino produziria o efeito do abatimento da pena.

Também no contexto da remição, na forma como estava no art. 126, da LEP, o Supremo Tribunal Federal era de entendimento, expressado pela Súmula Vinculante n.º 9, que “O disposto no art. 127 da Lei n.º 7.210/1984 (Lei de Execução Penal) foi recebido pela ordem constitucional vigente, e não se lhe aplica o limite temporal previsto no caput do art. 58.”. Isto significava que, havendo a prática de falta grave (art. 50, LEP), os dias remidos pelo trabalho ou pelo estudo seriam perdidos, sem limite de quantidade, ou seja, havia o zeramento do montante do benefício, vindo a iniciar-se outra contagem.

O novel texto legislativo, no entanto, em evidente inspiração preventivo-especial, modificou sensivelmente a sistemática da remição. Diz-se que em evidente inspiração preventivo-especial porque, em se tomando tal teoria como aquela que propõe a reinserção do sentenciado pela pena, que deveria oportunizar-lhe os meios para sua repessoalização, ao analisarem-se as novas regras trazidas pela Lei 12.433/11, é possível perceber claramente o caris preventivo.

É oportuno analisar as disposições, mesmo que brevemente e de modo geral.

O novo art. 126, da Lei de Execução Penal, dispõe que a cada doze horas de estudo, em qualquer dos níveis, mesmo telepresencialmente, divididas essas horas em, no mínimo três dias, reduziria um dia na pena do sentenciado. Até aí, de certa forma, a lei passou a trazer aquilo que a jurisprudência já sustentava. No entanto, o art. 126, já mencionado passou a prever que é possível a cumulação das duas formas de remição: pelo estudo e pelo trabalho (§3º), de sorte que, se o sentenciado, decide-se e tem a oportunidade de trabalhar e estudar, terá a possibilidade de reduzir em dois terços o tempo de sua pena a cumprir. É também novidade do citado dispositivo legal mencionado que, a cada conclusão de grau de instrução formal (§5º) o tempo a remir será acrescido de mais um terço, reduzindo ainda mais o tempo de pena a cumprir.

Por fim, o texto da LEP a partir da reforma mencionada passou a limitar a perda dos dias remidos pelo cometimento de falta grave. Como dito anteriormente, a opinião pacificada do STF pela Súmula Vinculante n.º 9, era a de que, havendo a prática de falta grave, na forma do art. 127, da LEP, o sentenciado perderia por completo os dias remidos. Depois da Lei 12.433/11, o Juiz poderá revogar até um terço dos dias remidos.

Resumidamente, após esta breve revisão das inovações legislativas, percebe-se que a pena, conforme disposto nesses novos regramentos, pretende cumprir uma função de reinserção do sentenciado pela educação, de forma que a pena seja tão menor quanto maior seja a disposição do sujeito para a “recuperação”, oportunizando-lhe a chance de usar a reprimenda como instrumento de repessoalização, de ressocialização.

Usando as três etapas da individualização da pena para ilustrar o efeito da Lei 12.433/11, o legislador previu, no espaço abstrato da norma, que se devem apresentar oportunidades para que a pena aplicada pelo judiciário e por ele executada sirva para que, pela educação, o sentenciado possa retomar sua condição social de pessoa.

Vistos os dois casos legislativos recentes trazidos neste texto, é possível ver como aquele sincretismo mencionado no início desta exposição aparece em nossa legislação até com razoável frequência. Se, de um lado, a Lei 11.464/07, de inspiração retributivista pretendeu tratar de modo mais severo o crime pela sua própria natureza, punindo retrospectivamente o fato criminoso; por outro a Lei 12.433/11, de cariz preventivo, abriu-se para um cumprimento de pena que está voltado para o futuro e para a possibilidade de reinserção do réu pelo estudo, prevenindo, de alguma forma a sua renitência.

Combinando os dois exemplos, ver-se-á, acredita-se, casos em que a pena fixada com base em critérios essencialmente retributivos, como o dos crimes hediondos – e parece ser o desejo social – ser executada de modo preventivo (mais especificamente, de modo preventivo especial), andando na exata contramão daquilo que foi pleiteado quando da cominação da sanção penal mais severa para aquele tipo de criminalidade. Isto é, passar-se-á a conviver com a ilogicidade de se verem penas por crimes a que a lei quis tratar de modo mais brando ser cumprida em prazos exíguos, face aos muitos benefícios de ordem preventivo especial trazidos pela Lei 12.433/11, e que se aplicam, indiscriminadamente, a qualquer tipo de criminalidade.

