3. Critérios para aplicação das normas de direito processual individual no âmbito do processo coletivo e a aplicabilidade do art. 47 do CPC
O processo coletivo brasileiro não é codificado, sendo disciplinado por legislação infraconstitucional esparsa, notadamente pela Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) e pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), as quais não são suficientes, por si sós, para reger o procedimento das ações coletivas de forma exaustiva. Por esse motivo, o processo coletivo reclama a aplicação supletiva das normas que regem o processo individual, notadamente aquelas inscritas no Código de Processo Civil.
Tal aplicação, aliás, encontra previsão legal expressa no art. 19 da Lei da Ação Civil Pública, segundo o qual “aplica-se à ação civil pública, prevista nesta Lei, o Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, naquilo em que não contrarie suas disposições”, e no art. 90 do Código de Defesa do Consumidor, segundo o qual “aplicam-se às ações previstas neste título as normas do Código de Processo Civil e da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições.”
Com efeito, a leitura apressada desses dispositivos pode levar à conclusão de que, para a aplicação do processo civil individual no âmbito do processo coletivo, basta que as normas daquele primeiro que se pretende ver aplicadas não disponham de maneira diversa daquelas que expressamente constem da LACP e do CDC. Diante de tal concepção, a aplicabilidade do art. 47 do CPC nas ações coletivas não traria nenhuma perplexidade, uma vez que não há regra nesses dois diplomas normativos especiais proibindo ou dispondo de forma diversa acerca do litisconsórcio passivo necessário.
No entanto, não é essa a melhor interpretação dos arts. 19 da LACP e 90 do CDC. Na esteira do que foi exposto no tópico supra, a aplicação desses dispositivos, assim como das demais regras que compõem os diplomas normativos em que se inserem, deve levar em conta o princípio norteador do sistema processual coletivo, qual seja, o princípio do acesso à ordem jurídica justa. Por conseguinte, somente é possível admitir a aplicação das normas de direito processual comum no âmbito do processo coletivo até o limite em que não prejudiquem a entrega célere e eficaz da prestação jurisdicional necessária à defesa dos direitos coletivos e difusos. Nos dizeres de Rodolfo de Camargo Mancuso:
“Como se infere dos vários tópicos antes abordados, o traslado de institutos e categorias da jurisdição singular para o plano coletivo nem sempre será possível, ou nem sempre será seguro, de modo que devem intérprete e aplicador proceder com toda cautela nesse transporte, atentando a que o plano da jurisdição coletiva parte de pressupostos que lhe são peculiares e intenta alcançar finalidades específicas, aqueles e estas bem diversos de seus correspondentes da jurisdição singular.” (2007, p. 118)
Por esse enfoque é que deve ser analisada a aplicabilidade do art. 47 do CPC nas ações coletivas. É certo que não há de se falar em inaplicabilidade absoluta. O pólo passivo dessas demandas em regra é composto pelo ofensor ao interesse transindividual que se pretende tutelar. Ocorre que, não raras vezes, a agressão a esses interesses não é perpetrada por uma única pessoa individualmente, mas sim por mais de um agente, hipótese em que a sentença de procedência, para ser eficaz, deve atingir todos os agressores. Nesse caso, não há como afastar o litisconsórcio passivo necessário entre os agressores do bem jurídico transindividual tutelado, na forma do art. 47 do CPC.
Contudo, esse último dispositivo não pode ser interpretado no sentido de trazer ao pólo passivo da demanda coletiva, na condição de litisconsortes, todos os terceiros prejudicados que, mesmo não sendo os ofensores do interesse tutelado, possam sofrer indiretamente prejuízos em seus patrimônios jurídicos em razão da sentença de procedência proferida na ação civil pública.
A admissão de tal cumulação subjetiva descaracterizaria a própria natureza da ação coletiva, transformando-a em verdadeira demanda individual plúrima, o que implicaria em severo e inadmissível prejuízo à entrega célere e eficaz da prestação jurisdicional que se espera do processo coletivo. Nesse sentido, novamente é oportuna a lição de Rodolfo de Camargo Mancuso, para quem “Sob o enfoque da movimentação dos sujeitos na ação coletiva, verifica-se que as intromissões de terceiros não podem ter a amplitude permitida na jurisdição singular porque isso engendraria o risco de desnaturar o processo coletivo” (2007, p. 116). O mesmo professor, em outra publicação de sua autoria, volta a discorrer sobre os riscos que podem advir da irrestrita cumulação subjetiva nas ações coletivas:
Além desse óbice de caráter técnico, há também um certo inconveniente no livre acesso de litisconsortes e de assistentes na ação civil pública: é que se pode configurar o indesejado “litisconsórcio multitudinário”, a cujo respeito escreve Cândido Rangel Dinamarco: “Mostra a experiência, ainda, que, pela via da intervenção litisconsorcial voluntária, criam-se, algumas vezes, situação insuportáveis, com um número muito grande de litisconsortes; quando disso resultar dano ao exercício pelos autores originários, ou do jus excipiendi pelo réu, ou ainda (em casos particularmente graves) ao próprio desenvolvimento da função jurisdicional pelo juiz, aí está novo óbice a impedir a intervenção, da mesma forma como é causa impeditiva do próprio litisconsórcio originário”. (2009, p. 246)
Por esses motivos, somente se pode admitir como litisconsortes passivos nas ações coletivas os agressores diretos do interesse transindividual tutelado, uma vez que a interpretação do art. 47 do CPC, no sentido de ser obrigatório o ingresso na lide de todos os terceiros indiretamente prejudicados pela sentença proferida nessas demandas implicaria em inviabilizar a prestação jurisdicional célere e efetiva, consequência rechaçada pelo princípio orientador do processo civil coletivo, qual seja, o princípio do acesso à ordem jurídica justa (art. 5º, XXXV, da Constituição Federal).
