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Crimes militares praticados por civil contra as instituições militares estaduais.

Competência para julgamento no direito brasileiro

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10/08/2012 às 11:21
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3. Da competência para processo e julgamento dos crimes militares definidos somente no Código Penal Militar cometidos por civil contra as instituições militares estaduais

A restrição da discussão em torno da competência para processar e julgar o civil que venha a ser agente de delito militar contra as instituições militares estaduais apenas àqueles tipificados exclusivamente no CPM (art. 9º, inciso I c/c III do mesmo artigo) tem fundamento no fato de que nos demais casos, há uma aparente pacificação na doutrina e jurisprudência majoritária que em havendo um crime militar com igual descrição na lei penal comum, caberá à Justiça Comum Estadual processar e julgar o agente, é o que depreende-se da leitura de posicionamentos como de Lenza (2007, p. 542) ao dizer que “[...] se um civil pratica crime de furto em um quartel da Polícia Militar do Estado, ele será processado e julgado pela justiça comum e com fundamento no CP e CPP”, muito embora o argumento de todos os doutrinadores encontrados é de que a transferência para a Justiça Comum é a ausência de competência para julgar os civis por parte da Justiça Militar Estadual, como se exemplifica pelos trechos abaixo:

c) a Justiça Militar Estadual não tem competência para julgar crimes praticados por civil, ainda que este atente contra as instituições militares ou contra militares no exercício de suas funções. [...] Assim ficou nítida a competência exclusiva da Justiça Militar Estadual para o julgamento de militares, mas jamais de civis. Estes devem ser julgados pela Justiça Estadual Comum, a teor da Súmula 53 do STJ; (NUCCI, 2008, p. 276-277)

[...] a Justiça Militar Estadual só tem competência para processar e julgar os militares dos Estados (CF, 125, §4º). Logo, se um civil cometer um crime contra as instituições militares estaduais (v.g., furto de armamento de um Policial Militar), deverá ser processado e julgado perante a Justiça Comum Estadual. Nessa Linha, aliás, dispõe a Súmula n. 53. do STJ [...] (LIMA, 2011, p. 540)

A própria Súmula n. 53. do STJ invocada tão reiteradas vezes pelos autores supramencionados foi editada após o exame em incidentes de conflito de competência suscitados entre a Justiça Militar e Comum Estadual do Rio Grande do Sul e de São Paulo7, sendo que em todos os casos a decisão foi pela competência da Comum sob o único fundamento de que a Justiça Militar Estadual não tinha competência para o julgamento de civis, não havendo maior aprofundamento, embora em nenhum dos casos o crime tenha sido descaracterizado de sua natureza militar.

Pelas razões expostas, não se cuidará aqui dos crimes militares com idêntica previsão na lei penal comum, mesmo porque não se tem o objetivo de se esgotar a discussão em torno do tema, mas sim de levantar uma discussão. Destarte, passa-se então a analisar a situação em que o civil vier a cometer crime militar tipificado exclusivamente na lei penal militar.

3.1. Da estrutura e competência da Justiça Militar

A Justiça Militar brasileira apresenta uma estrutura que nas palavras de Assis (2008, p. 52) é sui generis, na medida em que se divide em Federal e Estadual. A Justiça Militar Federal tem previsão nos art. 122. da Constituição Federal e é composta pelo Superior Tribunal Militar e pelos Tribunais e Juízes militares definidos em lei. Sua competência está definida em linhas gerais no art. 124. do próprio texto constitucional como a de processar e julgar os crimes militares definidos em lei.

Embora não haja no texto constitucional ou mesmo na Lei de Organização da Justiça Militar8 previsão de restrição de julgamento de membros das instituições militares estaduais ou de civis quando da prática de crimes contra estas instituições, há o entendimento doutrinário de que a Justiça Militar da União tutela unicamente os interesses das Forças Armadas. É o que afirma Assis (2008, p. 50) ao dizer que a Justiça Militar da União, por sua vez, tutela as instituições das Forças Armadas, julgando os crimes contra ela cometidos e dela (Justiça Militar federal) escapando os crimes contra os valores das Corporações estaduais.

