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Princípio da vedação do retrocesso social

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3. BREVES COMENTÁRIOS SOBRE A JURISPRUDÊNCIA DO STF

Objetivando ilustrar o pensamento refletido na presente obra foi realizada uma pesquisa jurisprudencial acerca da aplicação do princípio ora analisado que vem sendo realizada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Pretende-se demonstrar que a corte não tem se proposto a realizar um enfrentamento do referido princípio.

Chamou atenção o fato de que na referida pesquisa foi diminuto o número de ocasiões em que houve a menção ao princípio da vedação ao retrocesso social, corroborando o que foi acima mencionado sobre a resistência (passiva) que o princípio vem enfrentando por parte da doutrina e da jurisprudência. Este fato, no diagnóstico aqui apresentado, se deve muito mais a uma má interpretação sobre o modo como o referido princípio deveria ser aplicado do que propriamente à uma resistência ao conteúdo material do mesmo (ou ao conteúdo que aqui se defende que ele possui).

Conforme já mencionado, o STF, tem se mostrado vacilante quando se trata de enfrentar a questão aqui abordada. Considerando que na conjuntura sócio-econômica atual, com o fortalecimento da globalização e do neoliberalismo, o discurso no sentido da flexibilização dos direitos sociais tem se tornado uma constante, a proibição ao retrocesso social pode acabar se revelando como uma das últimas trincheiras a fim de evitar a consagração de violações aos direitos fundamentais sociais.

Com efeito, não foram localizados julgados em que a proibição ao retrocesso tenha funcionado como o fundamento determinante para o julgamento, mas apenas alguns casos em que a questão foi analisada de forma tangencial. Destes, foram selecionados dois que oferecem alguma idéia dos contornos que o referido princípio poderia ter conforme o pensamento de Ministros do STF.

3.1.1 A ADI 2065-0

O julgamento da ADI 2065-0 sediou um interessante debate sobre o conteúdo e os limites do Princípio da Proibição do Retrocesso Social.

Tratava-se de ação em que era requerida a inconstitucionalidade de dispositivos da Medida Provisória 1.911-9/99 que revogaram diversos dispositivos das Leis 8.212/91 e 8.213/91.

No que aqui interessa para a compreensão do caso e sua importância para o tema discutido basta apenas mencionar que alguns dos dispositivos revogados pela MP 1.911 importavam na concretização do direito à saúde, bem como que a revogação dos mesmos importou na extinção do Conselho Nacional de Seguridade Social e dos Conselhos Estaduais e Municipais de Previdência Social.[46]

Infelizmente, a ADI não foi conhecida porque a maioria do tribunal considerou que a ação versava sobre ofensa apenas indireta à Constituição, não sendo passível de julgamento em sede de controle concentrado de constitucionalidade.

Não obstante, é interessante a leitura do voto do Ministro Relator Sepúlveda Pertence, que afastou a preliminar de não-conhecimento[47], conheceu do pedido e, no mérito, julgou procedente a ação justamente com fulcro na vedação ao retrocesso social.

Transcreve-se as partes do voto que aqui interessam intercalando-as com alguns comentários.

Deduzida com inteligência, não obstante, a preliminar improcede.

A normatividade da norma legal simultaneamente derrogatória de lei anterior, já a afirmou o Tribunal na ADInMC 769, 22.4.93, relator o em. Ministro Celso de Mello, que, na ementa, consignou – Lex 187/112: ‘Os atos estatais de conteúdo meramente derrogatório, desde que incidam sobre atos de caráter normativo, revelam-se objeto idôneo para a instauração do controle concentrado de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.

Observa-se que o Ministro do STF afasta o entendimento pelo qual a norma meramente derrogatória de lei anterior não possuiria normatividade e não seria suscetível ao controle concentrado de constitucionalidade. Este posicionamento configura um pressuposto indispensável para a defesa do entendimento que aqui se defende, acerca da possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de uma lei revogadora com fulcro no princípio da vedação ao retrocesso.

[...] De outro lado, a preliminar, nos termos peremptórios em que foi articulada, vai de encontro a um dogma da teoria contemporânea da Constituição: o de que toda norma constitucional, mesmo as despidas de eficácia plena e ainda as ditas programáticas, tem positividade jurídica imediata, que se manifesta [...] não apenas em sentido afirmativo, como ‘vinculação do legislador, de forma permanente, à sua realização’ e como ‘diretivas materiais permanentes’ a tomar ‘em consideração em qualquer dos momentos da atividade concretizadora (legislação, execução, jurisdição)’, mas também que ‘como limites negativos, justificam a eventual censura sob a forma de inconstitucionalidade, em relação aos atos que as contrariam’. (grifos do original)

Sepúlveda Pertence, declaradamente[48], inspira-se na doutrina lusitana, marcadamente aquela do autor J. J. Gomes Canotilho, para defender a possibilidade de normas constitucionais programáticas. Não obstante, o fato de uma norma ser programática não a destitui de uma eficácia jurídica imediata.

