Com o advento da Lei nº 12.403, de 2011, muito se falou acerca da possibilidade de se colocar em liberdade centenas de milhares de presos provisórios. A imprensa entrevistou diversos juristas, alguns a favor da lei outros contra, mas em qualquer caso, sempre se enfatizando que a reforma tem como objetivo desafogar o sistema prisional e solidificar o entendimento de que a prisão cautelar deverá ser decretada em último caso.
De toda sorte, parece ser unânime a opinião que as reformas são benevolentes quando se trata de prisão cautelar e que muitos que outrora ficariam presos agora serão colocados em liberdade mais facilmente.
Porém, se é verdade que muitos presos provisórios estão sendo colocados em liberdade em razão das recentes modificações legislativas, não é menos verdade que uma interpretação literal dos dispositivos legais pode acabar por impor uma situação surpreendente: se por um lado a reforma é mais branda, por outro ela é malfadada, pois tenta novamente trazer para o sistema jurídico penal a impossibilidade de concessão de liberdade provisória para os crimes inafiançáveis.
A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art. 5º, inciso LXVI, dispõe: “Ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança” (grifei). Verifica-se, portanto, que nossa Constituição, sob um prisma literal, estabelece que se a lei admitir a liberdade provisória com ou sem fiança ninguém será mantido preso.
Com efeito, antes do advento da Lei nº 12.403, de 2011, para os crimes que não se admitia a liberdade provisória com fiança, concedia-se a liberdade provisória sem fiança, caso não estivessem presentes os requisitos e fundamentos para decretação da prisão preventiva, ou seja, havia permissivo legal (parágrafo único do art. 310 do CPP), que permitia a concessão de liberdade provisória sem fiança para os crimes inafiançáveis, posição contestada por corrente doutrinária e pela 1ª Turma do STF.
Vejamos a redação do art. 310 do Código de processo Penal dada pela Lei 6.416, de 24 de maio de 1977:
“Quando o juiz verificar pelo auto de prisão em flagrante que o agente praticou o fato, nas condições do art. 19, I, II e III, do Código Penal, poderá, depois de ouvir o Ministério Público, conceder ao réu liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação
parágrafo único: Igual procedimento será adotado quando o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva (arts. 311 e 312)”.
No entanto, o parágrafo único do art. 310 do Código de Processo Penal foi modificado pela Lei nº 12.403, de 2011, e atualmente só há permissivo legal que autoriza a concessão de liberdade provisória sem fiança quando verificada a incidência de uma das hipóteses do art. 23 do Código Penal, ou seja, quando presente uma excludente de ilicitude, podendo a mesma ser dispensada quando a situação econômica do acusado assim recomendar.
Vejamos a nova redação do dispositivo:
“Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente:
I - relaxar a prisão ilegal; ou
II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou
III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
Parágrafo único. Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput do art. 23 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação”.
Portanto, para os crimes inafiançáveis não há mais no Código de Processo Penal dispositivo legal que autoriza a concessão de liberdade provisória sem fiança.
Ao que parece, a reforma teve com base o entendimento, com eco inclusive na 1ª Turma do STF, de que nos crimes inafiançáveis não cabe a liberdade provisória sem fiança.
Eugênio Pacelli de Oliveira, discorrendo sobre o tema, reconhece que o legislador andou mal e não corrigiu os desvios produzidos pela previsão de inafiançabilidade da Constituição da República, indicando qual seria a solução: "...Em consequência, não temos dúvida em afirmar que, nas hipóteses em que não for cabível a fiança para os crimes alinhados no art. 323, CPP, o juiz imporá certamente o maior número possível de medidas cautelares"[1]
A mesma solução é dada por Aury Lopes Júnior e por Nestor Távora. [2]
Já o professor Silvio Maciel, lembrando que a questão do cabimento ou não de liberdade provisória em crimes hediondos e assemelhados está em julgamento pelo Plenário do STF (HC100949), aduz que, com base no Princípio da Presunção Inocência, o preso deve ser colocado em liberdade[3].
Todavia, é importante frisar que de acordo com a redação do art. 321 do Código de Processo Penal, a imposição de medida cautelar sempre estará atrelada à concessão de liberdade provisória com ou sem fiança.
Assim, no meu modesto entendimento, não é correto dizer que para os crimes inafiançáveis haverá a concessão de liberdade provisória cumulada com medidas cautelares, pois, “de uma forma ou de outra, com a cumulação ou não”, a liberdade provisória, antes de qualquer coisa, é com ou sem fiança, além do fato de que a imposição de medida cautelar exige a verificação da necessidade e adequação.