Lado outro, a Justiça Militar Estadual tem igual previsão constitucional, mas em seu art. 125, §3º, o qual dispõe “A lei estadual poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça, a Justiça Militar estadual, constituída, em primeiro grau, pelos juízes de direito e pelos Conselhos de Justiça e, em segundo grau, pelo próprio Tribunal de Justiça, ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo militar seja superior a vinte mil integrantes”.

A competência da Justiça Militar Estadual está delineada no §4º do mesmo artigo 125, nos seguintes termos:

Art. 125. – [...]

§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (BRASIL, 1988)

Verifica-se, portanto por uma leitura meramente perfunctória dos dispositivos constitucionais que a competência da Justiça Militar e Estadual e Federal são distintas. Abstraída a competência cível da Justiça Estadual, a competência criminal ficou restrita, na medida em que somente pode processar e julgar os militares estaduais, frise-se, aqueles que pertençam às corporações dos seus respectivos Estados9, não havendo previsão constitucional para o julgamento de civis. É neste último aspecto que reside a problemática aqui debatida.

3.2. A competência para julgamento dos crimes militares cometidos por civil contra as instituições militares estaduais: análises e proposições

Conforme já fora exposto, diante da inexistência de previsão legal para que a Justiça Militar Estadual possa julgar civis, as decisões do Superior Tribunal de Justiça foram no sentido de que a competência seria então da Justiça Comum Estadual.

A Constituição Federal ao tratar da Justiça dos Estados, dispõe em seu art. 125. que estes organizarão sua justiça, respeitados os princípios constitucionais. Por se mostrar inviável citar aqui as disposições das 27 constituições dos Estados e as respectivas leis que estruturam seu Poder Judiciário, foram eleitos para subsidiar a presente análise as legislações oriundas dos Estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, por serem os únicos que possuem uma estrutura completa de Justiça Militar Estadual e por serem os principais irradiadores de doutrina sobre o Direito Militar no Brasil.

Ao analisar as Constituições dos Estados retromencionados constata-se que todas são lineares em delegar às leis de organizações judiciárias a definição de competência dos juízes de direito da Justiça Comum, estes considerados então competentes pelo STJ para julgar os feitos militares que tenham por sujeito ativo um agente civil. Colimando as respectivas leis de organização judiciária, constata-se que há nos casos de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul uma previsão bastante ampla quanto à competência dos Juízes de Direito, não havendo, contudo, nenhuma previsão na lei do Estado de São Paulo delimitando a competência do juiz de primeiro grau em matéria criminal10 .

Nos termos da lei complementar estadual de Minas Gerais n. 59. (Lei de Organização Judiciária), em seu art. 55, “Compete ao Juiz de Direito: processar e julgar: a) crime ou contravenção não atribuídos a outra jurisdição; [...]. Na mesma esteira a lei estadual n. 7.356. que organiza o Poder Judiciário no Rio Grande do Sul define em seu art. 73. que aos “Juízes de Direito compete: [...] II - a jurisdição criminal, em geral, [...].

O principal fundamento para as decisões que culminaram na Súmula 53 do STJ foi de que o fato de o civil ser julgado na Justiça Militar Estadual, segundo a doutrina, atentaria contra o princípio do juiz natural estatuído pela Constituição Federal de 1988. Segundo os ensinamentos de Nucci (2008, p. 85) “o Estado, na persecução penal, deve assegurar às partes, para julgar a causa, a escolha do juiz previamente designado por lei e de acordo com as normas constitucionais (art. 5º, III, CF: ‘Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente’)”.

