Resumo: Trata-se de uma abordagem acerca dos crimes militares que sejam praticados por civis contra as instituições militares estaduais, nos termos do art. 9, inciso III do Código Penal Militar brasileiro. A discussão gira em torno da definição da competência para o processo e julgamento do agente no caso em tela, à luz da constituição e da legislação infra-constitucional, observada a doutrina e jurisprudência pátria.
Palavras-chave: crime militar; justiça militar; instituições militares estaduais; competência.
Sumário: 1 Introdução; 2 Dos crimes militares: aspectos conceituais e hipóteses de cometimento por agente civil; 2.1 Crime militar: aspectos conceituais; 2.2 Hipóteses em que um civil pode figurar como sujeito ativo de crime militar contra as instituições militares estaduais; 3 Da competência para processo e julgamento dos crimes militares definidos somente no Código Penal Militar cometidos por civil contra as instituições militares estaduais; 3.1 Da estrutura e competência da Justiça Militar; 3.2 A competência para julgamento dos crimes militares cometidos por civil contra as instituições militares estaduais: análises e proposições; 4 Conclusão.
1. Introdução
O presente artigo tem por escopo trazer à baila uma questão que não é objeto de muitas publicações no cenário brasileiro, qual seja a prática de crimes militares por agentes que não sejam integrantes das forças militares estaduais contra as instituições militares dos Estados. Qual seria a situação jurídica em que se encontraria tal fato? Seria uma questão de atipicidade ou se trataria de uma lacuna de competência no sistema jurídico brasileiro? Tais questionamentos sempre intrigaram este autor e talvez figurem como as principais motivações para a realização deste trabalho, vez que o cometimento de ilícitos penais tipificados no Código Penal Militar (CPM) por civis não é raro, ao contrário, ocorrem com certa frequência conforme fica demonstrado, por exemplo, pelos atentados às bases policiais militares na cidade de São Paulo no ano de 20121 ou pelo atentado à Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Polícia Militar em uma comunidade do Rio de Janeiro no mês de Julho do mesmo ano2.
O tema ora debatido encontra-se em estado de quase vazio doutrinário, tanto que não foi localizado por este autor durante sua pesquisa sequer um artigo que abarcasse exclusivamente o assunto em tela, de modo aprofundado, e que trouxesse a lume uma resposta contundente sobre o assunto. Tal situação talvez se explique pelo fato de a matéria já estar sumulada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) desde o ano de 1992, conforme súmula de número 53 que declara que “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar o civil acusado de crime contra as instituições militares estaduais” (ASSIS, 2008, p. 48). Não obstante a existência de decisão do STJ com relação à matéria, esta decisão não é peremptória e não é de acatamento obrigatório pelos órgãos judiciais, já que não que possui natureza vinculante no sistema jurídico brasileiro, não sendo suficiente, portanto, para esgotar a discussão sobre o tema ora sob análise.
Lado outro, muito embora já tenham decorrido duas décadas da edição da súmula supramencionada, verifica-se que processos em que a justiça comum tenha processado um civil pela prática de um crime caracterizado como militar não são fáceis de serem encontrados, pelo menos com remissão expressa aos dispositivos do CPM, havendo maior incidência no Estado do Rio Grande do Sul, o qual inclusive juntamente com o Estado de São Paulo são os únicos em que foi possível encontrar jurisprudência a respeito da temática em comento.
Essas considerações iniciais demonstram a relevância do estudo do tema que será deslindado daqui em diante, pois sendo de grande relevância ainda carece de maior estudo, principalmente com vistas a suscitar o debate acerca da temática, contribuindo para o seu esclarecimento, para a desconstrução da realidade de desconhecimento do ramo do Direito Penal Militar, além de adensar o arcabouço doutrinário nesta área, o qual, como já mencionado e como ficou evidenciado nos estudos que subsidiaram este escrito, mostra-se ainda escasso e árido não só no Brasil, mas em todo o mundo, o que é corroborado por Zaffaroni apud Assis (2004, p. 77), à guisa de exemplo, ao afirmar que “en torno del derecho penal militar argentino se han producido vários malentendidos y, en general, dado que está parcial o deficientemente estudiado en nuestras universidades”. (grifo do autor)
Para o alcance do seu intento, o presente trabalho apresentará inicialmente uma exposição sobre o conceito de crime militar sob os pontos de vista legal, doutrinário e jurisprudencial e as hipóteses em que este tipo de infração pode ser cometida por civil, considerando sempre o sistema jurídico pátrio. Logo após, se encarregará da discussão que constitui seu objeto nuclear, qual seja o da definição da competência para processo e julgamento do agente, à luz da legislação vigente, bem como dos posicionamentos doutrinários e jurisprudências dos tribunais brasileiros.