Convém salientar que essa linha de entendimento, contrária àquela que foi sufragada pelo Superior Tribunal de Justiça no julgado supra citado, vem sendo reiteradamente adotada pelo Tribunal Superior do Trabalho em inúmeros julgados, dentre os quais, a título de exemplo, destaca-se o seguinte:
AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. 1. NULIDADE PROCESSUAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO. Em se tratando de ação civil pública que visa ao reconhecimento da irregularidade de contratação de empregados públicos sem prévia submissão a concurso, devem necessariamente integrar o polo passivo da demanda os entes públicos ofensores dos interesses difusos defendidos, não havendo de se falar em litisconsórcio passivo necessário com os empregados que, de forma indireta, eventualmente venham a sofrer os efeitos da sentença. Precedentes. [...] Agravo de instrumento conhecido e não provido. (BRASIL, 2011)
E nem se argumente que o entendimento ora adotado implica em ofensa ao direito dos terceiros prejudicados ao devido processo legal. Cuida-se, a toda evidência, de controvérsia que passa pelo conflito entre o princípio do acesso à ordem jurídica justa (art. 5º, XXXV, da CF), a tutelar o interesse de toda a coletividade em ver judicialmente resguardados os seus direitos de natureza difusa e coletiva de forma célere e eficaz, e o princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF), a tutelar o interesse de alguns poucos particulares na defesa de seu patrimônio jurídico eventualmente prejudicado pela sentença de procedência proferida na ação civil pública.
E em se tratando de conflito entre princípios, não é possível buscar a solução por meio das regras clássicas usualmente aplicadas na solução de conflitos normativos, pautadas por critérios de tempo, hierarquia e especialidade. A utilização dessas regras, leva obrigatoriamente à declaração de invalidade de uma norma em detrimento da outra. Já no tocante aos princípios, ensina Robert Alexy:
As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma completamente diversa. Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido –, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com o maior peso têm precedência. Conflitos entre regras ocorrem na dimensão da validade, enquanto as colisões entre princípios - visto que só princípios válidos podem colidir – ocorrem, para além dessa dimensão, na dimensão do peso. (2008, pp. 93-94)
Nessa ordem de idéias, o interesse de toda a coletividade, protegido na hipótese em análise pelo princípio do acesso à ordem jurídica justa, tem precedência sobre o interesse particular de alguns indivíduos, protegido pelo princípio do devido processo legal. Por consequência, em um juízo de ponderação, este último princípio deve ceder espaço ao primeiro, o que não significa, todavia, na sua completa ineficácia na solução da controvérsia. Os terceiros prejudicados continuam tendo minimamente resguardado o seu direito ao devido processo legal por meio da possibilidade de ajuizar demandas individuais regressivas contra o réu da ação civil pública, buscando a reparação dos danos sofridos aos seus patrimônios.
Aliás, esse excessivo apego ao princípio do devido processo legal, impregnado de um formalismo extremado, tem por causa a tradição do processualismo clássico de se garantir a máxima segurança aos jurisdicionados, ainda que em detrimento de uma prestação jurisdicional célere e eficaz. Essa ideologia, no entanto, é incompatível com as inspirações do processo coletivo, cuja implementação e efetividade revelam-se essenciais à concretização do princípio do acesso à ordem jurídica justa. Nesse sentido, são oportunas as palavras de Marcos Neves Fava, para quem:
Qualquer percurso de mudança oferecerá riscos aos caminhantes, estimulando o apego ao conhecido e a dura resistência de aceitação dos modelos em nascimento ou desenvolvimento, o que levou Bertrand Russel a identificar a tarefa como “piu difficile” para aqueles que tendam a advogar as transformações. Em matéria de transposição do processo clássico, individualista, para o coletivo, transindividual, aferram-se os operadores à segurança extrema que representam os cânones centenários da ciência processual, para não admitir, sem dor, as ampliações dos conceitos de legitimação, fixação da jurisdição, efeitos da coisa julgada e interesse de agir (2005, p. 207)
Por todos esses motivos, não há como concordar com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça adotado no precedente ora analisado, sob pena de negar efetividade às ações coletivas e à finalidade de entrega rápida e eficaz da tutela jurisdicional por elas visada.
4. Conclusão
Consoante exposto nas linhas apresentadas acima, a aplicabilidade das normas de direito processual individual no âmbito do processo coletivo deve passar pelo crivo do princípio constitucional que fundamenta esse ramo jurídico, qual seja, o princípio do acesso à ordem jurídica justa, inscrito no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. Por esse enfoque, somente devem ser aplicadas na jurisdição coletiva as normas de processo comum singular que não prejudiquem a entrega célere e eficaz da prestação jurisdicional necessária à defesa dos interesses transindividuais discutidos na ação coletiva.
Nesse contexto, contrariamente ao entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça no precedente ora submetido à análise crítica, conclui-se que a aplicação da norma inscrita no art. 47 do CPC no processo coletivo somente é possível para determinar o litisconsórcio necessário entre os ofensores do interesse transindividual tutelado, não tornando obrigatória a inclusão no pólo passivo da ação dos particulares que possam sofrer indiretamente prejuízos decorrentes dos efeitos da sentença de procedência proferida na ação coletiva. Caso contrário, a cumulação subjetiva no pólo passivo da demanda pode chegar a descaracterizar a sua natureza coletiva, transformando-a em verdadeira demanda individual plúrima, de modo a prejudicar a celeridade e a eficiência da jurisdição.
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