Observado o mandamento constitucional, verifica-se que o estado lacônico que foi criado pela própria Constituição ao deixar de delimitar, ainda que em linhas gerais, a competência da Justiça Comum Estadual e ao restringir a da Justiça Militar nos exatos termos do §4º do art. 125, produz uma situação de insegurança jurídica para as instituições militares, deixando as situações em que estas forem sujeito passivo de crimes militares ao alvedrio dos tribunais, podendo culminar com a sua desproteção pela lei penal militar, colocando-as em situação de desequilíbrio em relação às instituições militares federais, principalmente nos casos em que não há previsão clara de competência criminal geral. Em um possível processo, poderia haver questionamento acerca da competência para o processo e julgamento dos crimes militares praticado por civil pelo juízo comum, diante da omissão da lei, invocando-se o princípio do juiz natural. Se o princípio do juiz natural implica na prévia previsão legal de quem será a autoridade competente para julgar o feito, resta óbvio que a omissão da lei desatende a este princípio.

No entendimento deste autor, a solução mais adequada à espécie, seria a aplicação das disposições do art. 82. do Código de Processo Penal Militar, in verbis, em combinação com o prescrito no art. 124. da Constituição:

Art. 82. O foro militar é especial, e, exceto nos crimes dolosos contra a vida praticados contra civil, a ele estão sujeitos, em tempo de paz:

[...]

§ 1° O fôro militar se estenderá aos militares da reserva, aos reformados e aos civis, nos crimes contra a segurança nacional ou contra as instituições militares, como tais definidas em lei. (grifo do autor)

Embora não exista na doutrina sequer cogitação desta medida, esta não se mostra como impossível sob o ponto de vista constitucional e legal. Basta considerar, para tanto, que nos termos do art. 124. da Constituição de 1988 a competência da Justiça Militar no âmbito da União é a de processar e julgar os crimes militares definidos em lei, não havendo distinção de quais sejam os sujeitos passivos da infração penal. O mesmo dispositivo constitucional remete à necessidade da disposição de lei que delimite o poder jurisdicional da Justiça Militar da União, o que é cumprido pela Lei de Organização Judiciária Militar da União11, do qual se extrai o seguinte:

Art. 27. Compete aos Conselhos:

I - Especial de Justiça, processar e julgar oficiais, exceto oficiais-generais, nos delitos previstos na legislação penal militar;

II - Permanente de Justiça, processar e julgar acusados que não sejam oficias, nos delitos de que trata o inciso anterior, excetuado o disposto no art. 6º, inciso I, alínea b, desta Lei. (BRASIL, 1992)

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Constata-se, pois, que a própria Constituição Federal não impôs restrições à tutela das instituições militares estaduais pela Justiça Militar da União, de modo que as restrições encontradas são de origem doutrinária, como fora citado anteriormente. A lei que organiza o judiciário militar da União não contempla a participação de integrantes das instituições militares na composição dos Conselhos de Justiça, o que no ponto de vista do autor não prejudica, data máxima vênia, o julgamento dos processos em que estas corporações figurassem no polo passivo, pois apesar de não ser a ideal, se mostraria como mais coerente do que a submissão ao juízo comum, dadas as semelhanças entre as instituições.

A despeito de tais argumentos, autores como Assis (2008, p. 52) afirmam que a solução definitiva para a questão ora debatida seria realmente a instituição de uma Justiça Militar unificada, nos seguintes termos:

No campo ideal, cremos que deveria haver apenas uma Justiça Militar, Federal, julgando inclusive os militares estaduais e do DF, auditorias mistas onde coexistissem os Conselhos de Justiça das Forças Armadas e Auxiliares; com Tribunais Regionais Militares e o Superior Tribunal Militar como órgão de cúpula. [...]

E complementa indo ao encontro do argumento deste autor de que a tutela das instituições militares estaduais é possível, sendo a restrição uma questão de entendimento da lei, ao asseverar que “Essas são ideias. Na situação atual, continuamos entendendo que cada Justiça Militar, deve tutelar os bens e valores que são preciosos para as Instituições Militares que lhe dizem respeito [...]” (ASSIS, 2008, p. 52).