2. Dos crimes militares: aspectos conceituais e hipóteses de cometimento por agente civil
Para a real compreensão da possibilidade do cometimento de um ilícito militar por um agente civil, necessário se faz inicialmente conceituar o que vem a ser uma infração penal denominada como crime militar. A complexidade para a definição do que seja um crime militar perpassa pela interpretação sistemática de um rol de dispositivos constitucionais e legais e é condição sine qua non para a correta aplicação da lei penal militar seja aos integrantes das forças militares, seja para o civil, quando for o caso.
2.1. Crime militar: aspectos conceituais
O primeiro conceito que se deve ter de crime militar está consignado no Código Penal Militar, em seu art. 9º ao descrever os crimes militares em tempos de paz, devendo-se mencionar ainda que há também os crimes em tempos de guerra, mas estes não são objeto de estudo deste artigo. O art. 9º então prescreve, in verbis:
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
I - os crimes de que trata êste Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial; (grifo do autor)
II - [...] (Suprimido pelo autor por não ser de grande relevância para este estudo)
III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos: (grifo do autor)
a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;
b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;
c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;
d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquêle (sic) fim, ou em obediência a determinação legal superior.
Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil serão da competência da justiça comum, salvo quando praticados no contexto de ação militar realizada na forma doart. 303. da Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 - Código Brasileiro de Aeronáutica. (BRASIL, 1969)
Verifica-se pela leitura do artigo supra que para a configuração de um crime considerado como militar em tempos de paz3, a lei penal castrense traz uma fórmula que implica na combinação das disposições do art. 9º com os tipos penais constantes na parte especial do Código, ou seja, para que um crime seja considerado militar é preciso que haja além da subsunção da conduta com a descrição típica constante do CPM, a comprovação de que esta tenha se dado nas situações expressamente elencadas nos incisos do mencionado artigo. Nas palavras de Assis (2008, p. 40) “[...] para conceituar o ‘crime militar’, em si, o legislador adotou o critério ratione legis; isto é, ‘crime militar’, é o que a lei considera como tal. Não define: enumera”.
Isso posto, considerado o critério ratione legis, havendo o enquadramento objetivo do fato às disposições do art. 9º, ali estaria um crime militar, independente de qualquer outro aspecto. Todavia, a jurisprudência moderna tem apresentado entendimento contrário, como pode ser verificado em julgados recentes do Supremo Tribunal Federal (STF), como no julgamento do Habeas Corpus (HC) n. 110.286/RJ em que mesmo havendo um homicídio praticado por um militar da ativa contra outro militar da ativa, o que se enquadraria nas disposições do inciso II, alínea “a” do citado dispositivo, o crime foi entendido como de natureza comum e não militar:
COMPETÊNCIA – HOMICÍDIO – AGENTE MILITAR. Inexistente qualquer elemento configurador, a teor do disposto no artigo 9º do Código Penal Militar, de crime militar, a competência é da Justiça Comum, do Tribunal do Júri.
(HC 110286, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 14/02/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-064 DIVULG 28-03-2012 PUBLIC 29-03-2012) (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2012)
Denota-se, pois, que no entendimento do STF para que um crime seja considerado como militar, necessário se faz que a condição do agente ou a situação fática seja considerada como de natureza militar ou atente contra as instituições militares. Tal acepção ainda é bastante nova, mas tem tomado força, tanto que também em sede de julgamento de HC a egrégia Corte mais uma vez decidiu da seguinte forma:
HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL MILITAR. PACIENTES POLICIAIS MILITARES DENUNCIADOS POR EXTORSÃO MEDIANTE SEQUESTRO COM RESULTADO MORTE E OCULTAÇÃO DE CADÁVER. ALEGAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. IMPROCEDÊNCIA. ORDEM DENEGADA. I – Hipótese em que os fatos imputados ao denunciados não se enquadram em nenhuma das situações previstas pelo Código Penal Militar para caracterizar crime militar e, por conseguinte, fixar a competência da Justiça Castrense. II – Da leitura dos autos, verifica-se que a conduta criminosa não possui qualquer conotação militar e que a condição de policial militar não foi determinante para a prática do crime, de modo que não vejo como classificá-lo como militar. III - Esta Corte já firmou entendimento no sentido de que a condição de militar ou a circunstância de o agente estar em serviço no momento da prática do crime não são suficientes para atrair a competência da Justiça Castrense. Precedentes. (grifo do autor) IV – Ordem denegada.