Pelo contrário, depreende-se do pensamento exposto pelo julgador que as normas constitucionais programáticas possuem, pelo menos, dois importantes efeitos jurídicos imediatos: o de funcionar como diretivas materiais permanentes implicando em um dever objetivo para o legislador e para o administrador, que deverão conviver com a obrigação de, na medida do possível, implementar políticas públicas que se coadunem com os objetivos expostos por aquelas normas; e o de funcionar como limites negativos possibilitando o controle de constitucionalidade dos atos que operem em sentido contrário às suas determinações.

O dever objetivo mencionado pelo Ministro possui importantes conseqüências no plano do controle judicial de atos do legislativo e do executivo. Se existe um dever de atuar num determinado sentido, possibilita-se a sanção por inconstitucionalidade de toda omissão dos poderes públicos em cumprir com esse dever. Ademais, não se exclui a possibilidade da concessão de mandados de injunção com o fim de remediar esta omissão. [49]

Ademais, deflui ainda do referido dever objetivo que, sempre que as políticas públicas apontarem em sentido contrário ao determinado pelas normas programáticas, será possível, pelo menos em tese, o controle de constitucionalidade dos atos concretizadores de tal política.

Mas, o Ministro do STF aduz ainda que as normas programáticas funcionam como limites negativos que justificam a censura por inconstitucionalidade dos atos as contrariam. Ou seja, defluem das normas ora examinadas verdadeiros direitos de defesa que poderiam ser classificados naquilo que Robert Alexy designou por “direitos à não eliminação de posições jurídicas fundamentais”[50].

Em outras palavras, uma vez positivadas normas que representam a concretização de direitos fundamentais surge para o cidadão beneficiário um direito à que tais normas não sejam (livremente) revogadas pelo legislador.

3.1.2 O RE 351750/RJ

No RE 351750/RJ tratava-se de julgamento que envolvia a discussão acerca da constitucionalidade da limitação de indenizações relativas a falhas na prestação de serviços de transporte aéreo.

O caso foi julgado por turma recursal com base no art. 14 do Código de Defesa do Consumidor, condenando a empresa ao pagamento de indenização em determinado valor. A recorrente havia interposto embargos de declaração asseverando que não foram levadas em consideração as limitações ao valor da indenização operadas pelo Código Brasileiro de Aeronáutica e pela Convenção de Varsóvia (as normas que restringiam o valor da indenização eram posteriores ao CDC).

O relator Ministro Marco Aurélio de Melo não conheceu do recurso por considerar que se tratava exclusivamente de questões infraconstitucionais.

O Ministro Eros Grau, em voto vista, conheceu e deu provimento ao recurso por considerar que o CBA e a Convenção de Varsóvia eram leis especiais em relação ao CDC, no que tocava ao regramento das indenizações aplicáveis às empresas de transporte aéreo.

A única menção ao princípio da vedação ao retrocesso foi realizada pelo Ministro Carlos Ayres de Britto e ainda assim de forma bastante superficial. Após a leitura da íntegra da decisão, nem mesmo se pode afirmar que o referido princípio foi decisivo para a solução adotada, apesar de sua menção expressa na ementa do acórdão que foi redigido para a decisão, que, ressalte-se, induz o leitor desavisado a erro quanto ao peso que o princípio teve na solução do litígio.

Lê-se na ementa do referido julgado: “2. Afastam-se as normas especiais do Código Brasileiro da Aeronáutica e da Convenção de Varsóvia quando implicarem retrocesso social ou vilipêndio aos direitos assegurados pelo Código de Defesa do Consumidor”.

Mas o leitor mais atento pode, mesmo sem se dar ao trabalho de ler a íntegra da decisão, perceber que o princípio ora estudado não teve grande influência na decisão. Isto porque na própria ementa do julgado já consta que o recurso não foi conhecido por versar sobre ofensa (apenas) indireta à CF.

Por outro lado, vale a pena reproduzir o trecho do julgado em que o princípio foi mencionado, pelo menos para fornecer um indício do conteúdo concebido pelo Ministro do STF à vedação ao retrocesso.