Não se pode dizer que o atual fundamento legal para concessão de liberdade provisória sem fiança é o artigo 321 do Código de processo Penal, uma vez que tal dispositivo tem como objeto a indicação da possibilidade da cumulação de medidas cautelares com a liberdade provisória com ou sem fiança.
Outro ponto a ser levado em consideração é que a reforma visa restabelecer o instituto da fiança, porém, mantendo-se o entendimento de que é possível a concessão de liberdade provisória sem fiança caso não estejam presentes os requisitos e fundamentos para a decretação da prisão preventiva. A reforma, da mesma forma que antes, deixa o instituto da fiança totalmente esvaziado, o que decerto não foi a intenção do legislador. Se é possível a concessão de liberdade provisória sem fiança para os crimes inafiançáveis, evidentemente também será para os demais delitos, sob pena de se celebrar o absurdo, todavia, essa solução acaba por desmontar todo o sistema da fiança implementado com a Lei nº 12.403 de 2011.
O raciocínio aqui exposto, decerto, inicialmente pode implicar certa perplexidade, em razão da visão diametralmente oposta dos maiores pensadores do processo penal brasileiro. Todavia, há quem já se despertou para o assunto. Renato Marcão, Promotor de Justiça de São Paulo, mesmo concluindo de forma contrária, ao falar da prisão preventiva compulsória, admite que “....ou se reconhece, definitivamente, a possibilidade de liberdade provisória, sem fiança, em relação a todos os crimes inafiançáveis; 2ª) ou se reconhece a inconstitucionalidade do inciso II do artigo 310 do CPP” [4]
Avalizado nosso raciocínio, Charles Emil Machado Martins, Promotor de Justiça, Professor de Direito Processual Penal na FESMP-RS e UNISINOS, com brilhantismo, aduz:
“Assim, pelo fio do exposto, conclui-se que o flagrante continua sendo uma espécie de prisão cautelar e continuará prendendo "por si só" nos casos de crimes inafiançáveis, sendo que a nova redação do artigo 321do CPP [26] carecerá de "interpretação conforme a Constituição", ou seja, "o juiz deverá conceder a liberdade provisória", salvo se o crime dela for insuscetível” [5].
Não é a primeira vez que o legislador tenta vedar através da legislação ordinária a liberdade provisória para os crimes inafiançáveis, tendo o STF intervindo posteriormente para declarar inconstitucionais tais normas, argumentando para tanto que não cabe ao legislador dizer através de uma fórmula apriorística quem deve ficar preso provisoriamente, sendo tal mister da autoridade judiciária (art. 5º, inciso LXI, da CF/88).
Ocorre que, desta vez, o legislador buscou um novo e inteligente método para vedar a liberdade provisória em tais casos, desta feita, não há artigo para ser declarado inconstitucional, mas sim a ausência do permissivo legal que a autoriza.
Com isso, para os crimes inafiançáveis, não estando presentes os requisitos para decretação da prisão preventiva, somente com base nos princípios da razoabilidade ou proporcionalidade o preso em flagrante poderá ser colocado em liberdade sem o pagamento de fiança. Uso neste caso o exemplo dado pelo Professor Silvio Maciel[6], do pai de família recentemente desempregado, e que num ato de desespero se pôs na esquina a vender alguns cigarros de “maconha” ou quando pela pena a ser hipoteticamente imposta, o acusado não será condenado em pena restritiva de liberdade, nestes casos, evidentemente, não será razoável manter a prisão. Mas de qualquer forma, de agora em diante, a concessão de liberdade provisória para os crimes inafiançáveis exige de fundamentação baseada nos princípios constitucionais implícitos da razoabilidade e proporcionalidade ou no princípio da presunção de inocência, e não mais na legislação ordinária.
Notas
[1]OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal - 15. ed., ver. e atual. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2011 p. 590
[2]LOPES JÚNIOR, Aury. O novo regime jurídico da prisão processual, liberdade provisória e medidas cautelares diversas: Lei 12.403/2011. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2011. p.165. - http://www.editorajuspodivm.com.br/i/f/capitulos%20soltos.pdf
[3]GOMES, Luiz Flávio (coord), Prisão e Medidas cautelares: comentários à Lei 12.403, de 04 de maio de 2011. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p.200/2011.
[4]http://www.conjur.com.br/2011-ago-17/ordenamento-juridico-nao-admite-prisao-preventiva-compulsoria
[5]http://jus.com.br/revista/texto/19476/crimes-inafiancaveis-uma-interpretacao-da-lei-no-12-403-11-a-luz-da-jurisprudencia-do-stf/1
[6] GOMES, luiz Flávio (coord), Prisão e Medidas cautelares: comentários à Lei 12.403, de 04 de maio de 2011. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p.200.