Muito embora não seja objeto deste ensaio, não se pode deixar mencionar uma tendência que torna toda a discussão travada neste artigo, a qual reputa-se da maior relevância, na verdade, em algo desnecessário, qual seja a da exclusão do civil do foro militar. Neste sentido, países como Portugal chegaram a extinguir a justiça militar em tempos de paz, conforme apontado pelo Capitão de Mar e Guerra português em palestra ministrada durante Congresso no Superior Tribunal Militar no ano de 201112 e também em outros países da América Latina, como é citado por Assis (2004, p. 81) ao citar que “O art.5º do Código Penal Militar colombiano assevera ainda que ‘em nenhum caso os civis poderão ser investigados ou julgados pela justiça penal militar’”.

No Brasil , já há julgados do STF no sentido de excluir o civil da jurisdição militar, mas sob o fundamento de que o delito praticado não constitui crime militar, como no caso do julgamento de Habeas Corpus n. 106.171, transcrito adiante:

“HABEAS CORPUS” – CRIME MILITAR EM SENTIDO IMPRÓPRIO - FALSIFICAÇÃO/USO DE CADERNETA DE INSCRIÇÃO E REGISTRO (CIR), EMITIDA PELA MARINHA DO BRASIL - LICENÇA DE NATUREZA CIVIL - CARÁTER ANÔMALO DA JURISDIÇÃO PENAL MILITAR SOBRE CIVIS EM TEMPO DE PAZ – OFENSA AO POSTULADO DO JUIZ NATURAL - INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR - PEDIDO DEFERIDO. A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA PENAL DA JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO E A NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, PELOS ÓRGÃOS JUDICIÁRIOS CASTRENSES, DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO JUIZ NATURAL. – [...] A REGULAÇÃO DO TEMA PERTINENTE À JUSTIÇA MILITAR NO PLANO DO DIREITO COMPARADO. - Tendência que se registra, modernamente, em sistemas normativos estrangeiros, no sentido da extinção (pura e simples) de tribunais militares em tempo de paz ou, então, da exclusão de civis da jurisdição penal militar: [...] POSTULADO DO JUIZ NATURAL REPRESENTA GARANTIA CONSTITUCIONAL INDISPONÍVEL, ASSEGURADA A QUALQUER RÉU, EM SEDE DE PERSECUÇÃO PENAL, MESMO QUANDO INSTAURADA PERANTE A JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO. [...]

(HC 106171, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 01/03/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-071 DIVULG 13-04-2011 PUBLIC 14-04-2011)

Resta demonstrado que é fato, inclusive no Brasil, que a extensão da aplicação da lei penal militar, principalmente no que concerne ao civil, tende a estar cada vez mais restrita com o passar do tempo. Há de considerar, contudo, que a situação ainda se encontra no campo da dialética jurídica, sendo objeto de discussão, principalmente entre as instâncias judiciais militares e o STF, estando ainda vigentes todas as disposições do Código Penal Militar abordadas neste trabalho, o que, reitera-se, torna a discussão ainda necessária e pertinente.

Por fim, tem-se por todo o exposto, que persiste ainda o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que não há outra solução para o caso do cometimento de crime militar por civil contra as instituições militares, ainda que com previsão exclusiva no CPM, que não seja sua submissão ao foro civil, devendo-se ressaltar que tal situação não descaracterizará a natureza do crime militar, mas tão somente implicará no julgamento pela Justiça Comum dos Estados.13

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Sobre o autor
João Paulo Fiuza da Silva

Oficial da polícia militar de Minas Gerais. Bacharel em Ciências Militares e em administração

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, João Paulo Fiuza. Crimes militares praticados por civil contra as instituições militares estaduais.: Competência para julgamento no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3327, 10 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22380. Acesso em: 25 abr. 2024.

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