(HC 109150, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 20/09/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-196 DIVULG 11-10-2011 PUBLIC 13-10-2011). (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2011)
Não obstante os novos posicionamentos jurisprudenciais citadas, a doutrina, embora escassa neste ponto, continua a definir os crimes militares, como assevera Assis (2008, p. 42) “como toda violação acentuada ao dever militar e aos valores das instituições militares”. a despeito da definição do autor retromencionado, a maioria dos doutrinadores, como afirma Fernandes Neto (2009) não emitem um conceito ou definição exata do que seja um crime militar, embora reconheçam a importância desta definição, se restringindo praticamente a interpretaram as disposições do art. 9º, donde se extrai que uma infração penal é militar a partir dos critérios de matéria (ratione materiae), de pessoa (ratione personae), lugar (ratione loci) e tempo (ratione temporis), nos seguintes termos:
O critério ratione materiae exige que se verifique a dupla qualidade militar – no ato e no agente.
São delitos militares ratione personae aqueles cujo sujeito ativo é militar, atendendo exclusivamente à qualidade militar do agente.
O critério ratione loci leva em conta o lugar do crime, bastando, portanto, que o delito ocorra em lugar sob administração militar.
São delitos militares ratione temporis os praticados em determinada época, como por exemplo, os ocorridos em tempo de guerra ou durante o período de manobras ou exercícios. (ASSIS, 2004, p. 81)
Nesta esteira, depreende-se que são considerados crimes militares, conforme a lei penal militar e a doutrina dominante aqueles que o Código Penal Militar define como tais em seu art. 9º (tempo de paz) ou em seu art. 10. (tempo de guerra), a despeito de já haver alguns julgados novéis do STF em sentido diverso, o que ainda não tem aspecto vinculante, não sendo, pois, de observância obrigatória, apesar de terem sido exarados pela Corte Suprema do país, com a devida vênia, embora representem uma contundente baliza aos órgãos jurisdicionais.
2.2. Hipóteses em que um civil pode figurar como sujeito ativo de crime militar contra as instituições militares estaduais
Para o ingresso na abordagem das possibilidades em que o civil pode figurar como agente de crime militar necessário faz antes de trazer à baila uma classificação doutrinária da tipologia dos crimes militares. Diz-se doutrinária porque esta não decorre da lei ou da Constituição, embora estas lhe façam referências, como exemplificam os excertos a seguir:
Art. 5º - [...]
LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;(grifo do autor) (BRASIL, 1988)
Art. 64. - Para efeito de reincidência:
[...]
II - não se consideram os crimes militares próprios e políticos; (BRASIL, 1940)
A inexistência de definição legal do que seja um crime militar próprio ou propriamente militar, nos dizeres de LIMA (2011, p. 498) obrigou que a doutrina o fizesse, “haja vista que a Constituição Federal e o Código Penal apontam para a importância de se estabelecer o conceito de crime propriamente militar”.
Neste diapasão, a doutrina classifica hodiernamente os crimes militares, ressalvadas as divergências entre os autores quanto aos termos, em dois grandes grupos: crimes propriamente militares e crimes impropriamente militares.
Segundo Romeiro apud Lima (2011, p. 498) o crime propriamente militar, também denominado como crime militar próprio, é aquele que só pode ser praticado por militar, pois consiste na violação de deveres restritos, que lhe são próprios, sendo identificado por dois elementos: a qualidade do agente (militar) e a natureza da conduta (prática funcional). O mesmo entendimento é apresentado por Assis (2008, p. 43):
Considerando-se, portanto, que a caracterização de crime militar obedece atualmente, ao critério ex vi legis, entendemos que s.m.j, crime militar próprio é aquele que só está previsto no Código Penal Militar e que só pode ser praticado por militar, exceção feita, ao de INSUBMISSÃO (sic), que, apesar de só estar previsto no Código Penal Militar (art. 183), só pode ser cometido por civil.