Assim, em debate, o Ministro Carlos Britto afirmou: “é por isso que se concebeu a tese da proibição do retrocesso. A lei [CDC] é ordinária, sim, mas é excepcionalmente qualificada pelo fato de versar, no caso, tanto um direito fundamental [art. 5º, XXXII da CF] quanto um princípio da ordem econômica [art. 170,V da CF]. Ela não pode sequer ser revogada”. (sem grifos no original).

Ou seja, o Ministro do STF considera que uma lei, apesar de ordinária, pode ser excepcionalmente qualificada quando importa na concretização de direitos fundamentais, hipótese que pode até mesmo configurar um óbice à livre revogação da referida lei.

Tais palavras do julgador deixam transparecer que, pelo menos em tese, a revogação de uma lei poderia ser considerada inconstitucional por ofensa ao Princípio de Vedação ao Retrocesso Social o que, por óbvio, somente pode ser cogitado a partir do pressuposto de que o mesmo existe e que tem como conteúdo, ou parte dele, a vedação a atos do legislador infraconstitucional que importe na revogação de lei que concretize direitos fundamentais.

A afirmação acima pode até parecer supérflua ou desnecessária, mas não é. Isto porque um dos objetivos do presente trabalho é justamente defender a existência do referido princípio no ordenamento pátrio, que poderia ser questionada diante da ausência de previsão constitucional expressa, assim como diante da ausência de casos da aplicação do mesmo.


CONCLUSÃO

Considerando tudo que foi exposto no presente trabalho, aqui se concluiu pela possibilidade, e mais ainda, pela necessidade de reconhecimento de um princípio da proibição ao retrocesso social no ordenamento jurídico brasileiro.

Considerando que o referido princípio não encontra previsão expressa na CF, seu reconhecimento implica no ônus de atribuí-lo às normas constitucionais através de uma argumentação sólida, no mesmo sentido mencionado por Robert Alexy ao tratar das normas de direitos fundamentais atribuídas.

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Neste sentido, é possível construir uma argumentação que dê sustentabilidade ao princípio da proibição ao retrocesso fundamentada principalmente:

a) na supremacia da Constituição;

b) no princípio da máxima efetividade das normas constitucionais;

c) na noção de inconstitucionalidade por omissão e de retorno a uma situação inconstitucional que já havia sido sanada pela regulamentação infraconstitucional de direitos fundamentais sociais;

d) nos direitos fundamentais sociais e na vinculação do legislador aos direitos fundamentais;

e) na noção de um conteúdo essencial mínimo a funcionar como baliza para a discricionariedade do legislador no que diz respeito à redução da concretização dos direitos fundamentais sociais;

f) no princípio da proporcionalidade como baliza para a discricionariedade do legislador nas mesmas hipóteses;

g) no princípio do Estado Social;

h) no princípio da Segurança Jurídica e no princípio da Proteção da Confiança do Cidadão.

Embora aqui também se considere que existe uma íntima vinculação entre o princípio da proibição ao retrocesso social e o princípio da segurança jurídica, considera-se que a fonte principal da qual se extrai o princípio ora analisado é o princípio do Estado Social, que se infere das expressas previsões constitucionais acerca dos direitos sociais.

Por sua natureza principiológica, o controle judicial de atos legislativos através da aplicação da proibição ao retrocesso social depende sempre de ponderação e deve ser realizada através de uma argumentação expressa e bem fundamentada que seja capaz de demonstrar com elevado grau de certeza, que o legislador infraconstitucional incidiu em retrocesso constitucionalmente vedado.

Assim como ocorre nos demais casos de controle judicial de atos discricionários (atos administrativos discricionários, controle de oportunidade e conveniência para edição de medidas provisórias, entre outros), a anulação do ato deve ser suficientemente fundada a ponto de afastar a presunção de legitimidade do ato. Se ao final da ponderação ainda subsistir dúvida, deve prevalecer a presunção de constitucionalidade das leis de forma a evitar uma indevida hipertrofia do poder judiciário e a violação ao princípio da separação dos poderes.

Dentro daquela ponderação, necessária à aplicação da vedação ao retrocesso social, devem ser sempre considerados alguns argumentos que podem afastar a proibição no caso concreto.

O princípio democrático e o pluralismo político (numa acepção material) irão constantemente oferecer elevada resistência à incidência da proibição ao retrocesso. A revisibilidade dos atos legislativos é inerente a uma democracia pluralista e a limitação a esta revisibilidade somente pode ocorrer em casos excepcionais.