Propõe-se, neste artigo, que esses casos, que assombram a opinião pública não iniciada nos meandros do direito positivo, são resultado de uma ausência de diretiva geral para a pena criminal na ordem jurídica brasileira.


5. Conclusão

Individualizar a pena corresponde à tarefa político-jurídica de tornar toda e qualquer reprimenda penal adequada à situação de fato e aos sujeitos envolvidos em sua realização. Não se pode desconsiderar nenhuma dessas dimensões. No contexto do estudo feito, essa individualização, que parte de base constitucional, conforme art. 5º, XLVI, da Carta Maior, precisa levar em conta as finalidades a que se destinam as diversas formas de pena criminal.

Na tradição jurídica ocidental, dois são os grandes blocos teóricos que organizam os fins da pena: o retributivismo, propondo que a pena deva servir para punir retrospectivamente o fato praticado, esgotando sua tarefa em, de alguma forma, opor ao mal do crime o mal da pena; o preventivismo, que vislumbra a pena com a tarefa político-criminal de evitamento das infrações penais em geral ou no evitamento da reincidência do indivíduo condenado específico.

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Da conjugação desses dois grandes blocos, unindo-os num processo de adição de funções, surgem as chamadas teorias da união ou unitárias, que visam a, de alguma forma, conjugar prevenção e retribuição numa mesma forma de ser da pena. A crítica formulada por Günther Jakobs é no sentido de que essa união é inviável teórica e praticamente. Teoricamente, porque não existe um princípio harmonizador proposto pelas teorias da união, que consiga calibrar as diferenças de fundo existentes nos dois caminhos teóricos. E, interessante repetir, nem mesmo se busca, no interior das teses unitárias, a formulação desse princípio harmonizador. Segundo aquele citado autor, também na prática, não existe demonstração de que a pena fixada nas bases da retribuição da culpabilidade alcance, também, efeitos preventivos, sejam especiais, sejam gerais.

Nesse contexto de dificuldade de conexão entre prevenção e retribuição encontra-se o ordenamento jurídico brasileiro. Por força do art. 59, do Código Penal, que reflete todo o sistema jurídico-penal, a pena deve buscar equacionar qualidade e quantidade que possa ser suficiente para a prevenção e a retribuição. E, conforme demonstrado ao longo deste artigo, essa conexão é de impossível realização, fazendo com que, no interior do direito positivo nacional, se encontrem situações que, quando vistas em conjunto, mostram as perplexidades com as quais convivem os envolvidos na construção e aplicação do direito penal brasileiro.

Exemplos claros desse sincretismo funcional da pena criminal aparecem em duas reformas recentes na legislação penal brasileira. De um lado, a Lei 11.464/07, que – tomando como referência o art. 112, da LEP – tornou mais difícil a progressão de regime para os crimes hediondos e assemelhados, com evidente cariz retributivo, já que tratou de modo mais severo os crimes antes mencionados, independentemente das circunstâncias de fato, visando a retribuir com a pena o fato praticado. Por outro lado, a Lei 12.433/11, que alterou a sistemática da remição pelo estudo, a partir da reforma dos artigos 126 e 127, da Lei de Execução Penal, é, evidentemente, preventiva – frontalmente, é preventivo-especial -, já que coloca nas mãos do sentenciado a possibilidade de abrandar sua pena a partir da aceitação da possibilidade preventiva de não delinquir, repessoalizando-se pelo estudo.

Ora, fica claro, quando se unem as duas leis penais num mesmo contexto, que foram adotados caminhos discrepantes que podem estar presentes num mesmo caso real. Caminhos estes que geram a sensação de que há um completo desencontro, um completo desacerto na legislação penal e penitenciária brasileira, causando perplexidade na comunidade jurídica como um todo e enormes dificuldades práticas para os aplicadores da lei.

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Sobre a autora
Karina Ferreira Lanza

Analista do Ministério Público de Minas Gerais . Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto/MG.Especialista em Direito Processual pela Unisul . Pós-graduanda em Direito Público pela UNIFEMM

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LANZA, Karina Ferreira. Acerca da relação dúbia entre prevenção e retribuição na pena criminal.: Uma análise sobre o sincretismo teleológico da individualização da pena e seus reflexos na legislação penal brasileira recente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3297, 11 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22181. Acesso em: 5 nov. 2024.

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