Noutro viés, são considerados como crimes impropriamente militares ou militares impróprios, segundo Lima (2011, p. 500) “[...] a infração penal prevista no Código Penal Militar que, não sendo específica e funcional do soldado, lesiona bens ou interesses militares. É aquele delito cuja prática é possível a qualquer cidadão (civil ou militar), passando a ser considerado militar porque praticado em certas condições (art. 9º do CPM)”. Ainda segundo o autor:
O art. 9º do CPM distingue 3 (três) espécies de crimes impropriamente militares: a) os previstos exclusivamente no Código Penal Militar (ex.: ingresso clandestino – CPM, art. 302); b) os previstos de forma diversa na lei penal comum (ex.: desacato a militar – CPM, art. 299); c) os previstos com igual definição na lei penal comum (ex.: furto – CPM, art. 240). (LIMA, 2011, p. 500-501)
Em sentido semelhante, embora com pequena divergência, posiciona-se também Assis (2008, p. 43) ao dispor que crimes militares impróprios “são aqueles que estão definidos tanto no Código Penal Castrense (sic) quanto no Código Penal comum e, que, por um artifício legal tornam-se militares por se enquadrarem em uma das várias hipóteses do inc. II do art. 9º do diploma militar repressivo”.
No entendimento deste autor a classificação dos crimes acima disposta, a qual figura como dominante na doutrina atual, mostra-se como insuficiente para abarcar todas as hipóteses em que um crime militar é comissível, pois deixam de considerar as disposições do art. 9º, inciso III, que também preveem situações em que tanto um civil quanto um militar podem ser agentes de um crime militar quando atentarem contra as instituições militares. Outro aspecto importante, trata-se da desconsideração da teoria monista adotada pelos Códigos Penais brasileiros, tanto comum quanto o militar, os quais dispõem, respectivamente:
Art. 29. - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.
Art. 30. - Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime. (BRASIL, 1940)
Art. 53. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a êste (sic) cominadas.
§ 1º A punibilidade de qualquer dos concorrentes é independente da dos outros, determinando-se segundo a sua própria culpabilidade. Não se comunicam, outrossim, as condições ou circunstâncias de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime. (grifo do autor) (BRASIL, 1969)
Disto isto, não soa inteiramente correto dizer que crimes militares são próprios ou impróprios simplesmente pelo fato de poderem ser ou não cometidos somente por militares, pois a lei admite o concurso de agentes e muito mais, admite que as circunstâncias pessoais quando forem elementares para o crime (caso dos crimes que atentam contra a hierarquia e disciplina) se comuniquem aos consortes, sendo possível, portanto que um civil se veja, por exemplo, como co-autor em um crime tipicamente militar. O próprio STF já emitiu julgado neste sentido, conforme se verifica pela transcrição a seguir:
HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSO PENAL. CRIME MILITAR. DENÚNCIA. ATIPICIDADE. CONCURSO DE AGENTES. MILITAR E FUNCIONÁRIO CIVIL. CIRCUNSTÂNCIA DE CARÁTER PESSOAL, ELEMENTAR DO CRIME. APLICAÇÃO DA TEORIA MONISTA. Denúncia que descreve fato típico, em tese, de forma circunstanciada, e faz adequada qualificação dos acusados, não enseja o trancamento da ação penal. Embora não exista hierarquia entre um sargento e um funcionário civil da Marinha, a qualidade de superior hierárquico daquele em relação à vítima, um soldado, se estende ao civil porque, no caso, elementar do crime. Aplicação da teoria monista. Inviável o pretendido trancamento da ação penal. HABEAS indeferido.
(HC 81438, Relator(a): Min. NELSON JOBIM, Segunda Turma, julgado em 11/12/2001, DJ 10-05-2002 PP-00068 EMENT VOL-02068-01 PP-00133)
Isto posto, infere-se, com a devida vênia, que estaria colocado de modo mais acertado que um crime seria propriamente militar ou impropriamente militar na medida em que fosse ou não, respectivamente, atentatório aos princípios militares da hierarquia e disciplina, os quais são basilares e caracterizadores das instituições militares e dos seus integrantes.
Inobstante as divergências, passa-se a então a discutir as hipóteses em que o civil poderá cometer crimes contra as instituições militares estaduais. Neste intento, é imperioso destacar uma vez mais o disposto no inciso III do art. 9º do CPM, o qual cuida da matéria em tela. De acordo com o mencionado dispositivo:
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
[...]
III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:
a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;
b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;
c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;
d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquêle (sic) fim, ou em obediência a determinação legal superior.