É necessário também prestar o devido respeito à hierarquia das normas, evitando que uma aplicação indevida e mal fundamentada da proibição ao retrocesso acabe por subverter a referida hierarquia conferindo a normas infraconstitucionais uma proteção maior até mesmo do que aquela concedida a normas constitucionais.

Também o princípio da reserva do possível deve oferecer uma resistência significativa à incidência da proibição ao retrocesso social. O alto custo dos direitos sociais e a limitada disponibilidade de recursos financeiros devem ser considerados pelo juízo quando da ponderação a ser realizada até porque a intransigência na vedação ao retrocesso com relação a um direito pode dificultar e até mesmo inviabilizar a concretização de outros direitos fundamentais e de outras obrigações do Estado.

Como visto, as objeções levantadas contra a proibição ao retrocesso social não lograram sucesso em afastar a mesma peremptoriamente, com o que cada caso concreto deve ser solucionado através da ponderação.

Até aqui a questão da proibição ao retrocesso foi apenas tangenciada pela jurisprudência do STF, mas acredita-se que está próximo o tempo em que o mesmo deverá enfrentar frontalmente a questão. Ocorrendo este enfrentamento, poderão ser extraídos os contornos que o tribunal responsável pela guarda da Constituição entende que devem ser atribuídos ao princípio ora analisado.

Acredita-se que a oportunidade do STF enfrentar o problema aproxima-se porque: de um lado vem aumentado a produção acadêmica sobre o tema; de outro, a prevalência do discurso neoliberal e a competição econômica no mundo globalizado tem impulsionado o legislador a adotar medidas redutoras dos direitos fundamentais sociais (embora seja costume se empregar o termo “relativizar” onde cabe “reduzir”), o que certamente propiciará oportunidades em que se fará necessária a análise da constitucionalidade de tais medidas.

As crises econômicas, como a vivenciada no ano de 2009, fornecem o cenário ideal para a propagação de discursos que pugnam pela necessidade de redução dos direitos sociais, talvez até com certo grau de procedência. De fato, é até mesmo lógico que o Estado, numa situação de fragilidade econômica, com comprometimento da arrecadação e da disponibilidade orçamentária, não tenha condições de oferecer o mesmo grau de concretização aos direitos sociais que possui numa conjuntura econômica favorável. Por outro lado, é justamente numa situação de crise que os direitos sociais são capazes de potencializar sua aptidão para garantir a dignidade da pessoa humana.

Nas palavras de Felipe Derbli, outro autor que dedicou obra ao tema:

Em outras palavras, veda-se ao legislador a possibilidade de, injustificadamente, aniquilar ou reduzir o nível de concretização legislativa já alcançado por um determinado direito fundamental social, facultando-se ao indivíduo recorrer à proteção, em esfera judicial, contra a atuação retrocedente do Legislativo, que se pode consubstanciar numa revogação pura e simples da legislação concretizadora ou mesmo na edição de ato normativo que venha a comprometer a concretização já alcançada.

Aqui se conclui pelo reconhecimento da proibição ao retrocesso social nos moldes acima explicitados. Nem todo retrocesso está vedado, o que somente ocorrerá nas hipóteses em que, além de não prever medidas compensatórias para a afetação do direito social, se mostre possível uma argumentação que seja capaz de superar presunção de constitucionalidade das leis. Considera-se que este é o diferencial do presente trabalho, uma vez que aqui, apesar do reconhecimento da proibição ao retrocesso, se entende que não é tarefa do legislador demonstrar que o retrocesso é justificado. Em razão da presunção de constitucionalidade das leis, o ônus de demonstrar cabalmente o retrocesso cabe a quem o alega e pretende com ele invalidade a opção realizada pelo legislador democraticamente legitimado, caso contrário, deve ser a lei considerada válida.

Espera-se que uma acepção mais restritiva do princípio da proibição ao retrocesso social reduza a inibição que até hoje vem fazendo com que doutrina e jurisprudência evitem uma abordagem mais ampla e aberta sobre o tema. O caminho do meio é geralmente a opção mais sensata e um aprofundamento sobre o tema, realizado sem preconceitos, certamente será apto a demonstrar que não existe qualquer incompatibilidade entre a proibição ao retrocesso social, como norma princípio, e o ordenamento constitucional brasileiro.

 

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Sobre o autor
Luciano Roberto Bandeira Santos

Procurador da Fazenda Nacional. Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Luciano Roberto Bandeira. Princípio da vedação do retrocesso social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3307, 21 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22261. Acesso em: 2 nov. 2024.

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