Considerando o acima exposto, resta irrefutável que, considerado apenas o aspecto legal, o civil comete crime militar, desde que atente contra as instituições militares, inclusive as estaduais. Neste particular, é importante ressaltar que alguém menos avisado poderia entender que somente as Forças Armadas e seus integrantes seriam sujeitos passivos de um crime militar que tivesse como autor um civil, como é o caso inclusive de Lima (2011, p. 540) que assim se expressa:
O art. 9º, inc. III, do Código Penal Militar, versa sobre os crimes militares cometidos por militar da reserva, ou reformado, ou por civis.
Como esse inciso tem como sujeito ativo tão somente o civil (reiteramos que, para fins de aplicação da lei penal militar, o militar da reserva ou reformado é considerado civil), forço é concluir que o dispositivo referido tem aplicação exclusiva na Justiça Militar da União, na medida em que, de acordo com a própria Constituição Federal, a Justiça Militar só tem competência para processar e julgar os militares dos Estados (CF, art. 125, §4º)
Com a devida vênia aos entendimentos contrários, denota-se que o indigitado doutrinador equivoca-se na medida em que utiliza uma lei de natureza processual para asseverar uma espécie de derrogação da lei penal material. O fato de a Constituição Federal ter sonegado da Justiça Militar Estadual a competência para o julgamento de civis não traduz em nenhuma medida a inaplicabilidade do Código Penal Militar para a proteção das instituições militares estaduais, tanto assim o é que a própria Súmula n. 53. do STJ declara apenas que “caberá à Justiça Comum Estadual processar e julgar civil quando acusado de prática de crime contra as instituições militares estaduais”, não retirando estas últimas da proteção do CPM no caso em comento.
Ademais, no sentido de demonstrar que os militares da reserva ou reformado não são considerados civis para fins de aplicação da lei penal militar, mostra-se pertinente exibir julgado do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais, nos seguintes termos:
Se a vítima é Major PM QOS e exercia a sua função de dentista, em unidade sujeita à Administração Militar, ao ser ameaçada por um Major da reserva, configurou-se a prática de crime militar e competente é a Justiça Militar para processar e julgar o feito, apurado pelo instrumento próprio, que é o IPM.- Razão assiste à irresignação do Ministério Público, eis que houve violação ao dever militar e aos preceitos de hierarquia e disciplina, que são essenciais nas instituições militares, que se estendem e se aplicam inclusive, aos militares da reserva e reformados. - Provimento do recurso. Decisão: Unânime. DERAM PROVIMENTO AO RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA RECONHECER A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR PARA PROCESSAR E JULGAR O FEITO.
(Recurso em sentido estrito n. 248. – Relator: Juiz Cel PM Rúbio Paulino Coelho (TRIBUNAL DE JUSTIÇA MILITAR DE MINAS GERAIS, 2008)
Na mesma esteira pronunciou-se o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em exame de apelação criminal, também decidindo pela aplicação da lei penal militar e consequente competência da Justiça Militar Estadual:
Apelação. Falso testemunho. Auditoria militar. Policial militar reformado. Competência da egrégia justiça militar estadual. À unanimidade declinaram da competência. Acordam os magistrados integrantes da quarta câmara criminal do tribunal de justiça do estado, à unanimidade, em anular o processo, nos termos dos votos emitidos em sessão, determinando sua remessa à justiça militar.
(TJRS - Apelação Criminal n. 70019210012/2007) (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL, 2007)
Mas voltando ao tema central que move o presente debate, é cediço que as instituições militares estaduais são consideradas desde a Constituição de 1988 como instituições militares, tanto que são consideradas como reservas e auxiliares do Exército Brasileiro, nos termos do art. 144, §6º, da Constituição Federal de 19884, sendo seus integrantes considerados militares dos Estados e do Distrito Federal nos exatos dizeres do art. 42. da mesma Carta5, o que segundo os ensinamentos de Assis (2008) põe fim a uma discussão que sempre lhe pareceu desnecessária, incluindo definitivamente as polícias e os corpos de bombeiros militares no rol das instituições militares.
Depreende-se, por todo o exposto, que as instituições militares estaduais gozam em todos os aspectos da proteção penal estatuída pelo inciso III do art. 9º do CPM, podendo sim figurar como sujeito passivo de crime militar próprio ou impróprio, ainda que praticado por civil singularmente ou em concurso de agentes, aqui devendo ser aquele entendido como a pessoa não integrante dos quadros das instituições militares6 sejam federais ou estaduais, ainda que da reserva ou reformado, cabendo apenas discutir sobre a competência para processo e julgamento do agente, o que será discutido adiante.